A primeira, e mais importante, crítica revisionista às teses consagradas sobre a Revolução Francesa foi de que “a Revolução realmente não fez tanta diferença na história da França.”. Ao negarem a importância histórica da Revolução Francesa, os revisionistas estavam subvertendo toda a produção historiográfica precedente, que começou a ser construída pelos próprios liberais moderados no século XIX. Para estes, afirma Hobsbawm, não poderia haver dúvidas de “que a Revolução foi um episódio de significado profundo e sem paralelo na história do mundo moderno, qualquer que seja o modo como essa significação pudesse ser posta.”.       

Os revisionistas contemporâneos atacavam a tese clássica, posteriormente adotada pelos marxistas, de que a Revolução Francesa foi, pelo seu conteúdo, uma revolução burguesa. Negavam assim que ela tenha sido “uma revolução social necessária, um passo essencial e inevitável do desenvolvimento histórico da sociedade moderna.”. Rejeitavam, inclusive, o próprio fato de ter ocorrido uma “transferência de poder de uma classe para outra.”.

Hobsbawm demonstrou que a análise da Revolução Francesa como uma luta de classes entre a aristocracia agrária e a burguesia ascendente (ou classes médias) não foi criação do marxismo, e sim obra da própria historiografia liberal moderada pós-revolucionária do século XIX. Afinal, o próprio Marx reconheceu que homens com Guizot e Thiers, antes dele, já haviam constatado a existência das classes e da luta entre elas na França dos séculos XVIII e XIX.  

Contra os revisionistas, que negavam a centralidade da luta de classe entre a aristocracia rural e a burguesia ascendente em 1789, Hobsbawm utilizou outro pensador liberal, também desprovido de amores pela revolução, Alexis de Tocqueville, que chegou a afirmar: “Nossa história, vista à distância e como um todo, sustenta, de fato, um quadro de lutas mortais entre o Antigo Regime, suas tradições, memórias, esperanças e homens, tal como representados pela aristocracia, e a Nova França, liderada pela classe média.”. Tocqueville respondeu também aos nossos liberais conservadores que negavam qualquer papel transformador à Revolução Francesa: “A Revolução destruiu inteiramente, ou está destruindo, tudo o que na antiga sociedade provinha da aristocracia e das instituições feudais, tudo o que estava, de algum modo, conectado com elas, tudo o que tinha algum traço delas.”. Concluiu Hobsbawm: “à luz de tais avaliações, feitas por homens que, afinal descreviam a sociedade em que viviam, fica difícil compreender visões correntes de que a Revolução Francesa foi ineficiente em seus resultados.”.

 

Após a revolta operária de julho de 1848, em Paris, a burguesia e seus teóricos passaram a rever suas análises sobre o papel da luta de classes na história, embora jamais renegassem completamente a sua revolução como um grande acontecimento histórico. Se, de um lado, os liberais após 1848 procuravam “despolitizar” a questão da revolução, por outro, os trabalhadores urbanos dirigidos pelos socialistas “não encontraram dificuldades em assumir a linguagem e o simbolismo da revolução jacobina.”. A Marselhesa se tornou o hino da Socialdemocracia alemã e do próprio movimento socialista até ser substituída pela Internacional.

Portanto, “era natural para Marx dizer simplesmente aos poloneses, em 1848: ‘O jacobino de 1793 tornou-se o comunista de hoje’”. Também não surpreende o fato de Lenin não ter escondido “a sua forte admiração pelo jacobinismo.”. Contudo, apesar dessa identificação com Robespierre e seus camaradas revolucionários, o líder bolchevique fez questão de afirmar: “A nossa revolução não é o terror revolucionário francês que guilhotinou pessoas desarmadas, e espero que nunca iremos tão longe.”. As suas esperanças, infelizmente, não iriam se confirmar nas décadas que se seguiram.

A confiança leninista no futuro da Revolução Russa, que se encontrava em grandes dificuldades no final da década de 1910, estava enraizada na sua leitura sobre a conturbada história de sua antecessora francesa. “A principal lição que os observadores do século XIX dela retiraram foi que não havia sido um acontecimento, mas um processo (…). Porque Lênin não pensaria que a Revolução Russa poderia ser também um processo histórico longo, com seus difíceis recuos e ziguezagues?”, constatou corretamente Hobsbawm.

Desde o início do século, houve uma gradual integração da perspectiva dos historiadores republicanos radicais, admiradores da tradição jacobina, e a dos teóricos marxistas. A própria luta política na França tratou de empurrar os primeiros “para uma posição à esquerda do espectro político.”. Esse processo se reforçou na década de 1930 com a ascensão do fascismo, pois este era, “a expressão da quintessência daqueles que tinham rejeitado completamente, desde o começo, a Revolução Francesa.”. A direita não rejeitava apenas o jacobinismo, mas os próprios princípios do liberalismo político e “toda a ideologia do Iluminismo do século XVIII”. A extrema-direita era, fundamentalmente, irracionalista.

Assim, tornou-se inevitável que todos os antifascistas tendessem a cerrar fileiras em torno da defesa da Revolução Francesa e de sua herança progressista. “A essa altura, a fusão das tradições republicanas, jacobinas, socialistas e comunistas estava bastante completa, pois a Frente Popular e a Resistência posterior haviam transformado o Partido Comunista no maior partido de esquerda.”. A fusão da perspectiva histórica dos republicanos radicais e dos marxistas determinou “que um ataque ao marxismo deveria ser também um ataque àquela historiografia.”.

Hobsbawm, contudo, não se refugiou no dogmatismo vazio, e reconheceu os limites da historiografia republicano-marxista. Entre eles estava o fato de que ela “tendeu a se tornar uma ortodoxia (…) altamente resistente à mudança.”. E, por isso mesmo, necessitava urgentemente “ampliar-se, atualizar-se, rever-se e modificar-se para incluir novas questões, novas respostas e novos dados”. Só assim ela poderia impor uma resistência mais eficiente à onda revisionista.

Nos dias atuais, constatou o autor, “a revisão liberal da história revolucionária francesa é inteiramente dirigida, via 1789, para 1917.”. A “ironia da história” é que para fazer isso os historiadores neoliberais foram forçados a atacar precisamente a interpretação “formulada e popularizada pela própria escola do liberalismo moderado da qual pretendiam ser herdeiros.”. E completou: “com ou sem revisionismo, não nos esqueçamos daquilo que era óbvio para todas as pessoas instruídas no século XIX e que ainda é óbvio: a centralidade e a relevância da Revolução Francesa.”.

Uma das maiores heranças da Revolução Francesa, e a que causa maior temor entre as classes proprietárias e seus governos, é que ela “deu aos povos a noção de que a história pode ser mudada por sua ação (…), demonstrou o poder das pessoas comuns de uma maneira que nenhum dos governos subsequentes jamais se permitiu esquecer.”. Por isto, o resgate da Revolução Francesa e de muitos de seus valores “são mais necessários do que nunca, na medida em que o irracionalismo, a religião fundamentalista, o obscurantismo e a barbárie estão, mais uma vez, avançando sobre nós”, concluiu o ilustre historiador marxista inglês.

 

A morte de Marat, representada em pintura icônica da Revolução, converteu-se numa duvidosa homenagem em forma de auditório na Áustria.

 * Resenha do livro Ecos da Marselhesa: Dois Séculos reveem a Revolução Francesa de Eric Hobsbawm, publicada na revista Debate Sindical, n. 27, fev.-abr./1998, Centro de Estudos Sindicais.

** Augusto César Buonicore é historiador, presidente do Conselho Curador da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e revolução brasileira: encontros e desencontros; Meu verbo é lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas; e Linhas Vermelhas: marxismo e dilemas da revolução. Todos publicados pela Fundação Maurício Grabois e a Editora Anita Garibaldi.