O estudo da relação dialéctica entre estrutura e história é essencial para uma compreensão adequada da natureza e das características de qualquer formação social para cujos problemas se procurem soluções sustentáveis. Isto é particularmente importante no caso da formação social do capital, com a sua tendência inexorável para uma determinação totalmente abrangente e estruturalmente incorporada de todos os aspectos da reprodução social e da – realizável pela primeira vez na história – dominação global implícita nesta forma de desenvolvimento. Não é, portanto, de forma alguma acidental que, em prol da mudança estrutural exigida, Marx seja levado (quando, no período histórico de crises e explosões revolucionárias da década de 1840, articulou a sua própria – e radicalmente nova – concepção da história) a concentrar sua atenção crítica no conceito de estrutura social.

Na sua primeira grande obra de síntese, os Manuscritos económicos e filosóficos de 1844, Marx sublinha que, no decurso do desenvolvimento histórico moderno, a ciência natural, através da assimilação das práticas materiais da produção industrial capitalista, se tornara, de uma forma alienada, a base da vida social; circunstância essa que Marx considerava ser “a priori, uma mentira”. [1] Do seu ponto de vista isto teria de ser rectificado libertando a própria ciência do seu invólucro alienante. Ao mesmo tempo a ciência tinha de ser mantida, numa forma qualitativamente modificada, refeita como “a ciência do homem” [2] – intrinsecamente inseparável da “ciência da história” – enquanto base enriquecedora e gratificante da vida humana efectiva. Porém, para alcançar esta transformação fundamental, era absolutamente necessário entender e pôr a nu as determinações estruturais profundamente enraizadas através das quais a potencialidade criativa do trabalho humano, incluindo o esforço científico de indivíduos na sociedade, fora subjugada pelos imperativos alienantes da expansão e acumulação de capital fetichista/incontrolável.

Por esta razão a categoria estrutura social tinha de adquirir, de uma forma absolutamente tangível, uma importância seminal na visão marxiana. Ao contrário do que acontecia nas abordagens filosóficas especulativas que dominavam aquela época, não poderia haver nada de misterioso acerca da análise necessária da estrutura social. Nem tão pouco podia ser permitido a interesses políticos escusos ofuscar as questões em causa, em prol de uma apologia do estado especulativa e transubstanciada.

Já em 1845, Marx destacava energicamente, na sua contribuição para o livro escrito com Engels, A ideologia alemã, que todos os elementos relevantes da análise teórica em questão, podiam ser objecto de observação empírica e de análise racional. O quadro conceptual explicativo teria de se tornar totalmente inteligível com base nas práticas correntes de reprodução da sociedade, nas quais os seres humanos se encontravam quotidianamente envolvidos. Neste sentido, Marx insistia que a única investigação teórica válida teria de ser capaz de trazer à superfície, “sem qualquer mistificação ou especulação, a relação da estrutura social e política com a produção. A estrutura social e o estado estão em constante evolução a partir do processo vivencial dos indivíduos determinados.” [3]

Esta aproximação teórica desmistificadora, que visava não apenas as condições próprias à época de Marx mas que tinha, enquanto explicação histórica estruturalmente ancorada no passado e no futuro, uma validade universal, teve um papel radicalmente emancipador no quadro das explosões revolucionárias da década de 1840, continuando desde então a ter uma função emancipadora vital.

Ao concentrar-se no processo vivencial dos indivíduos determinados envolvidos na alienante produção industrial capitalista, tornou-se clara para Marx “a necessidade, e ao mesmo tempo as condições, de uma transformação tanto na estrutura industrial como na estrutura social” [4] Isto é, tornou-se possível compreender tanto a necessidade de uma profunda transformação em si mesma, como a natureza objectiva das condições que deveriam ser objecto dessa transformação. Estas últimas correspondiam às características estruturalmente determinadas da vida social, ao mesmo tempo que realçavam a crescente gravidade da crise em questão, uma vez que eram as mais profundas determinações estruturais das condições objectivas que exigiam essa mesma alavancagem prática tangível e abrangente enunciada por Marx. Devido às características inerentes aos problemas encontrados, a alavancagem exigida para a superação dessa crise histórica não poderia ser outra senão a transformação radical da estrutura industrial e social.

É por esta mesma razão que, aos olhos de Marx, uma simples alteração das circunstâncias políticas não estaria à altura da grandeza da tarefa histórica. Aquilo que se afigurava como realmente necessário era nada mais, nada menos que uma mudança estrutural qualitativa capaz de abarcar a totalidade dos processos fundamentais de reprodução da sociedade. Evidentemente, uma mudança deste tipo teria de incluir a esfera política em toda a sua extensão, desde as instituições legislativas mais gerais às entidades locais de regulação. No entanto tal mudança não poderia limitar-se ao domínio político, visto que tradicionalmente, mesmo as maiores sublevações políticas do passado tendiam a mudar apenas a elite dirigente, mantendo a estrutura exploradora da reprodução material e cultural na mesma situação de articulação hierárquica de classes.

Assim, de acordo com a concepção marxiana, a “estrutura social e política” teria de ser integralmente transformada, e tal transformação teria de ser levada a cabo pelos indivíduos sociais referidos na nossa última citação de A ideologia alemã. Como Marx deixa bem claro num outro escrito do mesmo período de sublevações revolucionárias, a tarefa histórica teria de ser realizada, pelos indivíduos sociais, através de reestruturação de “alto a baixo das condições da sua existência política e industrial e consequentemente de toda a sua maneira de ser”. [5]

A questão da estrutura social não pode ser correctamente perspectivada sem uma apreciação dialéctica e multifacetada de todos os factores e determinações complexas nela envolvidas. Pois a mais simples das verdades é que, em toda a forma particular de ordem reprodutiva da Humanidade, a estrutura social não pode ser compreendida sem a correspondente articulação com a dimensão histórica; e que, inversamente, não pode existir uma real compreensão do movimento histórico sem a compreensão, na sua especificidade, das determinações materiais estruturais correspondentes.

Neste sentido, a história e a estrutura das condições do humano estão sempre profundamente interligadas. Por outras palavras, não pode existir, em qualquer forma social concebível, uma estrutura pertinente abstraída da História, no seu curso dinâmico de desvelamento; nem História em si mesma, sem as estruturas associadas que sustentam as características essenciais que determinam a formação social em questão.

Ignorar o carácter correlativo da estrutura e da história acarreta as mais desastrosas consequências para a produção teórica, pois uma abordagem anti-dialéctica resulta necessariamente ou numa descrição anedótica e filosoficamente irrelevante dos factos e personagens históricas, que apresenta a sequência cronológica “do antes e depois” como contendo em si mesma a sua auto-justificação narrativa, ou num culto mecânico do “estruturalismo”.

A primeira insuficiência é bem demonstrada pelo facto de já Aristóteles classificar os relatos históricos de então como filosoficamente inferiores à poesia e à tragédia, dada a pormenorização anedótica que tais relatos (em sintonia com o significado do termo -istor, à letra testemunha ocular) ofereciam dos acontecimentos. [6] No que toca à violação estruturalista da interligação entre estrutura e história, e à sua substituição por um reducionismo mecanicista de orientação positivista, podemos dela encontrar um exemplo paradigmático na outrora muito influente obra de Claude Lévi-Strauss, como será o caso no último capítulo do presente artigo. [7] Por ora, uma única citação ser-nos-á suficiente para demonstrar o carácter anti-dialéctico e anti-histórico da sua abordagem:

” A História é um conjunto descontínuo composto pelos mais diversos domínios da própria história, cada um dos quais é definido por uma frequência característica e por um diferencial de codificação do antes e depois… A natureza descontínua e taxionómica do conhecimento histórico aparece-nos claramente… Num sistema deste tipo, a alegada continuidade histórica só pode ser garantida por contornos fraudulentos… Será necessário reconhecer que a história é um método sem um objecto claro para que rejeitemos uma qualquer equivalência entre o conceito de história e o conceito de humanidade, correspondência essa que nos tentaram impingir com o intuito dissimulado de fazer da História o último refúgio para um humanismo transcendental: como se o Homem pudesse recuperar a ilusão de liberdade no plano do “Nós” pela simples recusa dos “Eus” desprovidos de consistência. Na verdade a história não está ligada ao homem nem a qualquer objecto particular. Ela consiste inteiramente no seu método, que a experiência demonstra ser indispensável para a catalogação dos elementos de qualquer estrutura, humana ou não-humana, no seu todo.” [8]

Assim a profunda relação dialéctica existente entre continuidade e descontinuidade do desenvolvimento histórico é rejeitada, de forma reveladora, por Lévi-Strauss – rejeição essa que ganha contornos insultuosos ao acusar aqueles que defendem esse mesmo carácter dialéctico de apresentarem raciocínios “fraudulentos” – de modo a permitir restringir o alegado “método sem objecto” da História, de uma forma reducionista e mecanicista, a uma função secundária de “catalogação de elementos de toda estrutura existente”. Desta forma as determinações objectivas, vitais para a compreensão da história realmente existente, são completamente suprimidas.

No entanto, e paradoxalmente para o próprio Claude Lévi-Strauss, como resultado da adopção de uma abordagem mecanicista e reducionista da história, “humana ou não-humana”, o seu conceito de estrutura – que corresponde apenas a uma definição igualmente mecânica de estrutura como aquilo cujos elementos podem ser catalogados e dissecados de forma positivista – revela-se desprovido de qualquer significado explicativo real no que se refere ao desenvolvimento social. Tudo isto é levado a cabo, de acordo com o próprio Lévi-Strauss e com os seus discípulos [9] , no apogeu da influência do Estruturalismo na Europa Ocidental e nos Estados Unidos, em nome do “rigor científico anti-ideológico” mais em voga.

Certamente que a orientação das abordagens “pós-estruturalistas” e “pós-modernas” não poderá de forma alguma ser considerada superior. Todas elas partilham a mesma atitude céptica em relação à História e o mesmo desprezo absoluto das relações e determinações objectivas e dialécticas. Por vezes esta atitude produz enunciados totalmente mistificadores, roçando a mais oca sofística. Assim, o líder teórico do “pós-modernismo”, Jean-François Lyotard, – um arrependido que chegou a integrar o grupo de esquerda francês responsável pela publicação da revista Socialismo ou Barbárie – oferece-nos a seguinte declaração programática: “O que é então o pós-modernismo? É sem dúvida parte do moderno… uma obra pode apenas tornar-se moderna se tiver sido em primeiro lugar “pós-moderna”. O “pós-modernismo assim entendido não é o estado último do modernismo mas o seu estado inicial, e este estado é constante”. [10] Da mesma forma, a concepção programaticamente anti-dialéctica de Lyotard da contraposição das partes (metaforicamente exultadas sob a forma de “pequenas narrativas” ou “petit récits” ) [11] ao todo ( a priori e prontamente rejeitado na forma de “grand narratives”) é incoerente e capitulacionista.

Aquilo que aqui nos ocupa – isto é, a profunda correlação dialéctica entre estrutura e história – não é apenas teórico, muito menos puramente académico. A sua enorme importância é fruto das amplas consequências práticas desta relação para a acção emancipatória dos seres humanos no desvelamento das tendências do desenvolvimento histórico. Pois sem uma real compreensão do verdadeiro carácter das articulações hierárquicas das determinações estruturais da, cada vez mais destrutiva, ordem de reprodução social do capital, com o seu sistema orgânico no qual as partes sustentam o todo e vice-versa, na sua actual e paralisante circularidade recíproca, não pode haver qualquer melhoria significativa em tempo útil.

A ciência revolucionária marxiana, na sua resposta aos problemas complexos que acarreta uma mudança estrutural abrangente – possível pela compreensão dos mecanismos objectivos estrategicamente vitais que alavancam a transformação socio-cultural – foi formulada precisamente com esse objectivo. Um discurso estruturalista conservador, anti-histórico e anti-dialéctico, à la Lévi-Strauss, (que visa a catalogação dos elementos dubiamente identificados do existente e do seu passado mitificado, e junta os lamentos mais pessimistas acerca da “humanidade como o seu pior inimigo”, à desculpabilização das instituições e forças destrutivas do desenvolvimento social e político do capitalismo), é-lhe diametralmente oposto. O mesmo se aplica ao chilreio conservador do discurso pós-moderno acerca das “pequenas narrativas”, inventado com o intuito arrogante de descartar, não apenas implicitamente mas explicitamente, aquilo que Lyotard designa como “as grandes narrativas da emancipação” [12] , assim como para cortar com toda a tradição progressista do passado.

O mais profundo sentido da concepção marxiana é a defesa apaixonada de uma mudança estrutural a ser realizada num sentido histórico global, afectando directamente toda a Humanidade. Sem focar este aspecto do pensamento de Marx, nem a sua mensagem central nem o espírito que o anima são compreensíveis.

Obviamente, a orientação histórica global da mudança estrutural defendida por Marx, com a sua ênfase na urgência das tarefas com que se confrontam os indivíduos no seio da sociedade, devido ao perigo da auto-destruição da Humanidade, só poderia surgir num momento histórico determinado. Todas as formas sociais conhecidas têm os seus limites históricos inexoráveis. Independentemente da idealização do capitalismo como “o sistema natural da mais perfeita liberdade e justiça”, levada a cabo pelos economistas e políticos clássicos do século XVIII (para não mencionar as teorias dos que mais tarde defendem até as piores contradições deste modo de produção), o capitalismo não pode constituir uma excepção a tais limites.

A concepção radicalmente nova de Marx foi tornada possível numa época em que a necessidade objectiva de uma profunda mudança histórica, que permita a passagem da ordem social capitalista a uma outra qualitativamente diferente em todas as suas determinações fundamentais, enquanto modo de controlo metabólico social da humanidade, surge, com a sua finalidade imperiosa, na agenda histórica – com o início da fase descendente do sistema do capital. Esta mudança decisiva no progresso dos processos de reprodução da sociedade do capital, historicamente sem precedentes e em muitos aspectos deveras positiva, coincide com o período de crises e explosões revolucionárias, que Marx testemunhou com profunda lucidez. Graças a esta mudança histórica radical o sistema do capital passou a permitir mudanças parciais, independentemente da sua extensão, mas não mudanças na sua perspectiva global, apesar do grotesco slogan propagandístico do “capitalismo popular”, proclamado pelos beneficiários da ordem dominante.

Como testemunhamos constantemente, a “globalização” é hoje em dia ilusoriamente retratada pelos interesses velados dos poderes estabelecidos como um simples prolongamento da viabilidade do sistema do capital num futuro intemporal, como se a “globalização” fosse uma característica totalmente nova, símbolo do clímax eternizável e da perfeita realização dos destinos da ordem reprodutiva da sociedade do capital. No entanto, a verdade incómoda é que a visão crítica de Marx continha já em si uma perspectiva global inerente, desde o seu início e sobretudo a partir dos anos de 1843-44, demonstrando vigorosamente a irreversibilidade da fase descendente do desenvolvimento do capital.

O princípio desta fase descendente trouxe consigo graves implicações cujo sentido histórico apontava para a destruição da Humanidade, a menos que um modo radicalmente novo de controlo de reprodução social se pudesse substituir à ordem existente. Esta dolorosa verdade apareceu objectivamente no horizonte histórico, em meados do século XIX, como irreversível para a época de então, apesar de nalgumas partes do planeta a ascensão do capital estar ainda longe da sua conclusão como mais tarde Marx explicitamente admitiu. [13]

Este novo período histórico conceptualizado por Marx representava um contraste fundamental com a fase de desenvolvimento ascendente do sistema do capital. Pois a fase triunfante da ascensão do capital, que começara nas primeiras décadas do século XVI, resultou – não obstante o seu impacto alienante em todos os aspectos da vida humana – no maior feito produtivo de toda a história. No entanto, é de forma perturbadora que, no decurso das décadas finais dessa fase ascendente de desenvolvimento, surge um problema, insuperável no quadro do capitalismo, que tenderia apenas a piorar. A saber, o crescimento de uma propensão para a destruição geradora de crise – cujas perigosas implicações foram profundamente compreendidas por Marx bem antes de qualquer outro [14] – prenunciando a implosão da ordem reprodutiva do capital. Implosão essa gerada não por um qualquer desastre natural, mas pelo próprio peso que as contradições sistémicas e os explosivos antagonismos assumem no ponto culminante do domínio e enraizamento global do capital.

Esta determinação contraditória trazia consigo, como horizonte último da fase sistémica descendente, o amadurecimento irreversível dos limites históricos daquela que era de longe a mais poderosa ordem de reprodução social conhecida em toda a história. Por outras palavras, este sério amadurecimento histórico dos limites estruturais absolutos do capital, preconizava não apenas outro período de crise e correspondente sofrimento, cuja recorrência é norma no desenvolvimento do capitalismo, mas a destruição total da Humanidade, como antecipara Marx. Por este mesmo motivo Marx escreveu em A ideologia alemã, dando a sua própria versão da alternativa Socialismo ou Barbárie meio século antes da famosa advertência de Rosa Luxemburgo, que:
“Com o desenvolvimento das forças produtivas chega-se a um momento em que as forças produtivas e os mecanismos de troca são levados a ser aquilo que, no quadro das relações existentes, apenas causa prejuízo, deixando assim de ser produtivas para se tornarem forças destrutivas.” [15] “Assim as coisas chegam a um estado tal, que os indivíduos se vêem obrigados a apropriar-se da totalidade das forças produtivas existentes não apenas para chegar a uma manifestação de si, mas tão simplesmente para salvaguardar a sua própria sobrevivência”. [16]

Além disso, paralelamente a esta mudança qualitativa da fase histórica ascendente para a descendente, também a avaliação teórica dos problemas em questão feita do ponto de vista privilegiado do capital estava em plena mutação. Assim em contraste com a “anatomia da sociedade civil” [17] retratada na “economia burguesa científica” pelos maiores representantes da economia política clássica do século XVIIII e do primeiro terço do século XIX, e generosamente louvada por Marx como “genuína investigação científica”, a defesa acrítica do sistema do capital tornou-se lastimavelmente a regra geral.

Esta mudança de atitude e de perspectiva estava plenamente de acordo com a necessidade ideológica de racionalizar e atenuar as contradições sistémicas que surgiram e se intensificaram no início da fase descendente do desenvolvimento do capital. Concomitantemente, esta degradação da abordagem teórica foi caracterizada da seguinte forma por Marx no “Posfácio à Segunda Edição Alemã” do capital:

“A Economia Politica pode manter-se como ciência somente enquanto a luta de classe estiver latente ou se manifestar apenas em fenómenos esporádicos. [No entanto] em França e em Inglaterra a burguesia conquistou o poder político. Desde então, a luta de classes adoptou, tanto na prática como na teoria, formas cada vez mais claras e ameaçadoras. Ouviu-se então o toque de finados da economia burguesa científica. A questão deixou então de ser se este ou aquele teorema era verdadeiro para passar a ser se ele era útil ou prejudicial ao capital, vantajoso ou desvantajoso, politicamente perigoso ou não. Em vez de investigadores desinteressados foram contratados mercenários; em vez de uma investigação científica genuína surgiu a má consciência e o intento maldoso da apologia.” [18]

Neste sentido é suficiente comparar os escritos de F.A. Hayek com o trabalho de Adam Smith para poder observar as devastadoras consequências intelectuais de trocar, na fase descendente do desenvolvimento do sistema do capital, a preocupação académica com os critérios da verdade pela glorificação daquilo que é “útil e vantajoso para o capital”. Neles encontramos uma hostilidade crassa para com a mais simples menção a tudo o que implique uma posição menos obscurantista do que aquela que é apresentada pelo economista austríaco. Isto é por demais evidente na cruzada cega de Hayek contra as ideias do socialismo denunciadas pelo autor de “O caminho da servidão” e “A arrogância fatal” – bem como pelos seus igualmente reaccionários amigos austríacos e de outras paragens – como sendo politicamente perigosas para o capital.

De forma característica, a apologia pseudo-científica, e por vezes abertamente irracional, que Hayek faz do capital está ávida por descartar toda e qualquer explicação causal. Diz-nos insistentemente que “a criação da riqueza… não pode ser explicada por uma cadeia de causa-efeito”[19] Num resumo revelador da agressiva apologia do capital que caracteriza o seu pensamento, Hayek afirma que “o dinheiro misterioso e as instituições financeiras que nele se baseiam” [20] devem estar isentos de toda a crítica, acrescentando ainda – no espírito da sua obsessiva condenação do espectro do socialismo, que reclama ter descoberto remontar à Grécia Antiga – que “o magnânimo chavão socialista “Produção para o uso, não para o lucro”, que encontramos sob as mais diversas formas de Aristóteles a Bertrand Russel, de Albert Einstein ao arcebispo Câmara (conjuntamente com a ideia, presente desde Aristóteles, de que esses lucros são feitos às custas de outros) revela ignorância sobre a forma como a capacidade produtiva é multiplicada pelos diferentes indivíduos” [21]

A seriedade destes problemas é sublinhada não tanto pelo carácter apologético das teorias económicas dominantes na fase descendente do desenvolvimento do sistema do capital, como pela razão objectiva que leva a que a formulação e a promoção da implementação prática de tais teorias, se tenha tornado deploravelmente a regra geral. Aquilo que mudou fundamentalmente desde Adam Smith não foi o ponto de vista orientador nem a afiliação de classe dos teóricos em questão, mas o posicionamento histórico do ponto de vista em si mesmo do qual as suas concepções surgem, mediante a passagem da fase ascendente à fase ascendente.

Adam Smith, que conceptualizou o mundo do ponto de vista privilegiado do capital, não estava menos comprometido com a defesa da viabilidade do sistema do capital. A grande diferença é que, na época de Adam Smith, a ordem do metabolismo social do capital na sua fase ascendente representava a mais avançada forma de reprodução da sociedade passível de ser realizada pela humanidade. Da mesma forma, a própria luta de classes, favorável ou contrária a uma organização do trabalho, hegemónica e alternativa, qualitativamente diferente da modalidade capitalista de controlo do metabolismo social, era ainda, na época de Adam Smith, “latente ou manifestava-se somente em fenómenos esporádicos e isolados”.

Por outro lado, na época de Hayek, a crescente destrutibilidade do sistema socio-económico capitalista, devida à fase irreversivelmente descendente do seu desenvolvimento, juntamente com o surgimento das suas contradições internas antagónicas, sob a forma das duas devastadoras guerras mundiais que conheceu o século XX, pode ser apenas negada – novamente do ponto de vista privilegiado do capital, mas desta vez com uma verdadeira “Arrogância Fatal” capaz de repudiar um pensador como Aristóteles como sendo um “socialista ignorante” – no quadro da mais crua e beligerante apologia do capital. Dada esta mudança fundamental do campo histórico objectivo em que se alicerça o ponto de vista privilegiado do capital (da sua fase ascendente para a fase descendente), a necessidade de uma mudança estrutural do sentido histórico global – a ser realizada pelos indivíduos sociais, como nos era anunciado na alternativa dramática entre “Socialismo ou Barbárie”, “não apenas para chegar a uma manifestação de si, mas simplesmente para salvaguardar a sua própria sobrevivência” – já não poderia ser afastada do horizonte histórico.

A forma mais eficaz de adiar o “momento da verdade” e assim prolongar o domínio do capital sobre a vida humana, não obstante o seu carácter cada vez mais destrutivo e a sua crise estrutural, seria a sua própria transformação num híbrido. Esta hibridização assumiu, nos países onde o capitalismo estava mais avançado, a forma de um envolvimento directo do estado no “mercado livre” através de uma injecção massiva de fundos públicos que visava a revitalização das empresas capitalistas. Esta tendência foi bem demonstrada pela “nacionalização” em larga escala – facilmente reversível – de vários sectores vitais da economia capitalista britânica, que se encontravam em situação de falência, pelo governo do “antigo” Partido Trabalhista liderado por Attlee em 1945. Este resgate indispensável ao capitalismo britânico do pós-guerra foi falaciosamente descrito como um feito genuinamente socialista. [22]

Este tipo de operações são levadas a cabo com o único intuito de assegurar a continuidade e a viabilidade da ordem reprodutiva estabelecida, através de diversas contribuições económicas por parte do estado (com fundos extraídos às contribuições fiscais dos seus cidadãos), politicamente motivadas pela defesa do sistema do capital e com as quais Adam Smith não poderia nem sonhar. Estas vão desde os recursos astronómicos que são continuamente postos à disposição da indústria militar aos triliões de dólares envolvidos nos fundos de resgate dos bancos privados e das seguradoras, que tiveram lugar não só em 2008 e 2009 como em 2010, os quais se responsabilizaram desde logo a cobrir 90% de eventuais perdas que as mesmas companhias possam vir a ter no futuro.

Historicamente, trata-se de um fenómeno relativamente recente no desenvolvimento do capitalismo. O seu significado e a sua dimensão potencial não eram algo de evidente para a época de Marx. Pois “no século XIX as possibilidades de reajustamento do capital como um sistema híbrido de controlo – que se tornaram manifestamente claras no século XX – eram ainda imperceptíveis ao escrutínio teórico.” [23]

Esta hibridização do sistema tem hoje um papel absolutamente decisivo no prolongamento da esperança de vida do sistema do capital. No entanto esta forma de envolvimento directo do estado na “salvação do sistema” [24] – pela transferência de imensos fundos públicos e até pela “nacionalização” em toda a linha dos prejuízos resultantes das falências do capital – tem os seus limites e acarreta amplas consequências para o desenvolvimento futuro, não podendo por isso ser equacionada como uma solução permanente.

Em 1972, na minha crítica ao conceito de capitalismo de Max Weber, salientava que:
“é bastante impreciso caracterizar o capitalismo em geral como algo que se define como o “investimento do capital privado”. Tal definição é apenas válida para uma fase determinada do desenvolvimento histórico do capitalismo e não é um “tipo ideal” no sentido weberiano. Ao enfatizar o investimento do capital privado, Weber acaba por defender acriticamente um dos movimentos mais importantes de desenvolvimento do modo de produção capitalista, isto é, o crescente envolvimento do capital estatal na reprodução continuada do sistema capitalista. Em princípio, o limite máximo desse mesmo desenvolvimento é nada mais que a transformação da forma vigente do capitalismo numa outra forma mais abrangente de capitalismo de estado, que implica teoricamente a total abolição da fase específica do capitalismo idealizada por Weber. Porém, é precisamente devido a tais implicações que esta orientação fundamental no desenvolvimento do capitalismo deve ser excluída do quadro ideológico do “tipo ideal” weberiano.” [25]

Esta tendência para um cada vez maior envolvimento directo do estado na transferência de fundos públicos, com o intuito de prolongar a viabilidade reprodutiva do sistema do capital, é apresentada de forma totalmente deturpada pelos mercenários e propagandistas da ordem estabelecida.

Em algumas regiões da Grã-Bretanha, como a Irlanda do Norte por exemplo, a gestão e exploração capitalista do “sector público”, tanto no sector da administração como no da saúde e da educação, entre outras actividades económicas, atinge hoje em dia os 71 por cento, sendo que a média nacional ronda os 50 por cento. Ainda assim, a situação actual, onde predomina inegavelmente a hibridização, é descrita, com a habitual hipocrisia e distorção neo-liberal, como “recuo das fronteiras do estado” (”rolling back the boundaries of the state”), ou através de outras formulações deturpadas do mesmo tipo, como ” a retirada do estado”.

Desta forma, como já o fizera The Economist, outro proeminente órgão de imprensa da burguesia internacional, o londrino Financial Timesdefende um novo “momento Beveridge”, numa óbvia alusão ao Lorde Beveridge, influente político liberal que, no final da segunda guerra mundial, desenvolveu a teoria do estado social no seu livro programaticamente intitulado “O Pleno Emprego numa Sociedade Livre”. Durante uma crise económica global da mais extrema gravidade, em plena campanha para o parlamento britânico, quando se prevê que a dívida pública inglesa excederá £1,5 mil milhões (aproximadamente US$2,4 mil milhões à taxa de câmbio actual) em apenas quatro ou cinco anos, foi desta forma que os editores do Financial Times formularam o problema do suposto “recuo do estado” no seu principal artigo sobre o assunto:
“Os salários públicos, pensões e postos de trabalho do sector estatal devem ser objecto de um corte. Assim como os serviços públicos. Se o Partido Trabalhista for reeleito o orçamento de estado deverá representar uma repartição dos sacrifícios… o governo está correcto em não cortar excessivamente e de forma demasiado célere, mas isso não deve servir de desculpa para não se planear os cortes futuros… A incerteza deliberada do Partido Trabalhista está a empurrar o que deveria ser um debate profundo acerca do papel do estado – um momento Beveridge – para águas rasas. Quem quer que ganhe as eleições que se avizinham administrará o recuo do estado” [26]

Assim o verdadeiro significado da expressão “retirada do estado” – assim como do cínico e amplamente publicitado slogan neoliberal do”recuo das fronteiras do estado”, – é a camuflagem editorial da apologia do “planeamento” (e neste sentido os mais acérrimos defensores da ideologia mercado livre não deixam de ser apologistas de um planeamento), dos modos de transferência dos benefícios financeiros libertados pelos drásticos cortes nos “salários públicos, pensões e postos de trabalho do sector estatal”, assim como nos “serviços públicos”, para os bolsos sem fundo das empresas capitalistas, elas mesmas ainda mais gravemente falidas. Noutras palavras, este novo “momento Beveridge”, defendido pelos editores do Financial Times, significa na prática, a liquidação planificada daquilo que ainda sobra do estado social por parte do próprio estado capitalista. [27] Tudo isto é levado a cabo, justificado pela “nobre causa da salvação do sistema”, através de um grande envolvimento do estado, atingindo somas astronómicas, na cada vez mais frágil viabilidade da ordem reprodutiva do capital, nesta fase histórica descendente do seu desenvolvimento sistémico, indelevelmente marcada pelo aprofundar da sua crise estrutural.

No entanto, este tipo de linha editorial, reveladora de uma profunda consciência de classe, como a que podemos ler em The Economist ou noFinancial Times, mais não é do que uma mistura de quixotismo e hipocrisia. A combinação destes dois componentes é bem ilustrada pelo facto de ser publicado, na coluna imediatamente adjacente ao editorial acima citado do Financial Times de 23 de Março de 2010, um artigo que critica o”Fundo de Investimento Estratégico” de 950 milhões de libras, recentemente anunciado pelo governo trabalhista, no qual se incluem várias verbas, que ascendem até 500 mil milhões de libras.

As críticas expressas neste artigo não são dirigidas contra as crescentes verbas estatais cedidas às empresas privadas – neste sentido não se pode falar de “recuo do estado”, pois o estado é mesmo encorajado a continuar as generosas distribuições de capital. As críticas têm como objecto apenas o nome do Fundo, que, na opinião do jornalista em questão, deveria chamar-se “Fundo Estratégico de Reeleição”. [28] Desta forma, o autor do artigo não procurou questionar o conteúdo do fundo, sem o qual o sistema que ele próprio defende não sobreviveria, mas apenas denunciar o que acreditava ser uma sagaz manobra eleitoral.

O carácter simultaneamente hipócrita e quixotesco da argumentação defensora do “recuo do estado” é demonstrado pelo facto de que, na actual fase histórica do desenvolvimento capitalista, é impensável aplicar os cortes nas várias áreas do sector público da economia, e correspondente despesa com o desemprego, que os editores do Financial Times gostariam de ver postos em prática com o intuito de fortalecer o frágil sistema produtivo e financeiro capitalista. Pois a hibridização do sistema conheceu nos últimos cem anos proporções tais – chegando hoje a 50% dos países capitalistas mais avançados e apesar dos protestos das várias forças políticas conservadoras (incluído o Partido Trabalhista) – que o actual plano de intervenção selvagem que procura abolir esta tendência está condenado a um novo falhanço. Estes virtuosos apelos a uma”saudável contabilidade capitalista ” juntam-se à monótona repetição da promessa de ” reequilibrar a balança a favor do sector privado “. Tudo o que estas medidas podem conseguir é a imposição de condições de vida cada vez mais duras às massas populares e nunca a abolição da tendência contraditória de hibridização do sistema.

Na verdade, este assunto “diz respeito à estrutura actual do modo de produção capitalista no seu todo, e não apenas a um dos seus sectores. Não será razoável pensar que o estado é a solução para o problema, por mais dinheiro público que continue a ser desperdiçado durante estas reveladoras operações de resgate… A capacidade de intervenção do estado na economia – que até a bem pouco tempo era considerado o pior remédio para qualquer problema da “moderna sociedade industrial” – tem como única consequência o crescente agravamento destas contradições. Quanto maior é a dose administrada ao paciente em convalescença, maior é a sua dependência”. [29]

Neste sentido, vemo-nos confrontados com uma contradição fundamental do sistema do capital. Qualquer que seja o lado da contradição apresentado pelos seus defensores, este está condenado a ser anulado pelo seu oposto. Por um lado, a longo prazo, as doações de somas astronómicas necessárias ao financiamento do processo de hibridização do sistema do capital, produtivamente cada vez mais problemático, e financeiramente mais aventureiro e fraudulento, juntamente com o crescimento da gestão privada do “sector público” – agora manipulada sob a forma das cínicas PPPs (Parcerias Público-Privadas) [30] , bastante proveitosas para o capital privado – estão condenadas ao esgotamento, minando assim a própria viabilidade das doações estatais.

Por outro lado, esta equação imposta ao capital pelo desenvolvimento histórico, a virtuosamente laudatória defesa do “viver dentro das suas possibilidades” – ou seja, a diminuição necessária da actividade económica em sintonia com os cortes draconianos nos “empregos, pensões e salários” assim como nos ” serviços públicos”, feita com o intuito de reduzir uma “dívida nacional” que ascende já a milhares de milhões e que não dá sinais de decrescer – no quadro de um sistema de reprodução social que funciona com base na sua mitologia de crescimento incessante: um crescimento auto-destrutivo, que no final de contas não significa mais que a alienante mas absolutamente necessária expansão e acumulação do capital, reveladora de um completo desprezo pelas consequências – um sistema reprodutivo deste tipo, operando sobre tais princípios contraditórios pode apenas implodir.

Por esta mesma razão, só uma mudança histórica global pode apresentar uma esperança na superação das contradições sistémicas do sistema do capital nesta fase específica de crise estrutural. Uma mudança histórica estrutural sustentada, cujo princípio orientador fundamental é a criação de uma ordem reprodutiva social radicalmente diferente.

A hibridização sistémica que vemos crescer nos nossos dias, apesar de variadas tentativas políticas para a conter, juntamente com a mitologia da superioridade “do sistema privado de empreendedorismo” e dos seus “indivíduos consumidores soberanos “, é parte de um problema mais geral e mais grave que tem vindo a ganhar força no decurso dos últimos 100 anos. A causa subjacente a este problema pode ser descrita como a estreita margem de manobra histórica das alternativas objectivamente ao alcance do capital para deslocar e procurar controlar as suas contradições antagónicas.

A tripla destrutividade do capital, que se apoia – (1) no sector militar, com as suas guerras imperialistas que se sucedem desde as últimas décadas do século XIX, às quais se juntam as devastadoras armas de destruição massiva desenvolvidas nos últimos 60 anos; (2) na intensificação do impacto cada vez mais óbvio do capital na ecologia, que põe em risco as bases naturais da própria sobrevivência humana; e (3) no domínio da produção material e crescente desperdício, resultado do avanço da “produção destrutiva”, que tomou o lugar da muito publicitada “destruição criativa” ou “produtiva” – é a consequência necessária dessa estreita margem de manobra.

Desconcertantemente para o capital, nem o perigoso crescimento da destrutibilidade nem a consensual hibridização deste sistema antagónico – hibridização essa que foi usada durante muito tempo para deslocar os antagonismos do capital nos países mais poderosos, e continuará a ser usado desta forma enquanto a viabilidade política e económica não for posta em causa pelo intensificar da crise estrutural – podem oferecer uma solução de longo termo para a objectivamente estreita margem de manobra.

É parte das características essenciais que definem um sistema antagónico, que este seja estruturalmente incapaz de resolver as suas contradições internas. É precisamente isso que o define objectivamente como um sistema antagónico. Desta forma, tal sistema necessita de instaurar outros modos de lidar ou gerir – enquanto puder – as suas contradições sistémicas na impossibilidade de as resolver. Pois uma solução historicamente viável e sustentável, transformaria o próprio sistema capitalista numa forma não antagonista de escapar às suas mais fundamentais determinações hierárquicas estruturais de exploração que, ao contrário do pretendido pelo “capitalismo de rosto humano”, o definem realmente como uma ordem social reprodutiva insuperavelmente antagónica. É por isso que, de forma nada surpreendente, a ideologia apologética do capital mais promovida e omnipresente é a da negação, requintada ou grosseira, da mais remota possibilidade de antagonismo sistémico historicamente criado (e historicamente ultrapassável), antagonismo esse que é apresentado de modo deturpado como um conflito individual, supostamente determinado pela sempiterna “natureza humana”.

Todavia, uma tal negação do antagonismo sistémico pela ideologia dominante, independentemente de quão sofisticadamente camuflada ou cinicamente grosseira seja, não pode exorcizar o problema subjacente. Com efeito, tal problema pode apenas agravar-se nos tempos vindouros, como já aconteceu no contexto histórico das últimas décadas, marcado pelo agravamento da crise estrutural do capital. Isto sucede na medida em que há apenas dois modos segundo os quais uma ordem de reprodução social fundamentalmente antagónica pode lidar com as suas contradições sistémicas fundamentais: (1) deslocando-as temporariamente ou (2) impondo-as aos seus adversários através de todos os meios ao seu dispor, incluindo os mais violentos e destrutivos. Neste duplo sentido:

Ao deslocar os antagonismos através de todos os meios disponíveis sob as condições dadas. Como, por exemplo, através de todas as variações de exportação das contradições internas que representa a bem conhecida diplomacia canhoneira do Império Britânico, geradora de consensos sociais imperialistas, mistificadores e chauvinistas, transubstanciados e propagandeados como “fardo do homem branco” . Ou, alternativamente, através das práticas, militarmente menos óbvias mas mais eficazes do ponto de vista político-económico, de usurpação global “modernizadora” levadas a cabo, no pós-II Guerra Mundial, nas áreas menos desenvolvidas do planeta [31] , de acordo com a pretensa ideologia pós-imperialista – e isto por tanto tempo quanto esta modalidade de gestão dos antagonismo sistémicos do capital pela sua deslocação/exportação for praticável pelos poderes por enquanto dominantes a nível internacional (e, claro, apenas por alguns, à custa dos outros).

Ao impor brutalmente aos seus adversários de classe, em situações de agravamento da crise, os imperativos violentamente repressivos próprios de um reforço do seu poder de classe, pondo de lado, em nome de estados de emergência socialmente necessários e “justificados”, as ficções da “democracia e da lei”. Ou, no caso de confrontos sistémicas inter-imperialistas, impondo ao rival mais fraco e aos inimigos do Estado, os interesses e as condições “não negociáveis” do poder militarmente dominante, e isto no sentido mais alargado e por todos os meios possíveis, incluindo guerras de extermínio, como fica demonstrado pelas duas guerras mundiais de que o século XX foi testemunha.

O problema para a ordem dominante é que nem o deslocamento exportador, através da usurpação globalizada, das contradições antagonistas do capital – ao qual se une um impacto devastador numa natureza, cuja sustentabilidade não apresentou, durante longos períodos históricos, dificuldades de maior – nem a imposição violenta dessas mesmas contradições ao adversário a ser subjugado, pela força definitiva da guerra de extermínio são, hoje em dia, prontamente realizáveis . Com efeito, não restam, hoje em dia, regiões significativas do planeta passíveis de serem usurpadas pelo poderes capitalistas dominantes, nem pela via directa da invasão militar imperialista, nem pela recentemente instituída dominação económica “modernizadora” , visto que o domínio global do capital, descrito por Marx na citada carta a Engels [32] , já está historicamente consumado. Por outras palavras, a usurpação capitalista é, hoje em dia, completa, ainda que não sob a forma idílica da “globalização” [33] , glorificada pelos seus ideólogos profissionais e pelos seus mercenários. O capital domina e explora actualmente o nosso planeta de todos os modos que estão ao seu alcance, no quadro da sua tripla destrutividade; mas não poderá nunca resolver ou deslocar adequadamente os seus antagonismos estruturais e contradições explosivas em proveito da sua tranquila expansão e acumulação.

Para além disso, a tradicional “solução final” do capital para o agravamento dos problemas, através guerra ilimitada travada no passado contra inimigos reais ou potenciais, tornou-se impraticável graças à invenção de armas de destruição massiva, actualmente plenamente operacionais, que destruiriam totalmente a humanidade no caso de uma nova guerra mundial. As contínuas guerras parciais – mesmo quando nelas é aplicada a dura estratégia militar da “força esmagadora” , com os seus imensos, e ainda mais insensivelmente denominados “danos colaterais” infligidos às populações, como no Vietname e tantos outros sítios – não podem senão aprofundar a crise estrutural do sistema do capital, sem nunca oferecer uma alternativa ao modelo imperialista do vencedor e do vencido.

Desta forma, o estreitamento das alternativas do capital no que toca à gestão dos seus antagonismos internos – os quais são inseparáveis da fase descendente do desenvolvimento do capital – traz consigo importantes consequências para o futuro, uma vez que a verdade é – e será sempre – que os problemas estruturais exigem soluções estruturais e clamam, como veremos, por remédios estruturais historicamente sustentados, num espírito genuinamente socialista, realizáveis apenas através da reconstituição da dialéctica histórica que foi radicalmente subvertida pelos antagonismos do capital no decurso da fase descendente do seu desenvolvimento sistémico. Foi assim que a ordem metabólica do capital, que outrora realizou aquele que foi de longe o maior desenvolvimento produtivo da História, se transformou no seu contrário, tornando-se de longe o sistema de determinações estruturais mais destrutivo e uma ameaça directa à sobrevivência da Humanidade neste nosso lar planetário.

No entanto, e não obstante todos os interesses velados que a isso se opõem, a irreprimível dimensão histórica da ordem estabelecida não deve ser ignorada e a configuração actual dos traços que a sustentam não deve ser erroneamente interpretada, uma vez que as estruturas sociais não podem – mesmo as mais fortemente entrincheiradas, como a ordem de reprodução social do capital – vigorar como a “lei da gravidade” , exigindo um reconhecimento baseado no modelo da necessidade física. Da mesma forma, a necessidade histórica não pode ser concebida segundo o modelo da necessidade natural, como gostam de fazer os apologistas do capital, concebendo de forma errónea a validade eterna do seu sistema, ao mesmo tempo que acusam Marx de ser, na sua visão do mundo, um “determinista económico”. De acordo com a concepção dialéctica de Marx, a necessidade das fases históricas que se vão revelando é obrigatoriamente uma “necessidade evanescente” e as estruturas sociais – que ele descreve como “evoluindo constantemente a partir do processo vivencial dos indivíduos concretos” – estão submetidas aos mais profundos limites históricos. É a isto que corresponde a dialéctica da estrutura e da História. Pois a estrutura e a História estão sempre profundamente interligadas no contexto humano e a História é, ela mesma, necessariamente aberta. A complexidade e as contradições da globalização, inevitáveis nos nossos tempos, não alteram isso, podendo apenas testemunhar a elevada responsabilidade de enfrentar os desafios envolvidos, como fica claro ao longo deste estudo. Como diz, de forma certeira, um provérbio húngaro: “o que está em jogo não é uma linha de feijões” (”nem babra megy a játék”).

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Notas
1. Marx, Economic and Philosophical Manuscripts of 1844 (London: Lawrence and Wishart: London, 1959), 110.
2. Ibid., 111.
3. Karl Marx and Frederick Engels, Collected Works (London: Lawrence and Wishart, 1975), 5:35 (henceforth MECW).
4. Ibid., 41.
5. Marx, The Poverty of Philosophy, (London: Lawrence and Wishart, 1936), 123. Written in the winter of 1846–47, publicado originalmente em francês em 1847.
6. Ver Aristóteles, Poética, capítulos 8 e 9.
7. Cf. Secção 6.4 do presente livro (a publicar).
8. Claude Lévi-Strauss, The Savage Mind (London: George Weidenfeld and Nicholson Ltd., 1966), 261–62. O original francês, La pensée sauvage, foi publicado em Paris pela Plon em 1962. As tiradas de Lévi-Strauss contra o “humanismo transcendental” foram recuperadas por Louis Althusser e pelo seu circulo como elemento característico fundamental do seu “Estruturalismo Marxista”, e do seu curioso “anti-Humanismo Teórico”.
9. Cf. primeiras 3 páginas da Secção 6.4 deste livro. (a publicar).
10. Jean-François Lyotard, The Postmodern Condition: A Report on Knowledge (Manchester, UK: Manchester University Press, 1979), 79.
11. Ibid, 60
12. Lyotard, “Universal History and Cultural Differences,” The Lyotard Reader (Oxford, UK: Basil Blackwell, 1989), 318
13. Ver a este respeito a carta de Marx a Engels, de extrema relevância, de 8 de Outubro de 1858.
14. Como o seu companheiro de armas, Engels reconhecia e destacava-o: “Marx tinha um ponto de vista privilegiado, viu mais longe, mais amplamente e mais rapidamente que qualquer um de nós” Engels, “Ludwig Feuerbach and the End of Classical German Philosophy”, in Karl Marx and Frederick Engels: Selected Works, vol. 2 (Moscow: Foreign Languages Publishing House, 1951), 349.
15. MECW, 5:52
16. Ibid., 5:87
17. Expressão de Marx usada na sua “Contribuição para a Crítica da Economia Política” acerca dos feitos teóricos elaborados no espírito do ponto de vista dominante do capital pelos mais brilhantes intelectuais burgueses da fase ascendente do capital.
18. Marx, Capital (Moscow: Foreign Language Publishers, 1959), 1:14.
19. F.A. Hayek, The Fatal Conceit: the Errors of Socialism (London: Routledge, 1988), 99.
20. Ibid., 101. Esta grosseira apologia daquilo que “útil e adequado ao capital” é música para os ouvidos daqueles que acreditam que não se deve nem sequer tentar controlar o sistema financeiro global, catastroficamente perigoso, que desperdiça de forma irresponsável de triliões de dólares originados pelo sector produtivo. Há alguns anos atrás citei um artigo do London Sunday Times que dizia que: “para cobrir a sua falta de liquidez, a General Motors, resolveu utilizar o fundo de pensões de 15 mil milhões de dólares, como lhe é permitido pela lei americana. Agora 8,9 mil milhões de dólares de dinheiro destinado às pensões dos seus trabalhadores está a descoberto”. Comentei então, no meu livro Para Além do Capital, que: “a fraude não é algo de marginal ou de excepcional ao sistema do capital, ela pertence mesmo à sua normalidade”(xx). Recentemente o gigante industrial General Motors, que outrora se vangloriava do seu poder ao afirmar que o seu orçamento excedia o da Bélgica, teve de ser salvo da bancarrota pelo estado, apesar do seu comportamento revelador, “permitido pela lei americana”, no caso das pensões dos seus trabalhadores.
21. Hayek, The Fatal Conceit, 104.
22. Esta forma deturpada de representação remonta a um passado distante. Já Engels criticara, numa nota à edição inglesa do seu Do socialismo utópico e do socialismo científico, ao referir: “Tarde no tempo, Bismarck aplicou a estatização das instituições industriais, uma espécie de falso socialismo surgia então, degenerando, aqui e ali, naquele servilismo que prontamente considera que todo o tipo de apropriação estatal, até mesmo a bismarckiana, como sendo socialista.” Marx & Engels, Selected Works, 2:135.
23. István Mészáros, Beyond Capital (London: Merlin Press, 1995), xxi
24. Ver o modo como uma das publicações semanais da burguesia internacional com maior consciência de classe, The Economist, admite abertamente que o mérito fundamental dos milhares de milhões de dólares, “investidos” na boa causa da bancarrota do capitalismo durante a mais recente crise, é o de “salvar o sistema”, como sublinhado em caracteres gigantes na sua primeira página de 11 de Outubro de 2008.
25. István Mészáros, “Ideology and Social Science”, ensaio apresentado no Interdisciplinar Seminar of the Division of Social Science na York University, Toronto, Janeiro de 1972. Publicado em The socialist register, em 1972. “Ideology and Social Science” foi publicado separadamente na Ìndia (New Delhi: Critical Quest, 2010). A citação é retirada da página 10 desta publicação recente e facilmente acessível.
26. “Darling [o nome do ministro das Finanças trabalhista britânico] deve fornecer um orçamento realista: devem ser feitos cortes no estado britânico; o Partido Trabalhista deve dizer-nos como”. Editorial, Financial Times, 23 de Março de 2010
27. Isto significa, claro, um cada vez mais activo envolvimento directo do estado na economia e não o seu recuo.
28. Ver Brian Groom, “Call It the Strategic Re-election Fund,” Financial Times, March 23, 2010
29. De “The Necessity of Social Control”, a minha palestra em memória de Isaac Deutscher, pronunciada na London School of Economics em 26 de Janeiro de 1971, citada a partir da página 82 do meu livro “The Structural Crisis of Capital” (New York: Monthly Review Press, 2010)
30. É evidente, mesmo a partir de uma leitura de The Economist, quão absurdamente perdulárias e mal geridas são estas “parcerias”, nascidas para compensar generosamente os accionistas das empresas capitalistas falidas e fortemente publicitadas pelo governo do “New Labour”. Mesmo que leiamos em The Economist de 15 de Maio de 2010, sob o título “The Tube upgrade deals. Finis: The end of the line for Britain’s biggest private finance initiative”, que “Teoricamente, as PPP têm como objectivo aproveitar a eficiência do sector privado e, em troca de avultados lucros, transferir os riscos para as empresas contratadas. Mas, na realidade, nem a Tube Lines nem a Metronet foram capazes de pôr em prática o acordado. A Metronet era mal gerida e a transferência dos riscos provou ser uma miragem: a empresa foi à falência em 2007 e o governo resgatou as suas dívidas por cerca de 2 mil milhões de libras” (40; ibidem para as citações seguintes). Este tipo de acordo significa que nas “Parcerias Público Privadas” o termo “Privado” equivale a “lucros avultados” e o termo “Público” a avultadas perdas (nesta caso, cerca de 3 mil milhões de libras), transferidas para os ombros dos trabalhadores, à mercê da bancarrota capitalista, avidamente resgatada pelo estado. Da mesma forma, não é possível deixar isentas de responsabilidade as “empresas imparciais de consultoria”, cuja “especialização” ajudou a justificar e a impor à sociedade tais investimentos ficticiamente vantajosos. Assim “enquanto se instauravam as parcerias, a PricewaterhouseCoopers, uma [proeminente] consultora, previu que o sector privado poderia levar a poupanças na ordem dos 30%, previsão que serviu de base a todo o projecto. Mas a dita consultora não “apresentou qualquer base probatória fundamentando tal previsão”, diz Stephen Glaister, um académico que acompanhou a saga”. E este não é de forma alguma o ponto final na história deste sistema de irresponsabilidade institucionalizada, visto que, “No dia 11 de Maio, Chris Bolt, o perito das PPPs, publicou uma análise dos antigos contratos da Metronet, agora também conduzidos internamente pela TFL [Transport for London]. É, segundo ele, decepcionante notar que a TFL mudou a forma como fazia a sua contabilidade, em comparação com a Tube Lines e estima impossível a pré-aquisição da Metronet. Assim, de acordo com a cumplicidade legal do sistema de irresponsabilidade institucionalizada, ninguém poderia ser responsabilizado pelas perdas colossais. Mas quem pode realmente acreditar que este sistema de patrocínio estatal e irresponsabilidade catastroficamente perdulária ao serviço da bancarrota capitalista pode ser mantido eternamente?
31. Também neste aspecto é óbvia a dimensão histórica da deslocação estruturalmente determinante. A suposta justificação das estratégias “modernizadoras” é-nos fornecida pelos privilégios de exploração historicamente adquiridos (mas nunca referidos), pela mão cheia de países capitalistas envolvidos, que falsamente prometem a difusão universal do projecto de “desenvolvimento”, na ausência total de base real que a sustente, como por exemplo na grotesca teoria da “arranque e caminho rumo à maturidade” formulada por Walt Rostow (a este título, conferir a sua obra The Stages of Economic Growth: A Non-Communist Manifesto (Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1960).) Tais “teorias do desenvolvimento” tornaram-se, também no que toca a uma perspectiva de futuro, totalmente vazias assim que os “países modelo” privilegiados forem obrigados, apesar dos privilégios que acumulam, a enfrentar os seus próprios problemas no seio da crise estrutural do capital.
32. Ver acima, n.13
33. Ver Martin Wolf, Why Globalization Works: The Case for the Global Market Economy (New Haven: Yale University Press, 2004).

O original encontra-se em monthlyreview.org/2011/… . Tradução de Miguel Queiroz.

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