Da fácil prosa do ex-ministro Celso Amorim podemos extrair dois sentidos. Há o relato em si das três histórias independentes que compõem o livro. E há o sentido político estratégico, uma coerente formulação da política externa do governo Lula enquanto elemento fundamental de um projeto progressista de transformação. Ambos os sentidos, contidos com sutileza no título da obra, se complementam. Teerã, Ramalá e Doha simbolizam processos importantes protagonizados pelo Brasil. Política externa ativa e altiva é a ideia que organiza esse sentido geral.

Embora contenham um glamour típico das grandes questões internacionais, essas memórias estão desprovidas da arrogância aristocrática que muitas vezes marca a diplomacia. Isso nos permite mergulhar com empatia e admiração nas idas e vindas de cada processo, nas análises que revelam os dilemas e inseguranças, as apostas e afetos do então chanceler.

Compartilhamos da tristeza que o acomete na Beirute destruída pelo bombardeio israelense em 2006 e também sua apreensão e posterior alívio durante o exitoso processo de retirada dos brasileiros residentes no Líbano. Orgulhamo-nos quando líderes do Oriente Médio celebram o engajamento do Brasil na busca pela paz na região. Somamo-nos à revolta contra os negociadores dos Estados Unidos e da União Europeia que colocam a perder a Rodada de Doha e manobram para tentar, sem sucesso, jogar sobre o ministro a responsabilidade pelo fracasso. Apoiamos sua firmeza diante de Hillary Clinton, que demonstra “decepção” ao saber que Brasil e Turquia convenceram o Irã a aceitar inspeções em seu programa nuclear, um acordo rapidamente sabotado pela ação punitiva dos EUA.

O presidente Lula é presença constante nas histórias, sempre a apoiar as iniciativas do chanceler, algumas vezes se antecipando, resultado de impressionante sintonia. O inédito contato com o Oriente Médio é marcado pela dificuldade em explicar aos pares a distinção entre América do Sul e América Latina. Merece registro ainda sua anedótica profecia sobre um pontífice argentino dez anos antes da consagração do papa Francisco.

De fato, as três histórias narradas terminam em derrotas. É um erro, contudo, concluir que o Brasil perdeu, como faz a direita brasileira por meio da mídia. É contra essa leitura das elites que a narrativa geral se impõe, na imagem da política externa baseada na defesa de um multilateralismo cujos marcos são o diálogo, a diversidade e o desenvolvimento, e não as intervenções militares unilaterais ou os acordos econômicos bilaterais, dupla face de um movimento que aprofunda a desigualdade, a dominação e a dependência.

O Brasil e a Turquia, depreende-se da leitura, representam projeções de uma relação entre o Ocidente e o Islã sem as marcas do choque de civilizações impulsionado pelos EUA e seus parceiros europeus. Da mesma forma, o Brasil emerge como mediador dos conflitos do Oriente Médio, no papel de mensageiro de palestinos, israelenses e sírios, sempre a convite dos próprios envolvidos, que implica uma surpreendente, dado o pouco tempo de inserção do Brasil na região, relação de confiança que Amorim logrou estabelecer. E o empenho brasileiro na Rodada de Doha é justificado, igualmente, pela defesa do multilateralismo plural, no qual ações unilaterais das potências perdem espaço diante de fóruns representativos e pactuados.

Amorim não se furta em apontar o papel negativo da mídia, parcial ao julgar os movimentos brasileiros sempre com a régua dos EUA e antidemocrática quando cobra o ministro por sua participação ativa nas eleições de 2006. Infelizmente neste ponto o chanceler não se aprofunda, e daí surge uma lacuna na narrativa. Mas da leitura concluímos que os meios de comunicação são a principal instância consagradora da política externa. Amorim calcula as repercussões de seus atos pensando sempre na imprensa, que o condena a priori. Tal lacuna ganha ares de contradição quando surge o diálogo com a sociedade civil. Essa parece se resumir aos empresários, enquanto os agentes oriundos de outras classes só figuram nos relatos uma vez.

A contradição se situa, portanto, nessa concepção reduzida de sociedade civil. Como movimentos sociais, universidades, associações e redes ativistas não participam da política externa, esta fica sujeita ao escrutínio exclusivo dos grandes veículos de comunicação e à pressão e aprovação dos grandes grupos econômicos. Donde se conclui que o próprio alcance crítico e transformador dessa inédita ação internacional brasileira fica limitado.

É possível inferir, sem perder a dinâmica da empatia, que essa ausência de participação resulta não da falta de vontade dos formuladores da política externa, mas de dois obstáculos com os quais Lula e Amorim não podiam simplesmente ultrapassar: as dinâmicas estruturais próprias da diplomacia e uma poderosa e secular resistência dos setores sociais que sempre controlaram a elaboração das relações internacionais brasileiras.

Diante dessas dificuldades, ampliar a relação da sociedade civil com a diplomacia tem sido uma consequência direta da política externa liderada por Amorim. É imperativo reconhecer que iniciativas existem (O Mercosul Social, o diálogo na Rio+20 com a Cúpula dos Povos, entre outros). Há, entretanto, um passo decisivo: a criação do Conselho de Política Externa, um órgão consultivo, mas representativo da pluralidade política e social brasileira. Só assim seremos capazes de democratizar o acesso à formulação da nossa ação internacional, o que certamente permitiria à sociedade brasileira se apropriar da política externa de modo mais direto e imediato. Isso minimizaria os efeitos deletérios do monopólio das comunicações e contribuiria para um novo impulso dessa concepção de relações internacionais.

Josué Medeiros é cientista político, pesquisador do Observatório Político Sul-Americano (Opsa) e integrante do GRRI

Leia abaixo os principais trechos de uma entrevista de Amorim à BBC sobre seu novo livro.

BBC Brasil – O seu novo livro trata de três processos que refletem sua crença em mundo multipolar, com o Brasil exercendo um papel de protagonismo. Trata de um período em que o país teve uma atuação marcante na política externa, e também de episódios pelos quais o senhor e o ex-presidente Lula foram criticados, como o acordo com o Irã, quando foram acusados de estar dando um passo maior que as pernas. O livro é uma resposta a essas críticas?

Celso Amorim – O livro não é uma reposta a ninguém. Acho que é importante para a opinião pública brasileira saber o que fizemos e por quê. Não acho de maneira nenhuma que o Brasil tenha dado um passo maior que as pernas. A presença do Brasil era requisitada. Eu sentia isso de maneira dramática na África, sentia isso também no Oriente Médio.

O Brasil desperta esse confiança, talvez por termos uma composição tão misturada, ou por vivermos em paz com 10 vizinhos há 150 anos, ou por estarmos fora dos grandes eixos de confrontação geopolítica. O fato é que o país desperta confiança, e isso é um grande trunfo na presença internacional. Jogar isso fora é desperdício. Bem, não fui eu nem o Brasil que inventamos o termo soft power, foi o (acadêmico americano) Joseph Nye.

Nenhum país se afirma só com soft power, mas ele é importantíssimo. Não é a toa que o presidente (americano Franklin Delano) Roosevelt dava tanta importância ao cinema e dizia: ‘onde for o cinema americano, lá irão nossos modos de vida’. O Brasil não pode desperdiçar o seu soft power, o seu poder brando, digamos assim. Ainda que tenha que reforçar também seu poder militar.

BBC Brasil – Um dos relatos mais esperados no seu livro é o passo a passo para firmar a Declaração de Teerã, negociação que começou motivada por um pedido do presidente Obama e terminou mal depois que os Estados Unidos voltaram atrás e optaram pelo caminho de endurecer as sanções ao país. Foi uma puxada no tapete?

Amorim – Não era algo que não pudesse acontecer. Mas apostamos que, se conseguíssemos firmar o acordo exatamente nos termos solicitados pelo presidente Obama em cartas ao presidente Lula e ao primeiro-ministro da Turquia, daria tudo certo. Infelizmente não foi assim.

Na época, o Irã tinha mais ou menos 1.200 quilos de urânio levemente enriquecido. Hoje tem 7 ou 8 mil quilos.

Perdeu-se muito tempo ao não aceitar a Declaração de Teerã. Claro que não era a solução definitiva de todos os problemas, nós sabíamos disso. Era um passo de criação de confiança – cujos passos haviam sido reiterados pelo presidente dos Estados Unidos. Hoje, eu faço votos de que o acordo (que está sendo discutido entre Irã e EUA) seja concluído, não tenho nenhuma mágoa a esse respeito, pelo contrário, acho positivo, só acho que se perdeu tempo.

BBC Brasil – Qual é a diferença entre o acordo que está sendo proposto agora pelo presidente Obama daquele acordo de 2010? E qual é a importância de ele ter sido tentado na época, mesmo não tendo ido para a frente?

Amorim – Acho que nós ajudamos a mostrar que era possível negociar com eles. E é o que está ocorrendo agora. Esse acordo agora é mais amplo. Ele aceita o fato de que o Irã tem 7 ou 8 mil quilos de urânio enriquecido. Por outro lado, ele já se engajaria em eliminar algumas sanções. Mas o curioso de tudo é que sempre nos diziam: “não confiem no Irã, porque eles vão puxar o tapete”. Não foram eles que puxaram o tapete.

BBC Brasil – Seu livro novo fala muito na importância de um mundo multipolar e com o Brasil exercendo um protagonismo nesse mundo. Mas agora existe um certo consenso de que é um momento de retração na política externa brasileira.

Amorim – O Brasil já passou por outros períodos de retração. A curva geral é ascendente. O país viveu muitos momentos difíceis, tanto do ponto de vista político quanto do ponto de vista econômico. Eu acho que essas coisas são cíclicas.

Mas a política externa tem que ter continuidade. Você está lidando com fatos de longo prazo. Você não pode abandonar, nem que tenha que fazer um esforço adicional. Essa é a minha experiência. Você não pode decepcionar, porque aquilo que você leva dez anos para criar – uma confiança, uma relação – você com um ato pode perder. Depois pode recuperar, mas dá muito trabalho recuperar.

BBC – Com o corte recente no orçamento, o Ministério das Relações Exteriores teve que conter despesas e estamos vendo relatos de cortes e dificuldades financeiras em embaixadas e consulados…

Amorim – Eu acho que vai melhorar. Eu escrevi um artigo (na Folha de S. Paulo) dizendo: “Dias melhores virão?” Eu espero que daqui a seis meses eu já possa tirar o ponto de interrogação desse artigo. E afirmar de uma maneira mais clara que dias melhores virão.

BBC Brasil – O que levou o senhor a escrever o artigo?

Amorim – Eu acho que havia todo dia uma notícia ruim sobre o Itamaraty. E isso correspondia também a uma certa queda na própria autoestima dos diplomatas. Eu pessoalmente me senti muito responsável pelos jovens diplomatas. Não é à toa que meu primeiro livro se chamou Conversas com Jovens Diplomatas.

Durante meu período, aumentei em 40% as vagas (no Itamaraty). As pessoas entraram para o ministério porque confiaram na política e na carreira. E a maior recompensa é se sentir realizado profissionalmente, isso eu sempre digo.

Agora, você tem que ter um mínimo de condições pessoais de vida, não pode estar com a sua família com risco de doença o tempo todo. Isso aparentemente estava ocorrendo, ou pelo menos se dizia que estava ocorrendo.

Eu me senti obrigado a fazer uma constatação, mas esperançosa, de que foi uma flutuação passageira.

BBC Brasil – Na sua época à frente do Itamaraty, o país vivia um momento de muito otimismo, o “boom” do Brasil, e o senhor teve uma parceria muito positiva com o ex-presidente Lula, desfrutava de bastante autonomia. Sempre se diz que a presidente Dilma não tem muito esse estilo…

Amorim – Eu não posso falar sobre a atual presidenta.

BBC Brasil – Mas a pergunta é se é importante essa autonomia para o chanceler.

Amorim – Não sei se é autonomia, eu procurava agir da maneira que achava que o presidente Lula também pensava. Eu sinto que havia uma grande afinidade de ideias. Mas eu conversava com ele com frequência, e sabia qual era a orientação que ele tinha. Tanto que eu repito muitas vezes no livro: política externa não é do ministro do Exterior. Política externa é do presidente.

BBC Brasil – O senhor acha que a presidente Dilma pode ser persuadida a colocar mais ênfase na política externa?

Amorim – Eu acho que a presidente Dilma sabe muito bem o que ela precisa fazer. E se ela quisesse o meu conselho, ela teria pedido.

O que estou dizendo é que a dimensão do Brasil no exterior não pode ser separada do crescimento interno. É tudo parte do mesmo processo. Você adquire mais prestígio no mundo e isso acrescenta às suas possibilidades de dialogar com tomadores de decisão em outras áreas. Se você olhar por um prisma puramente econômico, nós quintuplicamos o comércio com países africanos e quadruplicamos o comércio com países árabes. Isso em sete ou oito anos.

BBC Brasil – Mas qual seria o risco de o governo atual não atentar para os problemas (no Itamaraty)?

Amorim – Não tenho uma bola de cristal, mas a minha impressão é que a própria designação do atual ministro (Mauro Vieira), uma pessoa muito competente, equilibrada, hábil, é uma demonstração de que há, sim, um desejo de melhorar as coisas. É indício de que as pessoas – não é só uma, são várias – despertaram para a importância de se manter uma boa diplomacia – e uma boa diplomacia necessariamente implica diplomatas com uma autoestima elevada.

Uma boa diplomacia é essencial para uma boa política externa. As duas coisas andam juntas. A boa diplomacia nunca salvará uma má política externa, mas uma má diplomacia pode estragar até uma boa política externa. E esse é o risco que a gente corre se, por qualquer motivo, a diplomacia, ou os recursos para ela, não forem levados em conta.

BBC Brasil – O ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, está indo para Caracas com seus colegas do Equador e da Colômbia para iniciar conversas com o governo e a oposição na Venezuela (o ministro cumpriu agenda no país na última sexta-feira). Que papel o senhor acha que o Brasil deve ter nesse momento de acirramento de tensões no país?

Amorim – Os problemas da Venezuela ninguém de fora pode resolver. Nem deve tentar resolver. O que nós podemos fazer é ajudar para que as forças políticas da Venezuela busquem elas próprias uma solução. Você não pode ter um país totalmente dividido. Você não vai governar metade do país contra a outra metade do país, você tem que governar o país inteiro.

É preciso que haja entendimento também da oposição de que ela não pode tratar um governo que foi legitimamente eleito como se pudesse ser derrubado de uma hora para outra. Isso não é cabível.

É possível em tese, buscar essa aproximação. Certamente haverá muitos que querem participar porque isso traz ganhos para a Venezuela. Agora, a eleição, quem foi eleito, isso tem que ser respeitado. Não é porque no meio do governo você achou que estava ruim, então… não pode.

BBC Brasil – Este ano, em dezembro, haverá eleições na Venezuela, em meio à preocupação com um autoritarismo crescente no país. O Brasil deve buscar envolver outros países nas conversas com o país?

Amorim – Quando houve uma crise semelhante, quando nós assumimos em 2003, o Brasil propôs criação do grupo de amigos da Venezuela. Esse grupo reuniu os Estados Unidos, que tinham relação com a oposição (venezuelana), Portugal e Espanha, na época com governos conservadores, também Chile e México… Com isso conseguimos criar um ambiente que facilitou o diálogo. E esse diálogo propiciou que um fato que fazia parte do calendário eleitoral ocorresse tranquilamente, evitando que houvesse outras aventuras.

BBC Brasil – Se houver uma escalada autoritária na Venezuela, isso pode ameaçar a presença do país no Mercosul?

Amorim – Esperemos que não haja. Através desse diálogo, que acho que deveria haver, você vai mitigar qualquer tendência nesse sentido, se é que ela existe. O que sempre ocorre nessas situações é que um culpa o outro: ‘eles tentaram o golpe, então tive que fazer isso’. Nós temos que tirar esse círculo vicioso de uma escalada negativa e colocar um círculo virtuoso de ações positivas.