Ao longo da história, a classe trabalhadora sempre foi vítima das turbulências que periodicamente perturbam o funcionamento das economias capitalistas, interrompendo o processo de circulação, reprodução e expansão do capital. Não é diferente neste momento em que o sistema atravessa sua maior crise desde a Grande Depressão dos anos 1930. Em todo o mundo, os capitalistas em apuros tratam de transferir o ônus da crise ao povo trabalhador, demitindo em massa, reduzindo salários e flexibilizando direitos.

A OIT (Organização Internacional do Trabalho) já estima em mais de 50 milhões o número de pessoas que vão engrossar o exército de desempregados ao longo dos próximos meses, de forma que este vai somar 240 milhões no mundo. Num só dia (26 de janeiro de 2009), multinacionais sediadas nos EUA, Europa e Japão, anunciaram a demissão de 79 mil operários(as). Note-se que essas empresas não estão encerrando as atividades, mas “fazendo ajustes” para adequar a produção a uma demanda reduzida. No mesmo mês de janeiro foram destruídos 598 mil postos de trabalho na economia estadunidense.

A posição da CTB

A CTB (Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil) foi a primeira central sindical brasileira a notar o avanço da crise e assumir uma posição diante dos acontecimentos. Através do documento O capital financeiro deve pagar a conta da crise, ela conclamou o movimento sindical à unidade e à luta em defesa do emprego e dos direitos sociais sob ameaça.

No texto os sindicalistas constatam: “a crise que abala o sistema capitalista internacional, irradiada dos Estados Unidos, já chegou ao Brasil”, tendo por canais o câmbio (com a depreciação do real), as bolsas, o comércio exterior, o crédito internacional (que secou) e as decisões das transnacionais em resposta à crise, emanadas de matrizes em dificuldade nas potências capitalistas. Com efeito, o último trimestre do ano passado registrou uma súbita inversão do ciclo da economia nacional. A forte expansão da indústria nos três primeiros trimestres do ano deu lugar a uma preocupante queda da produção no setor, a agropecuária vai mal, a balança comercial acusou déficit em janeiro deste ano, o emprego escasseia, o desemprego avança.

Quem paga a conta?

A mudança do cenário econômico “terá repercussões negativas para a classe trabalhadora”, conforme previu o documento. O desempenho da economia durante o ano de 2007 e os três primeiros trimestres de 2008 foi um fator objetivo que favoreceu a luta do movimento sindical e da classe trabalhadora, aliado a um ambiente político mais favorável criado pelo governo Lula. As categorias, em sua ampla maioria, conquistaram acordos coletivos exitosos, com aumento real dos salários, redução da jornada sem redução de salários (em alguns casos) e ampliação dos benefícios.

Foi um período de muitas contratações, aumento do nível de emprego, com incremento maior do mercado formal de trabalho e redução da precariedade. Cresceram a renda e o consumo das famílias, com destaque para as mais pobres, beneficiados pelos programas sociais da União e pela valorização do salário-mínimo. O fortalecimento do mercado interno estimulou o comércio e a indústria, alimentando o crescimento da economia. O IBGE registrou alta de 6% do PIB no primeiro semestre de 2008. Parecia que o Brasil tinha deixado para trás a era dos “voos de galinha” e estagnação da renda per capita (1980-2005), retomando o caminho do desenvolvimento nacional. A crise também coloca esta perspectiva em xeque.

O tempo mudou para a classe trabalhadora, especialmente no setor privado, onde os patrões demitem e pressionam para reduzir salários e flexibilizar direitos. As campanhas salariais de 2009 não transcorrerão no mesmo clima dos últimos anos. A crise acirra os ânimos e os conflitos entre capital e trabalho. O x do problema é definir quem vai pagar a conta. Impedir que o ônus seja jogado nas costas dos trabalhadores e trabalhadoras não será tarefa simples. Pressupõe a unidade, a resistência e a luta das centrais e dos sindicatos, em aliança com outras organizações e forças progressistas, e depende também das opções políticas, da conduta do Estado nacional, das iniciativas do governo Lula.

Limites do capitalismo

A origem da recessão remonta aos Estados Unidos no final de 2007 e está associada à superprodução e aos excessos de investimentos e de especulação verificados no ramo imobiliário. Tornou-se uma crise econômica mundial em função da importância extraordinária que o mercado norte-americano tem no processo de reprodução do capital em escala internacional, nas esferas financeira, comercial e industrial. Tio Sam é o maior importador do mundo, um consumidor insaciável de mercadorias estrangeiras, especialmente chinesas. Quando interrompe ou reduz as compras no exterior ele desperta a crise de superprodução na China e em outros países; quando interrompe ou reduz o crédito promove inversão do fluxo e fuga de capitais noutras economias. Nova Iorque ainda é o principal centro financeiro do mundo.

“A crise”, segundo a análise da CTB, “decorre de contradições inerentes ao sistema capitalista, agravadas pelo neoliberalismo, que estimulou o excesso de ganância das multinacionais e desregulamentou o sistema financeiro, abrindo caminho à especulação desenfreada”. É importante observar esta característica quando somos induzidos a imaginar a tática e a estratégia da classe trabalhadora e das organizações sociais que os representam diante da crise.

Lembrando Engels

Vale citar algumas observações do pensador inglês Friedrich Engels, parceiro de Karl Marx, sobre o tema, que embora feitas no final do século XIX mantêm admirável atualidade (1):
“Nas crises”, notou Engels, “o que se vê é a contradição entre a produção social e a apropriação capitalista chegar à explosão violenta. A circulação de mercadorias é momentaneamente paralisada. O meio de circulação, o dinheiro, torna-se um obstáculo à própria circulação – todas as leis da produção e da circulação são viradas pelo avesso. A colisão econômica atinge o auge: o modo de produção revolta-se contra o modo de troca, as forças produtivas revoltam-se contra o modo de produção para o qual se tornaram demasiado grandes.

O comércio estagna, os mercados superlotam-se, os produtos existem em tão grande quantidade que não são vendáveis, o dinheiro torna-se invisível, o crédito desaparece, as fábricas param, as massas trabalhadoras carecem de meios de subsistência porque produziram demasiado meios de subsistência, as falências e vendas forçadas sucedem-se ininterruptamente.

Meios de produção, meios de subsistência, trabalhadores disponíveis, todos os elementos de produção e de riqueza geral existem em excesso. Mas, a ‘superabundância torna-se a fonte da penúria e da miséria’ (Fourier), porque é precisamente ela que impede a transformação dos meios de produção e de subsistência em capital – meios para a exploração da força de trabalho humana. Em cada crise, a sociedade se asfixia sob o fardo das suas próprias forças produtivas e dos produtos que não pode utilizar. E choca-se, impotente, contra esta contradição absurda: os produtores nada têm a consumir porque há falta de consumidores”.

Todas estas contradições notadas pelo genial parceiro de Karl Marx (estagnação do comércio, interrupção do crédito, excesso de meios de produção e de subsistência, trabalhadores disponíveis, elementos da produção em excesso e, paradoxalmente, paralisação da produção, penúria e queda do consumo) podem ser facilmente verificadas na crise atual.

A bandeira do socialismo

As crises em geral, e esta em especial, evidenciam os paradoxos e os limites históricos do capitalismo. São inevitáveis e recorrentes sob o sistema, e a experiência histórica indica que, além dos efeitos sociais indesejáveis que provocam, também costumam ser acompanhadas do protecionismo, do acirramento das contradições entre as nações e de guerras. A Grande Depressão dos anos 1930 é apontada por muitos economistas e historiadores como uma das principais causas da Segunda Guerra Mundial.

Por esta e outras razões, é necessário esclarecer os trabalhadores e a sociedade em geral sobre a necessidade histórica candente de renovar a luta revolucionária pela destruição do capitalismo e pela construção de uma nova sociedade, socialista. O caminho do capitalismo e do imperialismo conduz à guerra, a sobrevivência do sistema é uma ameaça à paz entre as nações. Por isto, talvez mais do que em qualquer outra época, a humanidade se defronta com o seguinte dilema histórico: socialismo ou barbárie.

Sem perder de vista a dimensão histórica da crise, é preciso responder com firmeza aos desafios que dela emergem. A denúncia do capitalismo e a propaganda do socialismo precisam ser feitas de forma viva, intercaladas com as lutas concretas (no chão das fábricas, nas ruas, no Parlamento, junto aos governos) em defesa da economia nacional, do crescimento, do emprego, dos salários, das conquistas e direitos.

Unidade é fundamental

Cabe aos movimentos sociais no Brasil buscar a unidade da classe trabalhadora e viabilizar uma ampla aliança política e social, com as organizações e partidos progressistas, para enfrentar a crise. Tal unidade deve ter por base a defesa intransigente dos interesses e direitos dos trabalhadores, que não têm culpa no cartório e não devem pagar pela crise.

Por iniciativa da CTB, as principais centrais sindicais brasileiras (FS, CTB, UGT, Nova Central e CGTB, com exceção da CUT) estiveram reunidas no dia 15 de janeiro na sede nacional da CTB para definir uma posição conjunta sobre a crise e agendar uma reunião com o presidente Lula para cobrar medidas em defesa do emprego. A união potencializou a força do sindicalismo e teve resultados positivos após a reunião com Lula, realizada em Brasília, como a preservação do aumento real de 5,7% do salário-mínimo neste ano.

Mas, é preciso ir além disto. Ampliar a unidade e a luta, envolvendo entidades da sociedade civil como OAB, CNBB, ABI, o conjunto dos movimentos sociais, partidos políticos, parlamentares e governantes, de forma a deflagrar uma grande mobilização nacional para abordar a crise, são outros passos necessários.

Evitar as falsas saídas

Propostas patronais, como a da Fiesp (Federação das Indústrias de São Paulo), que prevê redução de salários e de jornada, banco de horas e suspensão temporária dos contratos, do ponto de vista da CTB revelam o oportunismo das elites empresariais, que tiram proveito da crise e usam o fantasma da demissão para impor seus interesses, preservando e ampliando suas taxas de lucros. A redução da jornada é uma aspiração histórica da classe trabalhadora que pode contribuir para amenizar o desemprego, conforme reconheceu o presidente da Fiesp, Paulo Skaf. Todavia, o tempo de trabalho deve ser diminuído sem prejuízo para os salários, sacrificando os lucros, se necessário.

No Brasil, os salários são historicamente baixos em comparação com os países capitalistas mais desenvolvidos (EUA, Japão e Europa), o que estimula centenas de milhares de brasileiros a vender sua força de trabalho, em geral bem qualificada, no exterior. Reduzir salários é inaceitável por várias razões, inclusive porque contraria normas legais inscritas na Constituição e na CLT que preconizam a irredutibilidade dos salários. Não podemos transigir e traficar com esse e outros direitos conquistados pela classe trabalhadora brasileira em nome da conciliação de interesses com o capital e sob o constrangimento do facão no pescoço.

Além disto, do ponto de vista da chamada macroeconomia, a sugestão dos patrões, inspirada na defesa do lucro e em ideais neoliberais, é uma falsa solução, que pode agravar os problemas em vez de atenuá-los, configurando um tiro no pé. Não podemos esquecer que reduzir salários significa reduzir consumo e enfraquecer o mercado interno. Ocorre, conforme é mundialmente reconhecido por economistas e governos, que o baixo nível de consumo (que em nosso país é sócio dos baixos salários) é a outra face da crise de superprodução. Para combater a crise é necessário aumentar a capacidade de consumo da população, valorizando os salários e fortalecendo, por esta via, o mercado interno. Enfraquecer o mercado interno, neste momento, é jogar lenha na fogueira da crise. São também inaceitáveis as propostas de maior flexibilização das relações e da legislação trabalhistas.

Crise e oportunidade

A crise embute sérios riscos para a economia nacional, mas também encerra oportunidades e pode abrir caminho para transformações sociais mais avançadas. Na mesma medida em que atestam o fracasso das políticas neoliberais, previamente notado e apontado pelos críticos do sistema, os acontecimentos em curso também despertam a necessidade objetiva de buscar novos modelos de desenvolvimento nacional, alternativos e opostos ao neoliberalismo.

A CTB entende que está na ordem-do-dia a defesa do projeto de desenvolvimento com soberania e valorização de trabalho, tema central do documento aprovado em seu congresso de fundação, publicado no livro que reúne as resoluções da reunião. A ideologia neoliberal apontou a depreciação da força de trabalho (com desemprego, terceirização, flexibilização, redução dos direitos e arrocho dos salários) e a maximização dos lucros como fontes de crescimento econômico, porém, os efeitos do neoliberalismo desmentiram as promessas de seus ideólogos. Em vez de desenvolvimento, a depreciação da força de trabalho potencializou os fatores que conduzem à crise, reduzindo a capacidade de consumo das massas e as dimensões dos mercados internos.

Aqui convém lembrar a lição legada pelo filósofo alemão Karl Marx na análise das crises: “A razão última de todas as crises reais é sempre a pobreza e a restrição ao consumo das massas em face do impulso da produção capitalista a desenvolver as forças produtivas como se apenas a capacidade absoluta de consumo da sociedade constituísse seu limite” (O capital, livro 3). Combater a causa ou “a razão última” da crise significa combater “a pobreza e a restrição ao consumo das massas”. O neoliberalismo, camuflado nas propostas da Fiesp, depreciou salários e elevou os lucros, mas se revelou um veneno para as economias ao deprimir a taxa de consumo do povo trabalhador.

Trabalho e desenvolvimento

O projeto de nação propugnado pela CTB guia-se por uma filosofia oposta à neoliberal. Enxerga na valorização da classe trabalhadora não um obstáculo, mas sim uma fonte segura para o crescimento do PIB e o desenvolvimento nacional. As bandeiras do trabalho (pleno emprego, valorização dos salários, redução da jornada, ampliação dos direitos) não se contrapõem aos interesses nacionais, muito pelo contrário, são em si bandeiras desenvolvimentistas.

Afinal, é o trabalho que cria o valor econômico e toda riqueza social, daí que quanto maior for o nível de emprego maior será o crescimento do PIB, quanto maior o valor dos salários maior será o nível de consumo e a atividade comercial e industrial. Além disto, as demandas trabalhistas são progressistas do ponto de vista histórico por estabelecerem relações mais avançadas e civilizadas entre os seres humanos, propiciando paz e harmonia social.

Governo Lula

Sem dúvidas o governo Lula constitui um avanço na direção da transformação progressista da nossa sociedade e a resposta que vem dando à crise tem notáveis diferenças em relação à época em que fomos comandados pela dupla FMI/FHC. Em vez de maiores restrições fiscais e monetárias, o presidente optou pela aceleração do PAC, elevou a capacidade de financiamento do BNDES, ampliou o crédito imobiliário para os mais pobres, valorizou o salário-mínimo e alongou o prazo do seguro-desemprego. São medidas que objetivam aumentar o consumo e os investimentos para evitar uma recessão mais severa.

A CTB apoia essas iniciativas, mas entende que é preciso mais ousadia no sentido de elevar o papel do Estado no controle dos mercados e gestão da economia. Defendemos mudanças mais profundas na política econômica, o que compreende medidas como a redução substancial dos juros e do spread bancário; fim do superávit primário e do câmbio flutuante; rigoroso controle sobre os fluxos de capitais estrangeiros; taxação das remessas de lucros pelas multinacionais que, no ano passado, foi a principal causa do déficit em conta corrente; reforma agrária e fortalecimento da agricultura familiar; coibição das demissões imotivadas e ratificação e aplicação da Convenção 158 da OIT; reforma tributária democrática e progressiva; condicionamento da concessão de benefícios públicos a empresas em dificuldade à manutenção e ampliação do nível de emprego, entre outras.

Finalmente, é preciso levar em conta o contexto histórico mais geral em que transcorre a crise econômica, caracterizado pela crise da hegemonia dos EUA e a decomposição da ordem imperialista fundada na supremacia do dólar. O mundo e a América Latina em especial vivem dias de transição política que respondem à necessidade objetiva de uma nova ordem mundial. Neste sentido, a mudança do cenário político na região, iniciada com a eleição de Hugo Chávez na Venezuela em 1998, é promissora e bem vinda. Conforme recomenda o documento da CTB sobre a crise é hora de “aprofundar o processo de integração da América Latina: fortalecer o Mercosul, a Alba (Alternativa Bolivariana para as Américas) e a Unasul; retirar as divisas das reservas aplicadas em títulos do governo estadunidense para investir na criação do Banco do Sul; caminhar na direção de uma moeda única sul-americana, excluindo o dólar no comércio entre os países da região”, fundar o Conselho de Defesa da América do Sul. O movimento sindical precisa caminhar unido e intensificar a mobilização de suas bases em defesa de uma integração socialmente mais justa e progressista, bem como para conferir à classe trabalhadora um protagonismo maior na luta por um novo projeto de desenvolvimento capaz de abrir caminho ao nosso objetivo estratégico maior: o socialismo.

Wagner Gomes é presidente da Central de Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB)

Nota
(1)Os trechos citados foram extraídos do livro Engels, coletânea de textos do autor organizado pelo professor José Paulo Netto, sob coordenação de Florestan Fernandes, publicado pela Editora Ática.

EDIÇÃO 100, MAR/ABR, 2009, PÁGINAS 36, 37, 40, 41, 42