O jornalista, escritor e político Roberto Amaral lançou em coedição pela Piracema Editora e Editora Armazém da Cultura o livro Eleições & propaganda (Como funcionam em 16 lições e mais uma). Em meio à enxurrada de bibliografia sobre marketing político, o livro de Amaral se destaca por ser dirigido para o publicitário crítico ou para a esquerda política. Em vez dos manuais de marketing que apenas prescrevem receitas para conquistar corações e mentes, este texto mostra os inúmeros erros e perigos em que o marketing pode colocar a política.

O Portal Grabois entrevistou, por telefone, com exclusividade, o ex-ministro da Ciência e Tecnologia do Governo Lula e aproveitou para tirar algumas das lições do livro para a atual campanha eleitoral. Trata-se do ponto de vista muito pessoal deste homem que acompanha as campanhas eleitorais, por dentro, desde sua militância estudantil na década de 1960. Amaral discute os símbolos simples e comunicativos das campanhas de outros tempos, sua capacidade de sintetizar valores e ideias. Discute a boataria e o clima emocional que tomou conta das campanhas, interditando o debate fundamental. O papel da imprensa e das instituições contribui para isso e o autor fala do risco de ganhar a eleição e perder todo o resto.

Amaral alerta para comentários “a latere” que fez para além da entrevista propriamente dita, soando um pouco como se tivesse vestido “em roupas de banho de praia”, quando preferia tratar destes assuntos em tom de “fraque e cartola”. 

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Acompanhe a seguir os raciocínios desse pensador de esquerda sobre o cenário complexo que tomou conta da política brasileira e conheça um pouco sobre seu livro:

P – Porque sentiu necessidade de fazer uma discussão sobre propaganda política e eleitoral com toda a biografia que já existe a respeito?

R – Tenho a impressão de que meu texto é distinto dos outros. É menos um debate sobre marketing e mais sobre manipulação ideológica. Tem um aspecto descritivo, ou seja, a política como ela é. Traz conceitos da publicidade em uma segunda parte, analisa casos da política brasileira, mas, em contraposição, faço uma discussão sobre como deveria ser uma campanha eleitoral inspirada por valores de esquerda. Faço, por fim, uma análise da estrutura do discurso, a partir dos clássicos, e o primeiro deles é o Padre Antônio Vieira.  

P – Você entende o livro como um manual para publicitários ou um alerta para políticos?

R – Acredito que será útil para publicitários que tiverem visão crítica, porque, de modo geral, meu texto é antimarqueteiro. Aponto erros desses marqueteiros como a cretinice de tentar mudar o nome eleitoral de Alckmin para Geraldo na disputa com Lula (2006), para, supostamente, popularizar sua imagem. Ou quando a campanha do PT decidiu desconstruir Marina e acabou jogando seus eleitores e os de Eduardo Campos nos braços de Aécio. Sou contra a ideia corrente de que cada turno é uma eleição. O segundo turno não é outra eleição, pois é o desdobramento do que se fez no primeiro turno, com repercussões inclusive no governo que se instala.

João Santana expulsou o Lula da campanha da Dilma. Na primeira campanha (2010) porque a Dilma precisava se afirmar, e na segunda (2014), porque ela já era uma afirmação. Todo mundo sabia que ela não tinha autonomia eleitoral.

P – Seu texto tem o mérito, que é o de relembrar inúmeros casos, episódios da história política brasileira com esse olhar muito peculiar. Casos que afirmam e às vezes negam as regras e as leis pregadas pelos publicitários. O senhor acha que é desnecessário seguir à risca os marqueteiros para conseguir bons resultados?

R – Penso  que não se deve seguir os marqueteiros, porque eles não entendem de política. Nas campanhas de que participei, identifiquei  muito conflito com os marqueteiros, certamente decorrentes  dessa dificuldade de compreender a política. Em 1998, um conhecido marqueteiro decidiu no início da campanha do Lula expulsar o vermelho sob a alegativa de que essa cor estava assustando os eleitores. São coisas assim.  Com o clima de violência que assola o país os marqueteiros decidiram que esse tema dominaria os debates. Isso leva o Tasso Jereissati (PSDB), no Ceará,  a inventar um general desconhecido para ser candidato. O general Teófilo, o candidato que iria acabar com a violência (pois é um general),  está patinando com 7% das intenções de voto e o candidato do PT, o governador Camilo Santana, candidato à reeleição, descansa no patamar de 69% das intenções de voto.

P – O senhor usou alguns autores como referência para esse trabalho, ou deixou de usar, ou rejeitou alguma referência?

R – Vali-me, entre outros do [Serge] Tchakhotine [A manipulação das massas pela propaganda], por razões óbvias, na análise que ele faz da propaganda na ascensão do nazismo (Alemanha). É obra clássica. Sua análise, como qualquer outra, não pode ser transplantada mecanicistamente para nosso entrecho. Ela requer reflexão e análise comparativa . Sabidamente, o nazi fascismo foi quem melhor desenvolveu as técnicas de mobilização de massas.  Uma das teses  era a exploração  da emoção. Por isso mesmo hoje muitos repetem, que propaganda é emoção.

P – Sim, é uma coisa que acabou ficando.

R – Só que não é a emoção pela emoção. Vemos os nossos amigos, hoje, errando nisso. A emoção é a porta que abre o ingresso para a argumentação, é o veículo que leva ao ratio. Sua importância está no fato de facilitar a assimilação do discurso político. Porque se você fica só com a emoção, você só abriu a porta e não colocou nada lá dentro. Lula usa de forma exemplar a emoção para em seguida fazer o discurso político.

P – O Jânio Quadros aparece muito no livro como exemplo de sucesso. Quando o senhor fala dele a gente sempre tem a impressão de que tem muito da campanha atual nessa discussão. Há paralelos ali entre o Bolsonaro e o Jânio Quadros?

R – Não creio. Embora fossem candidatos à direita (Jânio de direita e o capitão de extrema-direita, façamos a distinção), não podemos  esquecer que um era um extraordinário orador, e o outro nem orador é.  Algo similar ao Jânio só conheci  com o Lula; era um comunicador extraordinário, um grande ator. Há similaridade com o Lacerda, que, todavia, não era histriônico. Ambos tinham grande desempenho  nos comícios, o ponto alto das  grandes campanhas daquela época. Excepcionais como atores de televisão e excepcionais em recinto fechado, em palestras e conferencias, independentemente do público. Nada disso você vê na campanha do capitão, que é exatamente a negação de tudo isso.

Uma questão que, enfim, se diluiu, − parece que só está preservada pelo PT e pelo PCdoB −, é a utilização de símbolos, símbolos partidários e símbolos de campanha leitoral.  A campanha de 1960 foi caracterizada pela simbologia, pela imagem. A vassoura, símbolo da campanha de Jânio Quadros,  encerrava o melhor e mais contundente dos discursos, mais contundente do que os de hoje pois era uma imagem síntese do combate à corrupção. Sua importância está na intimidade de todo mundo com a reresentação. Quem não tem contato com uma vassoura e conhece seu conteúdo simbólico a partir de seu uso? Não carece de explicação, encerra tudo, ademais de facílima reprodutibilidade. Facílimo desenhar uma vassoura, até transformaram o rosto dele (do Jânio) numa vassoura. Outro elemento que foi deixado para trás, suponho que sua última grande utilização deve-se a Lula: as músicas de campanha. A campanha do  Jânio, volto a ele,  tinha uma  marchinha que emocionava seus eleitores: “Varre, varre, vassourinha.” E agora essa última do Lula que ficou, com aquele arranjo do Chico e do Djavan (1989): “Lula, lá…” Não há discurso, nem os de Lula,  que emocione  mais um militante  do que essa música.

Veja os símbolos partidários. Compare a estrela do PT, ou mesmo a foice e o martelo do PCdoB, que é um pouco rebuscado, pois tem que levar um pouco de história ao encontro do trabalhador industrial com o camponês. Compare esses símbolos com o tucano do PSDB. Que complicação é reproduzir um tucano,  pássaro  que 90% da população brasileira jamais viu. É o caso também do símbolo do PSB. É muito difícil reproduzir a pomba do Picasso. A estrela do PT  ou o sigma nazista são de fácil reprodução e facílima identificação, como o feixe do fascismo italiano, um feixe de cipós.

P – Eu vejo similaridades no relato que você faz da campanha do Jânio, como ela vai num crescendo, e existe um certo vazio de conteúdo naquilo tudo, que é esse discurso do combate à corrupção. E que parece muito com o que está acontecendo agora…

R – Divirjo um pouco de você. É evidente que o  centro da campanha do Jânio era o combate à corrupção. Mas olha, ele se apresentava com um discurso que tinha começo meio e fim. Ele falava em política externa, no combate à inflação, nas obras que iria construir, defendia a Petrobrás e o monopólio estatal do petróleo.  Em plena campanha, se deu ao luxo de ir a Cuba. Porque ele já falava em autodeterminação dos povos. Foi a Cuba levando consigo o Afonso Arinos e o Chico Julião, o famoso deputado das Ligas camponesas, o Stédile daqueles tempos. Qual o discurso que estamos ouvindo nessa campanha? De qualquer candidato? Sem falar no capitão, porque ele não diz nada sobre nada. Então, se amanhã você pegar um discurso dele para decodificar, − espero que se faça isso −, verá que ele não tem nada de sustentável, senão a pregação fascista clássica, defesa da tortura, bandido bom é bandido morto e outros chavões.

P – Parece que é uma campanha toda focada em desconstruir o adversário.

R – Sim! Um elemento fundamental na política, e na campanha eleitoral.

P – Desde a Lava-Jato os marqueteiros parecem estar sob as sombras, diante da imprevisibilidade da atual campanha eleitoral. Antes eles eram consultados o tempo inteiro, tinha sempre entrevistas com marqueteiros explicando a campanha, dizendo o que pensavam a respeito dos adversários. Agora a gente não vê isso…

R – Um brilhante autor, sociólogo e pesquisador, professor Alberto Carlos Almeida,  há algo  de dois  meses passados, afirmou em artigo, que essas  eleições presidenciais  seriam, uma vez mais e como sempre, uma disputa entre o PT e o PSDB.

P – Não é curioso isso, o sumiço dos marqueteiros? Parece que é um fenômeno particular dessa eleição?

R – É fenômeno particular dessa eleição, por dois motivos. Um,  que posso classificar como óbvio, trata-se do resultado da desmoralização professional e   ética deles. Quase todos os marqueteiros ditos vitoriosos, ou estão na cadeia ou respondendo a processo. Há  uma segunda questão, econômica e financeira. Os marqueteiros, com o dinheiro fácil que corria nas campanhas,  haviam imposto aos partidos campanhas milionárias gerenciadas por  eles a peso de ouro. Esse dinheiro fácil desapareceu por todas as razões conhecidas.

P – Eu acho que eles evitam aparecer para não chamar a atenção sobre si.

R – Evitam aparecer… e a imprensa os ignorou nessa campanha.

P – O senhor fala no livro da vitória de Pirro da Dilma em 2014. O senhor acha que existe esse risco na disputa do Haddad?

R – Existe. Nossa  campanha, voltamos ao tema, se desenvolve de forma a explorar tão somente a emoção dos eleitores, seja mediante a denúncia da perseguição a Lula, seja se limitando a lembrar os feitos passados do ex-presidente. E depois?

Como foi nossa campanha no primeiro turno de 2014? Uma campanha despolitizada. Avançou um pouco pela esquerda no segundo turno, quando o setor mais progressista teve a  percepção de que o Aécio podia ganhar.

Aliás, há algo interessante a registrar. Todos os candidatos caem durante a campanha, apesar dessa suposta competência dos marqueteiros. Naquele segundo turno, enquanto a candidata Marina caía, o Aécio, que já havia estado em terceiro lugar, começa a ameaçar a liderança de Dilma (vimos como terminou). Ganhamos, naquilo que se chama de  ‘olho eletrônico’. Estou convencido de que a deposição de nossa candidata só foi possível em virtude do resultado eleitoral apertado,  fenômeno que se associa ao fato de não havermos, nem durante a campanha nem depois,  mobilizado politicamente a população. Nós que não havíamos  conseguido mobilizar as grandes massas na  defesa da proposta de governo, não tínhamos mais condições de mobilização em defesa de um mandato que se tornara impopular, e de um governo que havia abandonado a proposta da campanha.  Essa dificuldade de mobilização (há explicações) teria reflexos na defesa do governo e na tentativa de impedir o impeachment. A seguir vem a grande lista de avanços da direita sem resposta das massas:  à anulação da nomeação do Lula para a chefia da Casa Civil, segue-se a condução coercitiva do ex-presidente (quando não conseguimos, sequer, mobilizar os metalúrgicos de São Bernardo), vem o processo da Lava Jato,  vem seu indiciamento, vem sua  condenação, vem finalmente  a prisão,  e não conseguimos mobilizar a população, em momento durante o qual o governo ilegítimo estava

destruindo a Petrobrás, destruindo a legislação trabalhista, e ameaçando a população com a reforma da Previdência. Ou seja, quando mais precisávamos da ação das massas, e quando mais elas pareciam mobilizáveis,  elas nos faltaram. E no meio disso, uma questão muito complicada pra nós. O fato objetivo  é que no final da campanha fizemos um discurso defendendo determinada  política econômica, e, injustificadamente, implantamos a política econômica que sempre condenamos na campanha.

Qual é meu medo de hoje? Estávamos naquela campanha elegendo a Dilma e não um projeto de governo. E agora? Que projeto de governo estamos defendendo e pedindo para ele a sanção das massas? Incomodam-me  dois receios: um, o de não elegermos o Haddad, mas um procurador do Lula. Como  liderar este país, como ter força para enfrentar o que sabemos que  teremos  pela frente se o nosso presidente não encarnar a vontade da nação?. Segundo, vamos, apostar na eleição de nosso candidato. Com sua eleição precisamos colher a aprovação, pelo eleitorado, de um programa de governo para o qual amanhã possamos cobrar o apoio popular.  Para começo de conversa esse programa tem de representar tanto a negação do governo ilegítimo quanto as propostas do capitão. Qual é o desafio? Ou fazer o que fizemos em 2015 — renunciar às promessas de campanha e de nossa história, capitular –,  ou enfrentar o que está aí. O governo que está aí é a promessa de protofascismo  que é a proposta do capitão, Como enfrentá-los e conservar o governo? O próximo Congresso nos será hostil tanto ou mais que o  atual foi hostil a Dilma; com Forças Armadas hostis; com uma imprensa comprometida com o antipopular e o antinacional; com um  Ministério Público partidarizado; com um poder judiciário que do juiz de piso ao Supremo se compraz em ofender a Constituição? Só há uma possibilidade de enfrentamento possível, a mobilização das massas, mas essa mobilização começa na campanha. E como mobilizaremos a força  popular  se não nos valemos do caráter pedagógico da campanha eleitoral?

P – O senhor acredita que a Operação Lava Jato funciona como uma parte dessa engrenagem da propaganda política?

R – Ah, sim! Um dia, se impede o Lula de tomar posse na Casa Civil porque sabiam os atuais donos do poder que se tratava de  uma alternativa de organização de um governo desorganizado. E no mês seguinte, pelas mesmas razões que negaram ao Lula a nomeação (liminar concedida pelo inefável  ministro Gilmar Mendes), o decano do STF, ministro Celso de Mello, declara constitucional a posse do Welington Moreira Franco para a Secretaria Geral do Planalto. As votações e as liminares de Gilmar Mendes, as votações do Congresso, as denúncias do MPF, as campanhas de imprensa, tudo são peças de uma só engrenagem. Um  Congresso presidido por um gangster impedindo a presidente de governar,  um poder judiciário que penalizava  as ações de  governo e sancionava os pleitos da oposição. A ação concertada da oposição, do Ministério Público e da imprensa. O país jamais vira aparato desses funcionando com tamanha sintonia! Na preparação de 1964, havia resistência. Começa que o Jango tinha quase a metade do Congresso ao seu lado. Tanto que os militares precisaram cassar o que cassaram. Havia  um  PTB solidário ao presidente, os diversos  partidos de esquerda, a Frente Parlamentar Nacionalista,  havia mesmo setores do  PSD, o partido agrário, apoiando o presidente! No governo da Dilma até o PT se encolheu nos momentos mais críticos. Veja bem:  após  13 anos de governo,  não conseguimos, embora fosse tentado,  arrecadar um terço da Câmara dos Deputados para impedir o impeachment.  O Juscelino derrubou uns 10 pedidos de impeachment. Nosso governo se descobriu  sem  articulação política, sem  articulação no establisment, sem articulação na sociedade.

P – Sempre houve essa conexão, essa sintonia fina entre a imprensa, os grandes meios de comunicação e as campanhas de direita.

R – Mas havia contradições.

P – Mas agora está havendo uma desconexão total, pelo menos com a campanha do Bolsonaro. Ele sobe mesmo com o tratamento negativo da imprensa, mesmo com a falta de horário eleitoral. Parece que é um case de publicidade que traz um elemento bastante novo para análise. O senhor concorda?

R – Concordo, mas do meu ponto de vista está destacado. Por que é que o capitão,  sem tempo de televisão e sem estrutura partidária – porque é candidato de um partido que tem vida puramente jurídica -, consegue manter a campanha, mesmo hospitalizado? Porque cada quartel é um comitê. Onde você tem um juiz você tem uma célula. Onde você tem um representante do Ministério Público e da repressão você tem um elemento dessa campanha, sem falar nas igrejas neopentecostais. Ontem,  em São Paulo, o Alckmin foi vaiado aos gritos de Bolsonaro num encontro religioso promovido por evangélicos e para o qual havia sido convidado. Precisamos estudar  o papel dos evangélicos nesses últimos dez anos. Uma das características da ascensão do fascismo, em toda parte do mundo, é o apoio popular. O primeiro passo para Mussolini e Hitler assumirem foi eleitoral. O Mussolini e o Hitler mobilizavam massas, para não falar da Espanha, do Japão; trata-se de ideologia que   cresce na crista das  crises econômicas que se desdobram em crise política e sua principal manifestação é a crise da representação, acoplada à crise dos partidos e à violência generalizada.

P – Mas tem também nesse cenário todo que o senhor está mencionando essa questão da boataria, que é uma boataria toda voltada para favorecer esse candidato.

R – Jamais se registrou, no nível dessa campanha, a partir das redes sociais. São as chamadas fake news.

P – O senhor menciona essa questão da boataria no livro, que sempre houve, mas ela ganhou uma conotação muito diferente. Chegou ao nível do paroxismo o que acontece hoje.

R – Do paroxismo, sim,  potencializado pela internet. Não dá para analisar agora. É preciso  parar um pouco  e refletir sobre esse fenômeno, pois não dispomos de um quadro de comparação. Primeiro a experiência é recente, e a cada eleição é utilizada de forma distinta. A dificuldade nesse tipo de análise, pois, repito, é não dispormos de um quadro comparativo. Registre-se, porém, a guerra eletrônica.   Se, de um lado,  temos a expansão da boataria, de outro surge outro fenômeno que é a utilização desses mesmos meios como instrumento de revide e contestação ou desmentido.

P – Existem meios de comunicação só para isso, só para desfazer boatos.

R – E as campanhas estão gastando fortunas, há equipes só para fazer isso. É, por exemplo, a grande mídia da campanha do capitão. Essa campanha última nos Estados Unidos, ainda não foi bem analisada, e muita coisa já está sendo aplicada nesta campanha presidencial, no Brasil.

P – Foram quatro eleições seguidas vencidas pelos setores progressistas, e acreditávamos que, a cada eleição, a gente ia dizer o que foram os avanços do governo, ia convencer a população. Havia toda uma argumentação de que havia um projeto, que nós estamos do lado do povo. E que era isso que estava elegendo. No entanto, o senhor ressalta esse aspecto emocional. Hoje, por exemplo, não há argumento que faça um eleitor do Lula deixar de acreditar nele. A mesma coisa com o Bolsonaro. É tudo muito emocional!

Conhecido politico brasileiro nos dizia há pouco: “Nunca os empresários ganharam tanto no Brasil como agora.” Qual a lição que se pode extrair daí? Multiplicamos ou triplicamos em nossos governos o número de universidades púbicas federais. Melhoramos o ambiente politico nas universidades? Posso responder negativamente. Repete-se: a quantidade nem sempre se transforma em qualidade. O que fizemos para mudar qualitativamente o ensino universitário, para construir um pensamento progressista? Nessa longa crise da qual o incêndio do Museu Nacional da Quinta da Boa Vista no Rio de Janeiro é uma metáfora, como se comportou, como reagiu a comunidade universitária?

P – Parece que essa argumentação racional tem um limite de alcance.

R – Nós levamos a energia elétrica para todo o país, para o interior, e…

P – Para o povo assistir a Rede Globo.

R – Para assistir a Rede Globo ou o bispo não sei qual… Nós expandimos os canais de televisão. A questão não é a forma, é o conteúdo. Quando nós pensamos em alterar conteúdo? Mas isso é uma discussão que nos divide.

P – Eu queria que o senhor falasse um pouquinho sobre esse mar em que a gente vive de polarização, de tipo bipartidária. Agora com a prisão do Lula, criaram um outro tipo de polarização que é esse lulismo, que vira uma marca, vira uma coisa meio que icônica.

R – Pós-sebastianista.

P – É, tipo o peronismo na Argentina. Você acredita que esse fenômeno pode estabelecer na política uma marca que todos os partidos e campanhas eleitorais terão que se ajustar? Se colocando de um lado ou de outro?

R – Vou falar aqui duas coisas. Nas vésperas de maio de 1968 houve uma reunião de intelectuais brasileiros em Paris. Brasileiros lá, brasileiros de passagem e brasileiros de lá. Aí um deles, que morava já a mais tempo na França, é escolhido para dar uma explicação sobre o quadro francês. A síntese da explicação é “olha, não vai ocorrer nada. O sistema francês é montado num complexo de pesos e contrapesos, de tal ordem, que vai se acomodar e vamos ter uma composição.” Então, você sabe o que é que ocorreu em maio em Paris e que se espalha por todo o mundo, chegando até o Brasil. O que foi que detonou maio de 1968? Foi uma greve de estudantes em Nanterre. O que motivou a greve que se transformou em uma revolução por direitos humanos?

P – A centelha na pradaria…

R – …Um conflito aparentemente menor na universidade de Nanterre, porque seu  reitor havia proibido, ou não havia permitido, que os alunos visitassem os dormitórios das meninas. No dia 17 de março de 1964, eu estava na ABI, aqui no Rio, para assistir a conferência do Prestes, comemorativa do aniversário (não sei mais qual) do Partido Comunista. A tese do Comandante, recebida com os aplausos de quem se vê livre de um pesadelo, é  que não havia possibilidade, no Brasil, de irrupção de um golpe militar, porque, completava o Secretário-geral do PCB,  as Forças Armadas brasileiras eram democráticas e o Exército formado por egressos da classe média. Quinze dias depois… Ou seja, há algo no processo social que se assemelha ao trabalho silencioso do cupim. Não é possível perceber o cupim roendo  a madeira; quando ele se faz notar,  o móvel já está esburacado ou o livro todo comido. Similarmente, há algo no movimento social que dificulta qualquer sorte de previsão. Somos, sempre,  engenheiros de obras feitas. A ponte está feita, então a gente descobre como foi feita, identifica os defeitos. É essa dificuldade de entender o processo social  que me preocupa, pois nossos quadros teimam em não estudar História. Ainda hoje não chegamos a um acordo analítico sobre o que ocorreu em 2013. A única coisa que sabemos, e isso parece um consenso, é que não entendemos 2013. Aquilo que você falava há pouco: ganha-se uma eleição, ganha-se outra, e ficamos  pensando que estamos ganhando a opinião pública, estamos ganhando os corações das pessoas…

P – A hegemonia…

R – … e as mentes das pessoas, ganhando hegemonia. Simplesmente  fizemos um acordo que chamo de ‘acordo de passagem’ com setores da direita supondo que os havíamos conquistado para nosso projeto. No governo e na vida real o governo e nossos partidos rejeitaram a batalha ideológica. O governo e o partido hegemônico impuseram a composição unilateral para evitar estremecimento com a base heterodoxa. Isso virou uma disfunção em 2015.

P – A impressão que dá é que, nesse momento, inclusive, a gente está vendo um jogo de três. Você tem por um lado a esquerda, o Bolsonaro num outro extremo, e um centro que se diz moderado.

R – Penso que não. Suponho  que a novidade foi o fim do meio. O que temos hoje, o que agudiza os campos da esquerda e da direita é uma expressão do  conflito capital x trabalho. O país está dividido em torno disso, essa é a real divisão:  entre  trabalhadores e rentistas. E esse conflito veio num crescendo e nós, a  esquerda, ou as esquerdas, não soubemos  identificá-lo e politizá-lo. Ficamos compondo, compondo até que o racha saiu do nosso controle, assim como, pela direita,  saiu do controle do PSDB, que terminou sem espaço ideológico. Antes,  a composição era, pelo menos  aparentemente, fácil: a burguesia tinha suas razões para ficar tranquila, porque o conflito terminava composto ora pelo PSDB ora pelo PT, duas expressões da socialdemocracia, uma pelo centro-direita, outro pelo campo da centro-esquerda. Nós não assustávamos mais.

P – Eu queria fazer agora um paralelo entre o livro e a campanha atual, aproveitando o debate proposta ali. Por exemplo, a questão dos debates televisivos, que passaram por um gradual engessamento, e hoje a gente não sabe mais o que fica como resultado desse show para o público que assiste.

R – Tenho  a impressão de que desses debates do primeiro turno não vai ficar nada. Por causa do engessamento crescente, pelo papel errado da mídia, que pergunta mais do que ouve, mas fundamentalmente, porque o capitão, líder nas pesquisas, está fora. A campanha em curso é binária,  uma campanha em torno de Lula (‘Lula livre’)  e o capitão. Ou seja, dois ausentes, um curtindo cárcere injusto e impedido de falar, outro no hospital, que é também seu álibi para não falar, porque não tem condições de enfrentar um debate.

P – E quando tem um debate programático é um debate sobre as questões identitárias, né?

R – Porque todos nós nos identificamos com ela, mas não quer que signifique assunto nenhume, ademais, ela não nos separa, porque tangencia o conflito social.

P – Sim, não entra na questão da luta política, da questão do capital x trabalho.

R – Por isso mesmo tivemos avanços significativos nas questões comportamentais, mesmo na ditadura. Claro, a defesa dos direitos de gays, mulheres, negros, etc. e tal, ademais de legítima, não afeta o conflito, ao contrário, retira do centro do eixo a questão central, o conflito de classe.

P – A gente tinha a impressão de que essa campanha ia trazer o debate programático. Tanto que foram feitos muitos debates programáticos nesse tempo, com as fundações partidárias se unindo em torno de um programa mínimo. Pelo que o senhor está falando, é exatamente isso que não está ocorrendo. Parece-me que o Bolsonaro joga uma cortina de fumaça sobre o debate.

R –  Ele traz uma não-discussão, contribuímos para esse esvaziamento apelando para o passado, queremos acicatar a emoção do povo chamando-o para viver um tempo passado, do qual, supúnhamos, ele teria saudade. Dizemos o que fizemos e não o que queremos; o feito é passado; o povo não se emociona com o que já foi feito, mas sim com o que lhe é prometido que será feito. Ele olha para a frente e nossos estrategistas estão com as vistas coladas no passado que não conseguimos revivescer.

P – No livro, o senhor menciona as campanhas que conseguiram, como essa do Jânio, sintetizar de forma clara o seu conceito fundamental. O senhor acha que nessa campanha atual alguma delas conseguiu? Eu estou perguntando porque eu tenho essa impressão em relação ao Bolsonaro. Tenho a impressão de que ele consegue sintetizar algo. Para o bem e para o mal.

R – A de 1989 foi excepcional, pedagógica. Relativamente a  2018, uso  uma expressão muito cara ao general Mourão, a quem se deve a pérola, digna do general Figueiredo, segundo a qual o Brasil seria um cavalo que pede um ginete com luvas de seda.   Não  estou preocupado com o ginete, mas sim  com o cavalo. Claro que o cavaleiro não deixa de ter seus méritos, posto que  está sabendo cavalgar, mas insisto  que nós da esquerda precisamos pensar como é que apareceu esse cavalo que ele está montando. Onde se escondia esse sentimento protofascista do qual jamais suspeitamos? Onde se escondia esse abrasante antipetismo? Ou seja, há  um problema, uma disfunção, uma dificuldade de identificar a serpente antes de ela quebrar o ovo e sair fora para nos picar. Penso que o caminho para a identificação de nossa deficiência reside no fato de, por hábito, jogarmos  para debaixo do tapete todas as questões políticas e só cogitarmos da questão eleitoral. Penso mesmo  que é aí que a esquerda se quebra.

P – Nesse cavalo que o senhor menciona, eu acho que está muito presente o debate sobre segurança pública, um debate que não foi forte na esquerda.

R – Nós fugimos desse debate. Nós ficamos entre a defesa correta dos direitos humanos e…

P – Evita falar de polícia, né?

R – …e fugimos a isso. Não  temos, a esquerda,  uma política para a crise da segurança, e por isso fugimos do debate de uma questão que está no dia a dia de milhões de brasileiros. Porque ficar  repetindo  que  o combate à violência é  questão de ‘inteligência’ nada fala ao povo. O Garotinho dizia isso aqui no Rio na campanha para governador (1998), na campanha para presidente (2002), mas essa frase solta  não ilude mais  ninguém.

P – Uma das coisas que eu li no seu livro é que você disse que a campanha tem que eleger um adversário certo. Está havendo esse debate de quem é o adversário? O Fernando Henrique diz que os adversários são os extremistas, o PT e Bolsonaro. O senhor acredita que as campanhas estão escolhendo os adversários corretos para a disputa?

R – Penso  que a direita sim… Só há  duas vagas na passagem para o segundo turno. Quando o candidato está em terceiro lugar ele  está disputando seu ingresso no grupo A. Ele é obrigado a  escolher qual dos dois postulantes à sua frente, por ser o mais frágil, deve ser seu alvo.  Evidentemente é sempre o que está em segundo lugar. É esta a arrumação. Por que o Ciro está batendo no PT? Porque só há uma  forma de ele entrar: afastar o Haddad,  porque  o capitão  está consolidado na ponta. É uma disputa euclidiana por espaço. O que está claro para mim, neste momento,  é que o eleitorado do Ciro, independentemente da vontade do meu amigo, deverá votar no Haddad, se o segundo turno for, como tudo sugere, uma disputa entre o capitão e o Haddad. Por outro lado, também estou convencido  de que, majoritariamente, os eleitores dos demais candidatos (com a exceção, evidentemente, dos eleitores do Boulos) correrão para o capitão. Quem terá ainda um contingente eleitoral, de certo muito reduzido, por negociar, é o Alckmin, porque sua direita já o está abandonando, migrando para o capitão. O que vai ficar? É admissível que os eleitores que permanecerem com ele até o final do primeiro turno possam, no segundo, votar no Haddad. Dependerá, ainda, da postura dos ‘cardeais’ do tucanato e do conhecido autismo político dos cardeais do PT.

P – A carta do Fernando Henrique é uma carta de desespero?

R – Prefiro dizer que todas essas personalidades que começam a formular dúvidas quanto ao quadro que antes parecia tão nítido, são intérpretes, e, como no caso do FHC, expressam as dúvidas que começam a minar a tranquilidade do establisment brasileiro. O capitão não é o primeiro engenho da direita brasileira. Antes foi gerado o Jânio Quadros, e a experiência deu no que deu. Construíram o Collor e deu no que deu. Penso porém que os receios do sistema foram despertados muito tardiamente. O potro está solto na raia.

P – Na verdade eles ajudaram a construir essa personagem, esse cavalo, inclusive, não só o personagem.

R – Quem construiu o Collor? O Collor era um governador desconhecido de Alagoas. O eleitorado desse Estado é menor que o do ABCD paulista. Era um ilustre desconhecido que a mídia transformou em ‘caçador de marajás’. O Jânio, o homem da vassoura, é também uma construção. Muito bonita, mas uma construção. O que estou pretendendo afirmar, é que a questão central, neste pleito,  é que os plantadores de vento só se aperceberam da criatura que haviam criado quando a tempestade já era um fato irremovível.   Penso que apostaram na hipótese Alckmin, que,  teoricamente, tinha tudo para ser um campeão de votos, ademais de manter em termos permissíveis o jogo clássico  entre PT x PSDB. Mas o Alckmin está com pés de chumbo e não consegue mais desfazer-se do calçado que o levará inevitavelmente ao naufrágio eleitoral. Cuidam agora de alimentar, com reservas,  a candidatura do Ciro. Que não é o ideal para o sistema financeiro. Mas, igualmente, demoraram muito a perceber as potencialidades do cearense. O segundo turno será com o capitão.

P – Eles acreditaram que era possível domesticar o Bolsonaro e perceberam que é mais complicado.

R – E eu acho que, nesse sentido, o vice dele exerceu um papel didático importante.

P – Eu farei uma última pergunta, se o senhor me permite: nessa altura da campanha, já é possível dizer que alguém cometeu algum grande erro ou um grande acerto? Isso pensando em marketing.

R – Estou improvisando, só ao fim da campanha é que pretendia dedicar-me a esse tipo de análise. Penso que o Ciro, que uma vez mais teve chances de ganhar as eleições, foi aquele  que, até aqui, cometeu mais erros, por haver demorado a fixar seu campo, e, até essa fixação, haver namorado ora com uma inclinação mais à esquerda, ora mais ao centro havendo mesmo, no início da campanha, se aproximado do petismo. Seu erro, nesse sentido, do meu ponto de vista, foram dois: a dúvida e a demora em optar. De outra parte, apesar do pluripartidarismo, a campanha eleitoral, principalmente no que tange à Presidência da República,  sempre foi binária. Em 1945 estava afunilada entre o general Dutra e Brigadeiro Eduardo Gomes; em 1950 os personagens eram Getúlio Vargas e de novo o Brigadeiro. Em 1955, Juscelino e Juarez, o Adhemar logo foi escanteado. Por aí foi, até aqui. A única campanha que teve algum elemento assim, de terceira via, foi a de 1989, quando Collor, Lula e Brizola foram até o final do primeiro turno. Passado aquele pleito inaugural da redemocratização, a regra voltou a ser observada: Fernando Henrique contra Lula (1994 e 1998),  Lula versus  Serra (2002),  Lula  contra Alckmin (2006), Dilma versus Serra (2010) e finalmente Dilma versus Aécio. A polarização não é, portanto, novidade entre nós, mas uma característica de nosso presidencialismo. A Marina se propôs, nas duas vezes anteriores e se propõe neste pleito, a construir uma alternativa. Não conseguiu, agora ainda menos. O projeto do Eduardo Campos também era essa alternativa, mas quando morreu transitava em 8% das intenções. Nas suas disputas anteriores, o Ciro também não chegou a ameaçar o pódio. Desta feita, trata-se de pura intuição, o candidato do PDT supôs que o eleitorado lulista, impedido o ex-presidente, iria naturalmente para seu campo, como a água que desce por declive, o que não ocorreu. Foi desastrada sua guinada à procura do apoio dos chamados partidos de centro, não os conquistando e se afastando do eleitorado mais à esquerda. Então, ele esperava esse rio, e ia procurar o riacho do centro. Não se saiu bem nem no centro. Ele não é confiável para o centro, e terminou se desgastando à esquerda.

Um outro erro, crasso, foi o do PT, ao bater como bateu no Ciro, afastando-o ainda mais e dificultando os entendimentos necessários na hipótese de o Haddad ir para o segundo turno. Outro erro de cabo de esquadra é da campanha do Alckmin, que também não fixou o seu campo. Ele é antipetista e anti-capitão. Então ele é anti-todo mundo. Ou seja, não é nada, o centro foi esmagado, e quedou-se totalmente sem política. Some-se a tudo isso o desgaste da ordem partidária. Cadê os partidos nessa campanha? Quando terminar essa campanha, o PSDB será um partido de segunda linha. Sua tábua de salvação, em meio ao desfalecimento, é a possível, apenas possível, eleição de Anastasia em Minas Gerais. O PT perde, comendo poeira, de Minas Gerais ao Rio Grande do Sul; o único governador de relativa importância que deve eleger é o do Estado da Bahia. Um caso à parte, que cobra estudo à parte, é a onda antipetista, seu desenvolvimento e seu crescimento. O PT e a esquerda vão perder fragorosamente em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas, os três mais importantes Estados da federação, as três maiores aglomerações urbanas e a moradia do que se pode identificar como proletariado brasileiro. Isso nos está incomodando?

P – Está certo. Vamos concluir assim? Então está bom. Professor, muito obrigado. Foi um grande prazer ler seu livro.

R – Evidentemente quem agradece e fica devedor sou eu.