Tenho braços fortes, de estátua grega feita por um Fídias. Mas não brancos de dentes do mármore. São duros iguais aos meus caninos, porém não pálidos. Queimo-os ao sol subtropical, de maneira que mantêm um suave dourado, como de pescadores romanos. Quando olho meu corpo de relance no espelho, saído com distração do banho, me deparo com membros que bem poderiam pertencer a um atleta olímpico. Seguro a toalha molhada, que levo para pendurar no varal, como um troféu de pano.

      Não me comparo a qualquer atleta, como esses magrelas ciclistas ou os esqueletos que se atiram por cima da vara e caem de pés pro alto na cama de mola. Pareço mais um lançador de dardos dos jarros jônicos, reproduzido na capa de uma edição da Odisséia. Mas não gosto dos meus braços. Eles não combinam comigo.

      Desde que comecei a nadar, há dois anos, a água da piscina vem esculpindo seus desenhos, como se tirasse o excesso de gordura e carnes para deixar a estátua que já havia por baixo das sobras. Eu estava ali o tempo todo soterrado por aqueles quilos de células e líquidos que evaporaram para a atmosfera, à medida que meus braços remaram contra a pesada resistência.

      Uma hora por dia dentro daquela grande fôrma, repetindo e repetindo movimentos, como se numa siderúrgica, e eis-me hoje esse amontoado de músculos, jacaré pingando água, quando sai da piscina, barriga de dar inveja a muitos galãs. Mas não me reconheço em meu novo corpo.

      Obviamente, que minha mulher tem tirado proveito. E cada vez mais me solicita para levantar alguma caixa pesada ou arredar móveis dentro de casa. Marcelo! Ela grita do outro lado do apartamento, e desligo-me do computador para os dez trabalhos diários de um Hércules de cozinha. Abro uma gaveta e os músculos saltam, giro uma maçaneta e eles se retorcem juntos, como se a fosse esmagá-la, puxo uma garrafa da geladeira e é como se estrebuchasse inteiros seus intestinos frios para o chão da casa.

      Braços rudes, braços de lenhador, de caminhoneiro, que, obviamente, não produziriam nenhuma palavra. Surpreende-me que saiam deles delicados livros…

      Na rua, atraio olhares das senhoras da minha idade. Quando encostam seus dedos macios, faço saltar uma batata de debaixo da pele. Sorriem com olhinhos apertados. Na feira, surpreendo carregando toneladas de sacolas de frutas, para aplauso dos fregueses, e até mesmo do Elias, feirante malencarado. Um dia desses, convidou-me para uma queda de braços. Venci-o, evidentemente. Mesmo assim, rodei pela pracinha da feira, de cabeça baixa, mãos para trás, com uma coisa por dentro. Ignorava as ovações, estava surdo aos elogios, cego às criancinhas, insensível às senhoras, e caminhei pelas ruas, com a firmeza da insatisfação.

      Chutei uma latinha. Ela voou mais longe do que eu queria. Estalou na nuca de um operário de construção. Veio reclamar. Ficou roxo dentro da gravata que lhe dei. Os companheiros dele me xingaram de longe, mas não dei bola.

      A história da literatura não registra braços como os meus.

      Naquele estado, fui parar num bar da Venâncio, coisa que jamais fizera antes. Sentei e gritei ao garçom, tonitroantemente. Que me trouxesse uma garrafa de pinga! Eram ainda 10h da manhã. Pensei em Shakespeare, o "sacode espadas": esmagava com um dedo. Proust, um asmático, Dostoievski, epilético, Tchecov, tuberculoso, Milton, Homero e Borges, três ceguinhos,

      Cervantes, maneta… Em pouco tempo estava bêbado. Berrei no bar, como um Zeus, um Thor, um Hulk:

      – Alguém, para me escutar! – e sacudi a mesa, Netuno furioso balançando o pardacento mar.

      O gerente empurrou de leve o garçom, que aproximou-se como uma galinha.

      Pôs ovos na cadeira.

      Eu balbuciei:

      – Ouve minha poesia….

      E comecei:

      – Sei que não sou Shakespeare, sei que não sou. Sei que não sou Dante e isso para mim é um inferno. Diante do espelho não é Borges quem vejo, embora fosse meu desejo. Sou mais cego que ele, que Milton, que Homero, existo menos que Homero. Sei que não sou Dostoievski, para você um crime, pra mim, um castigo, tentei ser Proust, mas foi tempo perdido. Não adianta ir em busca, do que não sou. Eu sei que não sou – mas, antes do fim, Morfeu e a cachacinha atiraram meu pesado corpo sobre a mesa.

      Ninguém nunca ousou comentar o incidente, mas noto que desde então bolinhos de gente param os burburinhos se me aproximo. Cumprimentam-me, e faço que não vejo. Gênio pensando, mão direita segurando o queixo. Não são braços de quem procura coisas atrás da delicada folha de um livro, mas de uma pedra.