Não sei como ele apareceu. Acho que foi um brinde pelo dia da criança, ou promoção de um supermercado qualquer. Sei que a história começa na hora de dormir. Ele piava muito, com frio, longe das penas de sua mãe. Era miudinho, amarelo adocicado, macio, apaixonante. Sentiu-se tão quentinho debaixo das cobertas que apenas chilreava baixinho, em agradecimento, como ronron de gato. Fechava os olhinhos pela metade, como se quisesse dominar o sono e o cansaço de uma jornada inexplicável e incompreensível, desde a quebra do ovo.. 

Buscava aquecer seu bico diminuto, cor de rosa, esfregando-o em mim, como beijinhos e aquele “pripripri” era sua história, uma história comprida que não acabava mais. Parecia que todo esse tempo, desde a quebra do ovo, passando pelo incômodo amontoado dentro de uma caixa de papelão e agora, o conforto de minhas mãos, eram uma história interminável. 

Enfim, ele se cansou de contar contos de me fazer dormir e dormimos sem sonhar. Ao acordar é que tive o pesadelo: o pintinho estava morto. Amassado. Sua imobilidade foi um pedaço da minha própria morte. A morte vem aos pedaços na gente. A cada desilusão, culpa e tragédia, um pedaço da nossa morte nasce e vai se encaixando como num quebra-cabeças uns nos outros, ao longo das nossas vidas, até que ela possa se consumar um dia qualquer. 

Naquele momento, morremos os dois. E a constatação desta morte aconteceu em câmera lenta. Fotografou sua cena trágica, tanto que posso vê-la no álbum de recordações. E existiu o chorar, existiu a dor, existiu um sal cortando a face, existiu uma flecha sangrando o peito. Entre isso e o enterro, há um hiato, não me lembro. A caixa de chá mate leão naquele tempo era de madeira e trazia entalhado um leão rugindo e tinha tampa que se abria feito estojo escolar. Exalava perfume de mate e era perfeita para “abrigar” meu pintinho morto, tão infeliz. Preenchi todos os espaços com algodão e lágrimas. 

Fui a coveira e a florista e a rezadeira e a carpideira, e entre todas estas personagens, existia uma culpa imensurável. Ficaram tantos porquês aos berros em meus pensamentos que quis mudar de assunto. Há porquês demais sem respostas. Mas hoje precisei escrever sobre isso para me livrar de mim. Feito Clarice Lispector que dizia, “Eu escrevo para me livrar de mim.”