Desde o início da cinquentenária carreira interessado em temas políticos, Silvio Tendler (Jango, Utopia e Barbárie) volta suas lentes para o sistema financeiro em Dedo na Ferida – cujo tom nada apaziguador já é indicado no título. Eleito pelo público o melhor documentário do Festival do Rio 2017, o filme financiado pelo Sindicato de Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (SENGE) oferece diferentes análises de especialistas sobre insatisfatória situação econômica atual tendo a preocupação de, didaticamente, ilustrar como tais questões afetam a rotina do brasileiro comum.

A estreia de Dedo na Ferida nesta quinta-feira marca o reencontro do cineasta com o circuito. Diretor do documentário de maior público do cinema nacional (O Mundo Mágico dos Trapalhões), Tendler nos últimos anos tem atingido mais espectadores pela disponibilização gratuita de seus filmes no Youtube do que via lançamento comercial. Nesta entrevista realizada em outubro do ano passado o cineasta comenta sobre o diálogo com quem pensa diferente, o papel do documentarista e o futuro, adiantando próximos projetos.

De que forma surgiu Dedo na Ferida?

Comecei a discutir muito a questão do Brasil ser o país que mais gasta dinheiro com banco no mundo, longe de qualquer outro. Sou uma pessoa que não tenho preconceitos, então briguei muito contra o impeachment, contra os “coxinhas” e tal, mas respeito as pessoas que sabem. Tenho um amigo que, apesar de “coxinha”, tem uma posição muito interessante em relação ao sistema financeiro, porque ele defende o capitalismo, mas dentro da economia produtiva, e é fã do Raymundo Faoro, que escreveu Os Donos do Poder. E aí ele falou: ‘Você vai ver que quem manda no poder é quem domina a economia’. Nos Estados Unidos é a indústria bélica, eles têm que inventar uma guerra toda hora, fora as matanças internas que não proíbem porque precisam vender bala. E aqui no Brasil, de forma outra suicida e simbólica, é o sistema financeiro, pois 50% do PIB vai para pagar dívida de banco.

E o Anderson, como se deu o encontro com esse personagem principal?

Ele é meu podólogo. Eu estava fazendo o pé e ele me contou que era de Japeri e daí foi cruzando a ideia de fazer um filme sobre o sistema financeiro. Fui pensando: ‘Vou cruzar a vida de um cara normal, cotidiana, com a duração de um filme, porque o que esse cara podia estar assistindo de filme por dia, se ele morasse a 15 ou 20 minutos no trabalho, ele gasta de transporte em condições loucas’. Resolvi trabalhar a economia de um outro ponto de vista. Um cidadão comum que leva uma vida muito difícil, não tem acesso à cultura, não tem vontade de ter acesso à cultura, porque tem teatro a duas quadras da casa dele, de um amigo dele… Então fui juntando os problemas da economia e a resistência da arte.

A gente vive agora um momento de retrocesso tremendo em que é necessária uma enorme resistência para conseguir realizar arte, viver de arte…

Sempre enxerguei a arte como tecido da resistência, isso eu não inventei agora. Em 1964 eu tinha 14 anos, era estudante de classe média de Copacabana. Os deputados foram cassados, os sindicatos foram fechados, a União Nacional dos Estudantes foi fechada, então quem pôde resistir ao golpe? Os jornalistas e os artistas. Criou-se o Teatro Opinião e o pessoal que tinha sido do CPC da UNE foi para lá – Vianinha, Ferreira Gullar, Tereza Aragão – , toda uma plêiade de artistas, Hugo Carvana, Pitanga; e eu olhava eles com reverência e admiração. Dizia: ‘Um dia quero ser igual’ e o que estava mais militante era o cinema, então resolvi chegar nele e no cineclubismo. Essa minha coisa de resistência da arte vem de 64 até hoje e a arte sempre foi fundamental nas resistências – a resistência ao nazismo, resistência ao fascismo, o cinema italiano, o neorrealismo, o Cinema Novo… Sou formado nessa cultura, é esse o caldo que me alimenta. Da mesma maneira que você não cria arte por decreto, você não extingue arte por decreto. Nós vamos vencer e vencemos. Quem muda o mundo são os artistas. Eu coloco o confronto no filme entre os artistas de Japeri e o sistema financeiro mundial.

Um problema é diagnosticado por todos os entrevistados do filme, mas a solução, como sair disso, dessa situação que a gente se encontra, é um ponto incerto.

Aí eu deixo para os espectadores. Tenho umas amigas comunistas que adoraram. Elas foram extremamente críticas em relação ao depoimento do Ladislau Dowbor, que é um ex-guerreiro da luta armada, petista convicto, e que defende uma saída dentro do capitalismo através das cooperativas financeiras; e gostaram da entrevista do Keith Cattley, que é o pensador completamente capitalista. Essa coisa não se resolve pela ideologia, se resolve pela alternativa que se busca na sociedade. O filme está muito equilibrado. Acho que como autor não me cabe tomar partido. É muito fácil dizer que sou a favor ou contra isso. É o espectador que vai dizer: ‘Dentro do sistema capitalista não tem saída’; ou: ‘Sim, você pode fazer um sistema capitalista mais humanitário’. E com isso atinge mais gente. Sempre tomei partido das coisas, mas sempre deixei a porta aberta. A mim, como cineasta, cabe apontar os conflitos e ao espectador cabe a busca dos caminhos. Se eu fizer um filme fechado vou ter só meus militantes, vou excluir muitos espectadores.

Não sei se você costuma ler os comentários nos seus filmes no Youtube, mas lá boa parte da galera discorda, muitos te chamam de “tendlercioso”.

E como é que fica? Sou petralha de um lado, tendlercioso de outro, é o que eu quero. O documentarista não precisa ouvir os dois lados e ele pode defender um ponto de vista. Ele não pode mentir, não pode adulterar uma realidade para defender um ponto de vista, mas ele pode perfeitamente dizer, e eu falo: O Dedo na Ferida bate no sistema financeiro. Ele não dá a saída. Cada entrevistado tem seu ponto de vista e eles vêm de militâncias diferentes. Outra coisa que também não faço num filme ou numa entrevista é pedir atestado ideológico. Tem duas coisas que a minha geração lutou contra com muita convicção: trabalhador ser obrigado a portar carteira de trabalho, que era a maneira que a polícia tinha de prender os populares – e claro que incidia 90% em cima da população negra – , e o atestado ideológico. Você, para entrar em concurso ou faculdade, tinha que ter o nada consta do DOPS. A gente brigou contra isso, eu não tenho o direito agora de pedir um atestado ideológico. Você veio me entrevistar e estou te dando entrevista, não sei o que você pensa. De repente você discorda completamente de mim e me dá um pau na matéria, mas é um direito seu.

Você foge do modelo tradicional de produção nacional, que é de edital, lei de incentivo. Como foi tomar esse caminho de buscar parceria com o sindicato?

Nos anos 1950 o Partido Comunista Francês e o Partido Comunista Italiano também eram produtores culturais. Os sindicatos produziam cultura. Tem um cineasta francês chamado René Vautier que fez grandes filmes com grana do sindicato dos estivadores. O que fiz foi resgatar uma antiga relação que existia entre sindicatos e artistas. Eu não sou um ser perfeito, também tenho vacilos, também erro. E ali você tem parceiros que discutem e que dizem que não é bem assim. As duas parcerias com o SENGE (Sindicato de Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro) foram muito boas, tanto Privatizações: A Distopia do Capital quanto Dedo na Ferida. Adoro trabalhar com eles porque tem menos constrangimentos, menos implicações. É mais rápido, esse filme a gente levou menos de um ano fazendo.

Talvez nunca se tenha produzido tanto no Brasil, mas a distribuição ainda é um enorme problema. De que maneira lidar com essa questão?

Meu último filme passava às 14h e às 17h, sem nenhuma sessão intermediária. Foi condenado ao fracasso e a dona do cinema me disse: ‘Silvio, eu ganho muito mais dinheiro vendendo pipoca do que projetando filme, e seu filme não traz esse público’. O que dá dinheiro hoje é filme para público infantojuvenil. E aí eu falei: ‘Não vou ficar batendo teimosamente, vou direto para as redes alternativas de distribuição’. Comecei a fazer copia do meu filme e deixar com camelô. Eu pago impostos, o camelô não paga e meus filmes começaram a ser vistos. O importante é o filme ser visto, é sair da gaveta. Então vamos fazer filmes assim e distribuir assim até o próprio sistema perceber que estão perdendo de dinheiro. Como o sistema não quer perder dinheiro em nada, vai começar a recuperar os filmes da gente. O sistema só começou a vender camiseta do Che Guevara quando viu que Che Guevara vendia. Hoje você vê caminhão na estrada com fotografia do Che Guevara.

No complicado cenário atual em que, assim como o Anderson, as pessoas têm que trabalhar muito, perdem bastante tempo em deslocamento e não têm tanto tempo livre, por que devem buscar ver Dedo na Ferida?

Por isso mesmo. O cinema é um espelho, ele permite você ver sua própria vida. Eu acho que se o Anderson tomar coragem e assistir ao filme ele vai entender metade da vida dele. Ele vai, inclusive, deixar de se culpar por muitas das coisas que não faz. O problema é global, mas é porque também tem todo um sistema de aprendizado e domesticação das pessoas; a gente no fundo só se encontra nas grandes salas que a indústria quer. Na verdade a sociedade domina muito mais pelo excesso de oferta do que pela proibição. Então acho que a gente tem que lutar contra esse desencontro das pessoas em cima das ofertas. A gente só vai ver o que a Globo quer, os filmes que a Globo anuncia. Está na hora da gente criar um sistema alternativo de comunicação para oferecer os filmes que a gente quer assistir também. Produção existe, não existe encontro.

Você, que tem uma profunda afinidade com o cinema aliado à história, está pensando em fazer algum filme sobre a crise política que a gente tem enfrentado?

Em 2018 fazem 50 anos que faço cinema, é meu cinquentenário. E aí estou preparando, hoje, três filmes – que devem virar quatro. Estou fazendo Nas Asas da PanAm, que é autobiográfico; estou fazendo Santiago Álvarez, que é [sobre] um dos meus gurus, cubano que mudou o cinema nos anos 60, fazia cinema político do ponto de vista da América Latina; estou fazendo o Zéfiro [sobre o desenhista pornográfico Carlos Zéfiro], que é o meu lado pornô – você lembra do [François] Truffaut em A Noite Americana, tem o velhinho que entra com duas mulheres no set de filmagem e diz ‘cinema político e cinema pornográfico é tudo a mesma coisa’. Estou fazendo os três e batalhando agora a grana para Amir Haddad – Alegria de Palhaço é Ver o Circo Pegar Fogo, eu e Amir Haddad criticando tudo o que está aí. Quatro filmes e aí acho que fecho meu ciclo, vou comprar uma casinha no interior e vou viver de memórias.