O livro mais precioso de minha biblioteca é um velho caderninho de folhas pautadas e capa vermelha, comprado na Livraria Francesa. Rua do Crespo, 9, Recife e em cuja página de rosto se lê: "Livro de assentamento de despesas. Francelina R. de Souza Bandeira". Francelina R. de Souza Bandeira era o nome de minha mãe. Mas toda a gente a conhecia e tratava por D. Santinha eu poema dos "Nomes" escrevi:

Santinha nunca foi para mim o diminutivo de santa.
Santinha eram dois olhos míopes, quatro incisivos claros à flor
        [da boca.
Era a intuição rápida, o medo de tudo, um certo modo de dizer
        [Meu Deus valei-me".

      Até hoje não pude compreender como tão completamente pude dissociar o apelido Santinha (mas só na pessoa de minha mãe) do diminutivo de santa. Santinha é apelido que só parece bom para moça boazinha, docinha, bonitinha – em suma mosquinha morta, que não faz mal a ninguém. Minha mãe não era nada disso. E conseguiu, pelo menos para mim, esvaziar a palavra de todo o seu sentido próprio e reenchê-lo de conteúdo alegre, impulsivo, "batalhador, de tal modo que não há para mim no vocabulário de minha língua nenhuma palavra que se lhe compare em beleza cristalina e como que clarinarte.

      Mas voltemos ao caderninho. Ilustra ele curiosamente a desvalorização de nossa moeda. Iniciado em fevereiro de 1882 (minha mãe casara-se em janeiro), contém naquele ano e nos anos seguintes apontamentos como estes:

Calçado para mim …………………    9$000
Uma lata de bolachinhas ……….     1$000
Tesoura e escova ………………….     1$000
Espartilho e chapéu de sol…….     25$000
Uma missa ……………………………    3$000
Ordenado de Vicência cozinheira.17$000
12 galinhas………………………………10$000

      Há alguns longos hiatos registro quase diário.o que me interessa mais particularmente é o que ocorre no dia 18 de abril de 1886, porque no dia nascia eu. Lá para o fim do caderno vem esta nota:

      Nasceu meu filho Manuel Carneiro de Souza Bandeira filho, no dia 19 de abril de 1886, 40 minutos depois de meio-dia, numa segunda-feira santa. Foi batizado no dia 20 de maio, sendo seus padrinhos seu tio paterno Dr. Raimundo de Souza Bandeira e sua mulher Da. Helena V. Bandeira.

      Sempre me acharam muito parecido com minha mãe. Só o nariz diferíamos. A semelhança estava sobretudo nos olhos e na boca. Sai míope como ela, dentuço como ela. Há dentuços simpáticos e dentuços antipáticos. Muito tenho meditado sobre esse problema da antipatia de certos dentuços. Creio ter aprendido com minha mãe que o dentuço deve ser rasgado para se tornar antipático. O dentuço que não ri para que não se perceba que ele é dentuço, esta perdido. Aliás, de um modo geral, a boca amável é a boca em que se vê claro. Era o caso de minha mãe: tinha o coração, já não digo na boca mas nos dentes, e estes eram fortes e brancos, alegres, sem recalque: anunciavam-na. Moralmente julgo ser muito diferente dela, mas fisicamente sinto-me cem por cento dela, que digo? sinto- a dentro de mim, atrás dos dentes e de meus olhos. Moralmente sou mais de meu pai, e alguma coisa de meu avô, pai de minha mãe. Sinto meu avô materno nos meus cabelos, sinto-os em certos movimentos de cordura. Naturalmente essas coisas me vieram através de minha mãe. Minha mãe transmitiu-me traços de meu avô, no entanto, não estavam nela. Que grande mistério que é a vida! Minha mãe era espontânea, sabia o que queria, não era nada tímida: ótimas qualidades que não herdei. Notou Mário de Andrade como em minha poesia a ternura se trai quase sempre pelo diminutivo; creio que isso (em que não tinha reparado antes da observação de Mário) me veio dos diminutivos que minha mãe, depois que adoeci, punha em tudo que era pra mim: "o leitinho de Nenen", a "camisinha de Nenen"… Porque ela me chamava assim, mesmo depois de eu marmanjo. Enquanto ela viveu, foi o nome que tive em casa, ela não podia acostumar-se com outro. Só depois que morreu é que passei a exigir que me chamassem – duramente – Manuel.

 

Os Reis Vagabundos e mais 50 crônicas – Manuel Bandeira
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