CLIQUE AQUI para baixar a íntegra do livro em PDF.

PREFÁCIO
A cidade do Rio de Janeiro viveu nos últimos dez anos um período de profundas mudanças em sua morfologia urbana e em seu tecido social. A expansão da economia do país, o aquecimento da exportação de petróleo e gás natural que impactou a economia do estado como um todo, e a realização de uma agenda de grandes eventos internacionais tendo a cidade como palco concorreram para criar as condições que propiciaram essa vigorosa transformação. Tal foi a sua magnitude que não seria exagero afirmar que estamos diante de uma outra cidade, na qual estão latentes forças produtivas e uma energia social, cultural e política com potencialidades ainda desconhecidas.

Embora muitas intervenções urbanas tenham sido realizadas na última década, as implementadas na região portuária e na Barra da Tijuca são certamente as que melhor exprimem o signifi cado dessa nova ordem urbana.

A reinvenção da decadente região portuária pelo Projeto Porto Maravilha, com seus bondes modernos e novos museus, cria um outro polo de lazer e de negócios na cidade, ao mesmo tempo em que desperdiça a melhor oportunidade de reversão da tendência de periferização de sua população, que seria possível caso seu imenso território fosse ocupado por bairros residenciais que acolhessem moradores de diferentes classes sociais. Difícil prever qual será seu impacto sobre o tradicional centro da cidade e sobre a dinâmica metropolitana como um todo, bem como o custo do desperdício dessa janela de oportunidade para o futuro da metrópole.

É igualmente difícil avaliar que impacto terá o fortalecimento da centralidade que a Barra da Tijuca já vinha exercendo sobre um amplo perímetro da região metropolitana. Com efeito, o conjunto de intervenções que alteram os fluxos de mobilidade no espaço metropolitano fará daquele bairro um ponto de passagem obrigatório para diferentes tipos de usuários e transeuntes. A implantação da Linha 4 do Metrô e a duplicação do Viaduto do Joá, que ligam a Barra à Zona Sul da cidade, e os três novos eixos rodoviários, que têm sido denominados sob o prefixo “Trans”, e que partem da Barra para diferentes direções (Transcarioca, Transolímpica e Transoeste), terão certamente forte repercussão sobre os subúrbios do Rio de Janeiro, esvaziando zonas comerciais tradicionais e modificando a estrutura de preços dos imóveis de bairros consolidados, ao mesmo tempo em que criam novíssimas oportunidades para o mercado imobiliário. É certo que será ainda mais acentuada a força centrípeta exercida pela Barra – que já tinha sido impulsionada por vultosas intervenções urbanas anteriores, em especial com a abertura da Linha Amarela – mas ainda é difícil estimar qual a real extensão do barracentrismo sobre a “geografia de oportunidades” da região metropolitana.

A magnitude dessas intervenções urbanas é ainda mais estonteante por terem sido realizadas em um curto espaço de tempo, sem planejamento, sem debate público, e com baixa transparência de procedimentos, dados e informações. Não custa lembrar que na maior parte das vezes a população da cidade somente tomou contato com as novidades urbanísticas preparadas pelo poder público através da imprensa, em geral por meio da reprodução de maquetes e croquis no principal jornal da cidade. Notável, neste caso, não apenas a ausência da sociedade civil em processos de tomadas de decisão a respeito de investimentos decisivos para o futuro da cidade, mas também a baixíssima participação do legislativo municipal.

Muito além das mudanças na morfologia urbana da cidade, com seus efeitos no mercado imobiliário, mercado de trabalho e fl uxos de migração no interior da metrópole, as transformações realizadas na última década colocam em jogo um complexo processo de mudanças políticas, sociais e culturais, cujas consequências mal se podem divisar nesse momento. O fato desse processo ter se dado sob uma hegemonia política que apostou de modo radical na premissa de que a cidade deve ser vista como um campo aberto a todo tipo de exploração mercantil, e não como um direito do cidadão, torna tudo mais incerto e aberto ao surgimento de conflitos e contradições ainda não explicitadas.

O processo de transformação da cidade foi conduzido sob uma matriz que bem poderia ser caracterizada como um pragmatismo eclético, bem afeito ao espírito de
urgência justifi cado pela iminência da realização das Olimpíadas. Um pragmatismo, vale dizer, quase sempre orientado pelos interesses dos segmentos econômicos dominantes na cidade, como o dos proprietários de empresas de ônibus, concessionárias de serviços públicos, e de setores da indústria da construção civil, de turismo e de entretenimento; mas que não descuidou do cálculo político, que explica os investimentos pontuais realizados em determinadas áreas populares, do que são exemplos o Parque de Madureira e o que foi denominado pelo poder público como “campus educacional da Maré”, onde foram construídas oito novas escolas de ensino básico.

Mas essa combinação de interesses econômicos e políticos, que se articulam de modo tão eclético em torno de grandes intervenções urbanas, dificilmente ficaria de pé sem a sua “teoria” do urbano, a qual, em meio à desordem que as próprias intervenções engendraram, tenta emprestar aparência de coerência ao conjunto da obra, procurando conciliar a mercantilização da cidade com a formação de ilhas de urbanidade protegidas dos automóveis – quanto a isso, nada mais emblemático que a transformação de parte da Avenida Rio Branco, antiga Avenida Central, em um boulevard para pedestres e ciclistas. Faz sentido: Se um dia a Avenida Central pretendeu servir de cenário – que tudo escondia –para uma cultura de belle époque dos trópicos, a nova Rio Branco, com seu bonde moderno e seu boulevard, evoca a cidade pós-moderna, despudoradamente kitsch, só na aparência uma cidade em escala humana, mas que cultua a lógica do espetáculo, suprimindo dela seus cidadãos, ao tempo em que estimula processos que aprofundam a segregação urbana e a exclusão social.

O quadro se mostra ainda mais complexo porque as intervenções urbanas na cidade envolveram diferentes atores, incluindo os governos federal, estadual e municipal, além da iniciativa privada, articulados sob novos arranjos de gestão, com as “parcerias público-privadas” e o uso das Organizações Sociais para administrar
equipamentos e serviços públicos. Enfim, tudo contribui para deixar a população da cidade sob um estado de perplexidade quanto ao seu futuro.

O Rio está diante de um enigma: ou decifra o legado produzido por essas transformações ou será devorado por elas – aí incluído um cenário de agravamento de diferentes formas de violência urbana.

A cidade e a região metropolitana saem desse processo expostas a novas contradições. Certamente mais segregadas e mais desiguais do que antes, mas também dispondo de oportunidades políticas até aqui bloqueadas. De fato, ao transformar a região portuária em um imenso playground de lazer e entretenimento para turistas e classe média, e ao apostar em torres para edifícios comerciais ao invés de favorecer a formação de bairros residenciais para diferentes classes sociais, o Porto Maravilha reafi rma a segregação urbana, indo em direção contrária ao movimento de aposta na mistura social, presente em muitas metrópoles europeias e mesmo norte-americanas. Além disso, ao subordinar à centralidade da Barra boa parte dos subúrbios da cidade atravessados pelas Trans, ao criar uma nova legião de removidos de favelas e de outras áreas populares, e ao aprofundar velhos problemas pela ausência de investimentos em transporte de massa e na urbanização das favelas e subúrbios, esse ciclo único de investimentos, que mobilizou recursos em escala inédita na história da cidade, ao invés de combater o quadro de desigualdade socioespacial da cidade e da região metropolitana do Rio de Janeiro, que já é uma das maiores do mundo, deverá aprofundá-lo.

Por outro lado, foram alteradas as condições de inserção da cidade no mundo globalizado, fortalecendo-se sua vocação para a economia de serviços, lazer,
turismo e entretenimento, que deverá criar novas oportunidades para parcelas dos segmentos populares e para o surgimento de novas classes médias, ao mesmo tempo em que deverá abrir espaço para novas formas de luta e de disputa pela cidade. Ao abalar de forma tão profunda a estrutura preexistente, esse ciclo de
transformações abre fendas nos padrões de articulação anteriormente existentes entre as classes sociais, muito especialmente na relação das elites com os demais
segmentos sociais. Com isso, formas políticas há muito consolidadas em torno de máquinas clientelistas, que têm oscilado entre populismos de esquerda e de
direita, deverão perder suas bases sociais. Dos escombros deixados pelas obras que deram lugar a essa estranha cidade deverão emergir novos atores, que poderão
radicalizar a luta pela cidade. Este é o aspecto mais sensível das novas contradições criadas pelo legado olímpico.

Conviver com esse legado, fruto de um processo vertiginoso que se deu em meio a uma cidade politicamente desaparelhada para reagir, exigirá também um
revigoramento de sua vida intelectual. E o próprio processo de transformação urbana da cidade poderá, contraditoriamente, concorrer para isso. Este livro, O Rio
que queremos. Propostas para uma cidade inclusiva, já aponta nesta direção. Diagnóstico crítico do Rio de Janeiro que surge das brumas do ciclo olímpico, o livro
é ele mesmo uma forma nova de refl exão sobre a cidade. Basicamente escrito por jovens intelectuais, boa parte deles egressos ou inscritos em programas de pós-graduação em ciências sociais do Rio de Janeiro, o livro realiza, em seus 21 artigos, uma análise abrangente desse processo de modernização excludente pelo qual a
cidade acaba de passar. Embora organizado como coletânea, seus artigos encadeiam temas que costumam aparecer no debate público de forma segmentada – “a
segurança pública”, a “saúde”, a “educação”, o “transporte público” –, obedecendo a uma divisão de trabalho que atenderia a um enfoque próprio ao da ad ministra-
ção pública, mas não ao da realidade cotidiana do cidadão. Mais próxima desta última, o livro elabora uma visão transversal de todas essas dimensões, articulando-as
sob a perspectiva do direito à cidade e do planejamento democrático, aqui entendido como processo de racionalização que combina transparência, critérios técnicos e ampla participação social e política. Trata-se de um livro assumidamente militante, que aposta em um projeto político de democratização da cidade.

Sabe-se que a forma urbana do Rio de Janeiro, tão fortemente marcada por fronteiras entre seus espaços habitacionais – do que é exemplo a fronteira entre favelas e bairros de classe média e alta – conspira contra um projeto mais igualitário de cidade, estimulando, ao contrário, relações assimétricas entre os diferentes grupos sociais, muito frequentemente permeadas pelo racismo e por práticas como o paternalismo, o clientelismo e o mandonismo. O ciclo de intervenções vivido pela cidade na última década certamente não removeu essa forma urbana, mas a modificou a ponto de abrir espaço para novas práticas de luta. Quem sabe não surgirá daí uma oportunidade inédita de apropriação da política pelos setores populares da cidade. Este livro é com certeza um contributo nesta direção e talvez sua virtude mais importante resida no fato de constituir um esforço intelectual que articula a perspectiva acadêmica com uma refl exão comprometida com a construção de uma cidade que possa realmente ser pensada como obra coletiva, e que por essa via, somente por ela, possa se tornar mais justa e plural.

Marcelo Baumann Burgos
Professor e Pesquisador do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio

ÍNDICE

Prefácio …………………………………………….. 5
Marcelo Baumann Burgos

Introdução …………………………………….. 11
O que é o direito à cidade na prática?
Luisa Santiago / Theófilo Rodrigues

capítulo 1 ………………………………………. 17
Ciência, tecnologia e inovação para o Rio que queremos
Larissa Ormay / Pedro Fernandes

capítulo 2 ………………………………………. 29
Monopólio e direito à comunicação na cidade do Rio de Janeiro
Marina Schneider / Theófilo Rodrigues

capítulo 3 ………………………………………. 40
Diagnóstico e alternativas às políticas de cultura na cidade do Rio de Janeiro
Leonardo Puglia / Marcele Frossard

capítulo 4 ………………………………………. 54
Desenvolvimento urbano sustentável:
o direito à cidade no Rio de Janeiro contemporâneo
Pedro Henrique Torres / Rodrigo Ribeiro / Taísa Sanches

capítulo 5 ………………………………………. 82
A economia da metrópole carioca
Mauro Osorio da Silva / Maria Helena Versiani / Paulo Reis

capítulo 6 ………………………………………. 95
Políticas Públicas para uma cidade democrática?
O lugar da participação social no Rio de Janeiro
Alessandra Maia Terra de Faria / Talita Tanscheit

capítulo 7 …………………………………… 113
Políticas para Mulheres
Ana Carolina Radd / Yasmin Curzi

capítulo 8 …………………………………… 129
Fronteiras (in)visíveis: raça, gênero e os limites do direito à cidade
Carolina Rocha / Marcia Rangel Candido / Veronica Toste Daflon

capítulo 9 …………………………………… 149
A juventude e a cidade do Rio de Janeiro
Daniel Gaspar / Rafael Chagas

capítulo 10 ………………………………… 161
Segurança Pública, Polícia e Guarda Municipal
na cidade do Rio de Janeiro: alguns elementos para o debate
Angelo Remedio Neto / Elizabete Ribeiro Albernaz / Rogério Dultra dos Santos

capítulo 11 ………………………………… 174
Politecnia e políticas públicas de educação no Rio de Janeiro
Francicleo Castro Ramos / Theófilo Rodrigues

capítulo 12 ………………………………… 186
O mundo do trabalho no Rio de Janeiro
Luisa Barbosa Pereira

capítulo 13 ………………………………… 198
A Saúde Pública e o Direito à Cidade no Rio de Janeiro
Ana Pimentel / Daniela Tranches de Melo / Gisele Silva Araújo

capítulo 14 ………………………………… 216
Uma breve história política: a maldição de Chagas e a hidra carioca
Mayra Goulart