A trajetória de Astrojildo Pereira coincide com o nascimento e a formação da modernidade capitalista no Brasil. Ele nasceu depois do fim do escravismo e da monarquia e morreu logo após a instalação da ditadura militar que consolidaria a ordem burguesa no Brasil. Durante toda a sua vida Astrojildo Pereira preservou a lucidez de se manter ao lado e na perspectiva do que havia de mais progressivo na vida social e cultural do País. Desde cedo percebeu que a classe operária e os trabalhadores ofereciam a seiva mais fértil e saudável da nossa vida social.

O espírito de rebeldia levou-o a abandonar os estudos formais aos 16 anos de idade, quando começou sua militância anarquista, em oposição à fé religiosa difundida pela Igreja e contra o militarismo, estimulado, talvez, pelas greves operárias de 1906. Sob o impacto da revolta dos marinheiros no Rio de Janeiro e pela execução do pedagogo anarquista Francisco Ferrer, na Espanha, Astrojildo fez uma curta viagem à Europa — que lhe serviu para amadurecer suas convicções de antagonismo à ordem social. Como gráfico e jornalista, ele passou a ser um militante e organizador do movimento operário da vertente anarco-sindicalista, tendo participado ativamente de várias publicações de oposição à ordem liberal oligárquica e à guerra imperialista.

Astrojildo Pereira viveu intensamente o apogeu e a crise da primeira marcante irrupção do movimento operário na cena política do país, quando os trabalhadores urbanos se expressaram como classe, entre 1917 e 1920. A rebelião do trabalho no Brasil foi apenas uma limitada faceta de um movimento universal, cujo ápice esteve na revolução socialista eclodida na Rússia. As dificuldades no encaminhamento da luta de classe contra a ordem liberal oligárquica — que acabaram na derrota do movimento — e o impacto da Revolução Russa de 1917 provocaram uma cisão no seio da vanguarda operária. O último esforço para a preservação da unidade foi feito no III Congresso Operário do Brasil, em abril de 1920 — havia divergências entre aqueles que, por um lado, entendiam que a derrota se devia à falta de centralização da organização da luta, cuja solução seria a formação de um partido operário e que o desenvolvimento da revolução russa deveria continuar sendo apoiado e aqueles que, por outro, continuavam a defender as formas dispersas de organização e que a revolução russa havia regredido, não devendo mais ser apoiada.

Entre 1919 e 1924, Astrojildo Pereira dedicou-se ao esforço de organização de um partido comunista no Brasil. A primeira tentativa de sua fundação ocorreu na seqüência da criação da Internacional Comunista, em março de 1919, com relativo e escasso sucesso. Diante da inevitável cisão da direção da COB (Confederação Operária Brasileira), Astrojildo Pereira passou a organizar o grupo que entendia ser necessária a criação de um novo instrumento de luta e o estabelecimento de um sólido vínculo internacional. Assim, tendo fundado o Grupo Comunista do Rio de Janeiro, em 7 de novembro de 1921, buscou aglutinar outros grupos análogos que iam surgindo pelo país até que, em 25 de março de 1922, foi oficialmente fundado o PCB (Partido Comunista Brasileiro). No entanto, o reconhecimento oficial por parte da IC só viria em 1924.

A partir de então Astrojildo Pereira empenha-se na configuração de um grupo dirigente do neonascente partido operário, que desenvolvesse uma política voltada para a reconstrução da unidade da classe operária, para o estabelecimento de alianças políticas com outros setores oprimidos da ordem liberal e para a formulação de uma teoria da revolução. Ao cabo de cinco anos, em torno de meados de 1929, com a estreita colaboração de Otávio Brandão, Paulo de Lacerda e Cristiano Cordeiro, entre outros, Astrojildo Pereira havia delineado um grupo dirigente do movimento operário, em nova fase ascendente, assim como uma teoria da revolução brasileira que vislumbrava no latifúndio e no imperialismo os inimigos principais da classe operária, no campesinato e na pequena burguesia urbana (e seus intelectuais) os seus aliados. A questão agrária e a questão nacional seriam, assim, o fulcro da revolução democrática no Brasil.

Esse trajeto não foi feito sem dificuldades, tendo encontrado uma oposição no interior do partido, que depois daria origem tanto à vertente stalinista quanto à trotskista do comunismo brasileiro. A repressão desencadeada pelo agonizante Estado liberal oligárquico e a intervenção da IC — agora sob controle o grupo de Stalin — desarticularam esse primeiro grupo dirigente do partido operário no Brasil. Astrojildo Pereira e Otávio Brandão, os dois principais dirigentes do PCB, foram afastados. Enquanto o primeiro se recolhe por algum tempo para refletir e estudar, o segundo é banido pelo novo regime instaurado em 1930, tendo se exilado na URSS. Ao contrário do que se pensa, ambos continuaram, sob outras formas e vestes, a militar no movimento comunista. Otávio Brandão falou muitas vezes pelo PCB em Moscou e Astrojildo Pereira por meio de seus escritos seguiu travando a luta em defesa da causa operária.Contudo, a partir de meados de 1934, quando o movimento operário começou uma nova ascensão e a resistência antifascista passou a se difundir na intelectualidade, Astrojildo Pereira se deu conta de que a política que havia concebido antes de 1930 voltava a se manifestar na Aliança Nacional Libertadora, embora numa situação de todo nova.

Mesmo com a derrota da ANL e com a subseqüente instauração do Estado Novo, Astrojildo cumpriu um papel de suma importância na organização da cultura e da intelectualidade antifascista e democrática do Brasil, defendendo os princípios da liberdade de expressão e de organização e a necessidade de difusão da cultura entre as massas trabalhadoras. Formalmente aceito às fileiras do PCB, ele persistiu se ocupando daquilo que mais gostava: a organização dos intelectuais e a procura das raízes nacional-populares da cultura brasileira. O instrumento de trabalho foi a revista Literatura.

A colocação do PCB na ilegalidade e a nova orientação política que estreitava sobremaneira as alianças políticas, particularmente no campo da cultura, romperam as relações arduamente urdidas por Astrojildo Pereira. Somente depois do forte impacto do XX Congresso do PCUS (1956) ele retorna ao efetivo fio condutor da sua trajetória intelectual. Novamente busca amparo e inspiração em Machado de Assis na busca do nacional-popular, do respaldo cultural necessário para a revolução nacional e democrática que se auspiciava. O último grande empreendimento foi a revista Estudos Sociais, voltada precisamente para a aglutinação de jovens intelectuais decididamente interessados no conhecimento, no estudo e na transformação da realidade brasileira. Com a instauração da ditadura militar, em 1964, e a repressão política e cultural que se seguiu, Astrojildo Pereira foi preso e viu ruir muitos dos seus melhores projetos e sonhos. A morte o colheu em novembro de 1965. Foi somente na fase declinante da ditadura militar que seu nome começou a receber o devido reconhecimento, não só como o principal fundador do Partido Comunista no Brasil, mas também como o primeiro marxista e leninista e um intelectual ativo na organização do mundo da cultura que ofereceu preciosos indicativos de interpretação e pesquisa.

Marcos Del Roio é professor de Ciências Políticas, FFC-Unesp/Marília.

EDIÇÃO 81, OUT/NOV, 2005, PÁGINAS 80, 81