A primeira delas, “Lampião”, de 1931, foi publicada na revista alagoana “Novidade” e hoje consta do livro de crônicas “Viventes das Alagoas”. Graciliano já explicitava que não lhe interessava apenas o indivíduo Virgulino Ferreira, mas a motivação do “lampionismo”: a necessidade de viver levava os sertanejos a aderirem ao banditismo.

Posterior à prisão de Graciliano (1936), como os demais textos mencionados, “Dois Irmãos” chama a atenção para as “chuvas de notícias sangrentas” que vinham do Nordeste em 1938: o problema da seca na região, não resolvido até hoje, aponta para o fator econômico e político, fonte de violência. A barbaridade afligia o escritor, então no Rio de Janeiro, migrante forçado, saído da cadeia no início de 1937. A estrutura social fincada em desigualdades, gerando fome e luta por sobreviver, resultava na violência de cangaceiros e da polícia, patente na degola de Lampião e de seu grupo em julho de 1938 e na exposição das cabeças, atrocidades tão noticiadas à época.

Revoltado contra injustiças e desejoso de ação, porém intelectual, afeito à palavra escrita, Graciliano se inquietou com as questões do cangaço e do beatismo. Mais do que meros assuntos na ordem do dia, eles carregam uma rede de problemas que atingiam a sensibilidade do escritor, pedindo-lhe reflexão e forma artística.

O mote de “Dois Irmãos” é “Pedra Bonita”, romance de José Lins do Rego lançado em 1938. Mas Graciliano não trata minuciosamente do livro, e sim de uma divisão nele presente, entre dois irmãos – o cangaceiro e o afilhado do padre. Com agudez, destaca que “a dispersão de forças” entre os irmãos, ambos desgraçados e sequiosos de mudanças, porém adeptos de “processos de salvação contraditórios”, favorecia seus opressores.

É notável a força poética e crítica do artigo de Graciliano. Evocando as imagens de Esaú e Jacó, o bruto e o sonhador, mostra que fome e injustiças levavam sertanejos à brutalidade, à sede de vingança, daí o lampionismo; mas também podiam resultar em resignação, no potencial de piedade e de consciência crítica. Nesses caminhos possíveis dos sertanejos, o leitor reconhece os impasses que dão forma às personagens de Graciliano.

O “Esaú sertanejo” é Lampião: depois de aguentarem injustiças, muitos se entregavam ao cangaço, a assassinatos e roubos – reações violentas à exploração no eito, aos desmandos dos soldados, dos poderosos.

“Esaú é arrojado, tem o coração ao pé da goela e pouco interior. O que vem de fora não o penetra muito: bate e volta, traduz-se em movimento. E como o que recebe de ordinário é brutalidade, a brutalidade faz ricochete e atinge quem o ofendeu. […] Por isso, quando na feira um soldado lhe planta a reiuna em cima da alpercata, apruma-se e rebenta-lhe o focinho com um murro, se o agressor está desacompanhado; se não está, vai esperá-lo numa volta de caminho, passa duas semanas emboscado […]. Mata-o, fura-lhe a carótida com o punhal […].”

Essa imagem do Esaú sertanejo traz à mente o desejo irrealizável de Fabiano, de “Vidas Secas” (1938): tornar-se cangaceiro e se vingar do soldado que o prendera injustamente e o espancara – matar os donos do soldado, os governantes. E como não pensar em Paulo Honório, de “São Bernardo” (1934), cuja realidade de explorado se traduziu em movimento até que, assassino e ladrão, ele se fizesse proprietário explorador? Funcionário humilhado, Luís da Silva respondeu com ódio de “cangaceiro emboscado” a Julião Tavares, redundando no crime de “Angústia” (1936).

Já o outro irmão, o Jacó sertanejo,, é o homem capaz de sonhos, gentileza, piedade e paciência. A miséria o acompanha: “Jacob, homem de sonho, diverge muito do irmão. É doce, resignado, constrói escadas que anjos percorrem, aguarda longos anos a realização de promessas que julga ter recebido. Como as promessas não se efetuam, fica outros anos encolhido, espiando o céu. […] esse homem piedoso continua miserável, habitante duma região medonha que certa literatura tem revelado indiscretamente”.

Diversa dessa divisão de caracteres de “Pedra Bonita”, a arte da personagem Fabiano é carregar em si a tensão entre os “dois irmãos”. Esaú e Jacó sertanejo, embora bruto e sedento de se vingar das injustiças, o retirante não mata o soldado: “guarda a sua força”, é ético em sua resignação e apego aos sonhos de mudança junto à família. Também Paulo Honório e Luís da Silva têm uma face de Jacó: narradores de suas tragédias, doçura e piedade convertidas em angústia, são homens de sonhos frustrados.

Ressaltam do artigo a sensibilidade e o olhar crítico às incongruências do país, em que o intelectual, Lampião de palavras, entre o ímpeto revoltoso de Esaú e o sonhar compungido de Jacó, é combatido como “extremista”. Graciliano alude com ironia à sua prisão (1936): a denúncia dos problemas da realidade brasileira, tornada chavão com a revolução de 1930, redundou em sofrimento para quem denunciava de fato, sem enfeites, os molambos.

Assim, “Dois Irmãos” expressa o desejo do escritor de que se observasse o cangaço em sua complexidade: propalado como heroico pela imprensa, o assassinato de alguns bandoleiros pela força policial não significava o fim da miséria no Nordeste.

Em sua arte, assim como ao dirigir a Instrução Pública de Alagoas, Graciliano agiu contra a miséria, a ignorância e os preconceitos gritantes. Esse “extremismo” seria repreendido com a prisão do escritor, e a ironia da carta (não enviada) a Getúlio Vargas, igualmente de 1938, nos cala.

“[…] Como disse a V. Excia., a comissão repressora dum dos extremismos […] achou inconveniente que eu permanecesse em Alagoas, trouxe-me para o Rio e concedeu-me hospedagem durante onze meses. Sem motivo, suprimiu-se a hospedagem, o que me causou transtorno considerável. Agora é necessário que eu trabalhe, não apenas em livros, mas em coisas menos aéreas. Ou que o Estado me remeta ao ponto donde me afastou, porque enfim não tive intenção de mudar-me nem de ser literato. […] ignoro as razões por que me tornei indesejável na minha terra. Acho, porém, que lá cometi um erro: encontrei 20 mil crianças nas escolas e em três anos coloquei nelas 50 mil, o que produziu celeuma. Os professores ficaram descontentes, creio eu. E o pior é que se matricularam nos grupos da capital muitos negrinhos. Não sei bem se pratiquei outras iniquidades. É possível. Afinal o prejuízo foi pequeno, e lá naturalmente acharam meio de restabelecer a ordem.”

Ieda Lebensztayn, autora de “Graciliano Ramos e a Novidade: o Astrônomo do Inferno e os Meninos Impossíveis” (Editora Hedra), é doutora em literatura brasileira pela USP e pós-doutoranda no IEB-USP, bolsista da Fapesp

Publicado no Valor Econômico de 17/5/2013