Começarei fazendo algumas observações preliminares que me permitam delimitar o tema que me foi proposto para esta aula inaugural, que é vastíssimo.

a) Vou me ocupar, aqui, com um fenômeno que, para mim, é tão ou mais preocupante do que o ressurgimento de formas exacerbadas de racismo no Brasil: o fato de ter sido o discurso anti-racista que ofereceu ao neo-racismo os elementos para sua aparição. O que havia e o que há no discurso anti-racista que o faz servir, como disse um estudioso, de espelho para o discurso racista?

b) Vou me ocupar aqui das formas mais recentes do racismo no Brasil, pois há três maneiras, pelo menos, de encarar a atitude racista: a atitude histórica, que considera o racismo como um conceito e uma ideologia que se constituíram apenas no século XIX, quando a idéia de raça, em sentido biológico e genético, tornou-se critério social e político de diferenciação; a atitude a-histórica que considera o racismo como uma forma milenar e difusa de estabelecer diferenças, classificações e hierarquias entre os seres humanos; a atitude que opera com análise de ideologias e as considera temporais e dinâmicas, portanto, sujeitas a transformações históricas, de tal modo que o racismo difuso dos gregos e romanos, na antiguidade, ou o racismo explícito do século XIX, são momentos de uma história ideológica.

c) Vou me referir ao racismo contemporâneo, no Brasil, usando três referenciais de análise: ideologia, mitologia e nacionalismo. Evidentemente, o nacionalismo poderia ser incluído tanto na ideologia quanto na mitologia e se eu o separei, aqui, é simplesmente porque darei a ele uma ênfase especial.

Tomarei ideologia num sentido muito simplificado e restrito, significando: 1) uma forma de representação da realidade que torna natural o que é cultural; 2) torna legítimos processos de dominação e de exploração econômico-social; 3) opera como uma lógica que organiza, ordena, classifica, diferencia, agrupa, explica e interpreta a realidade, lógica que conserva a coerência sob a condição de que sejam afastados ou silenciados todos os aspectos da realidade que poderiam perturbar ou desmentir a coerência proposta; 4) opera, portanto, por construção de imagens ou representações que ocultam e dissimulam a realidade; 5) não é uma causa nem efeito da realidade, mas é parte dessa mesma realidade que ela ajuda a construir por meio de imagens (por isso, hoje em dia, muitos falam em imaginário social).

“Pressupõe-se que racismo é construto cultural, determinado então historicamente”.

Tomarei mito, também, num sentido muito simplificado e restrito para significar: 1) o momento em que uma ideologia se cristaliza e se consolida, tornando-se a narrativa cotidiana que os sujeitos sociais fazem de sua sociedade; 2) opera com signos e símbolos de identificação do grupo, servindo-lhe de referência fundamental para explicar e interpretar situações e fatos novos, referindo-os ao já pensado, já feito e já dito; 3) tem uma função pacificadora ou apaziguante diante das situações de tensão e crise;

4) oferece aos sujeitos sociais e políticos um mundo ideal perfeito que compensa as imperfeições do mundo real onde vivem. Tratarei o racismo como ideologia e mito, cujas relações principais estão estabelecidas pelo nacionalismo.

d) Cultura será tomada, aqui, no sentido vasto que lhe dá a antropologia cultural (ou antropologia social e política), isto é, como a criação coletiva de representações, valores, símbolos e práticas que determinam para essa coletividade suas formas de relação com o espaço, o tempo, a Natureza e os outros homens, definindo o sagrado e o profano, o necessário e o possível, o contraditório e o impossível, o justo e o injusto, o verdadeiro e o falso, o belo e o feio, o legítimo e o ilegítimo, o “nós” e o “eles”. Como escreveu um filósofo, a ordem humana da cultura é a da relação simbólica com o ausente, isto é, a linguagem, o trabalho, a história e a morte. É sintomático que me tenha sido proposto como tema para esta aula o título “cultura e racismo”, pois isto indica que os proponentes já colocaram o racismo como uma forma cultural de representação e simbolização da alteridade ou da diferença. Em outras palavras, já pressupuseram que o racismo é um construto cultural e, portanto, algo historicamente determinado.

e) Minha última observação preliminar é um convite para irmos, rapidamente, aos dicionários, pois eles nos fornecem sempre duas contribuições preciosas: em primeiro lugar, oferecem os vários modos pelos quais uma cultura e uma sociedade usam certos conceitos, tanto no nível do senso-comum ideológico quanto no nível da pretensão filosófico-científica; em segundo lugar, porque nos trazem a surpresa de ver famílias de palavras que, à primeira vista, não veríamos. As palavras que proponho que busquemos nos dicionários são: no dicionário grego, éthnos e génos; no dicionário latino, natio, genus e ratio; no luso-brasileiro, nação, raça e etnia.

éthnos: classe de seres de origem ou de condição comum, donde: 1) em geral, raça, povo, nação, tribo; a) em particular, de pessoas: a raça dos mortais, a raça dos homens, a raça dos povos; b) em particular, de animais: a raça dos animais selvagens, a raça das abelhas, dos pássaros, dos peixes etc.; c) por analogia: classe, corporação: a raça dos médicos, a raça dos artesãos, a raça dos rapsodos; d) por analogia, segundo o posto ou a fortuna: a raça dos magistrados, a raça dos ricos; e) por analogia, o sexo: a raça das mulheres; 2) em sentido absoluto: raça, povo e nação, isto é, grupos que têm a mesma origem e os mesmos costumes.

génos: 1) Nascimento, donde: a) o tempo do nascimento (o mais velho, o mais jovem); b) o lugar ou a condição do nascimento (cidadão por nascimento, filho por nascimento, filho por adoção); c) origem e descendência, tanto significando origem a partir de alguém, quanto origem a partir de um lugar; 2) todo ser criado, reunião de todos os seres criados (deuses, homens, animais, coisas), significando raça, gênero e espécie: a raça dos deuses, a raça dos metais; ou significando a família, isto é, o sangue e a raça; gente de família nobre, gente de nobre raça, família de renome, mas também, os ancestrais e os descendentes; 3) por analogia, associações religiosas, corporações profissionais, grupos políticos: o gênero dos adivinhos, a espécie dos filósofos, e os génos que formam as fratrias na organização dos cidadãos em Atenas; 4) com idéia de nacionalidade: raça, povos, tribos; 5) na classificação científica: gêneros e espécies ou classes dos seres; 6) com a idéia de geração e idade, ou de duração; uma geração de homens.

“Bárbaro significa o estrangeiro, o não-heleno, o que não pertence à estirpe dos helenos”.

Como se observa, na língua grega, durante pelo menos 20 séculos, os sentidos de éthnos e génos se espalham, se recobrem, se diferenciam, reúnem sentidos físicos ou biológicos e sentidos político-sociais. Formado um sentido geral de etnia e gênero, quando referido aos helenos como povo ou raça, encontrarão um vocábulo ao qual se oporão: bárbaros, que significa o estrangeiro, o não-heleno, o que não pertence à raça, ao povo ou à estirpe dos helenos. O sentido de bárbaros se amplia: como helenos e estrangeiros não se entendem, a língua dos bárbaros é incompreensível e, por extensão, bárbaro passa a significar: confuso, incompreensível, grosseiro e rude; como helenos e bárbaros se guerreiam, nova ampliação de sentido: os bárbaros são cruéis e não cultivados; como os bárbaros não vivem sob a organização política, isto é, não criaram o poder político, mas vivem sob a autoridade pessoal de um rei, vivem sob o despotismo e são os autores do despotismo oriental. Justamente porque não foram capazes de criar a política, mas vivem submetidos à autoridade patriarcal do chefe, os bárbaros não foram feitos para a política; ora, somente na política o homem é livre; sendo incapazes de política, os bárbaros são escravos por natureza. A raça dos helenos – política, culta e livre – se diferencia da raça dos bárbaros – despótica, grosseira e escrava.
Passemos ao latim.

natio: vem de nascor: nascer, ser posto no mundo. Diz-se dos seres vivos (plantas, animais e homens) , por extensão e analogia, das coisas inanimadas. Nascença: se diz do que nasce da terra. Dependendo da declinação do substantivo, o verbo nascor significa idade, filho/filha, as crianças. Natales: nascimento, origem, raça, Nativus: que tem nascimento, que tem um começo; inato, natural, nativo, oposto a artificial. Natio: 1) nascimento; 2) personificada e divinizada, Nação é a deusa que preside as mulheres no parto; 3) na linguagem camponesa: as crias, a ninhada, a prole; donde: conjunto de indivíduos nascidos no mesmo lugar ao mesmo lugar ao mesmo tempo da mesma mãe e, finalmente, nascidos no mesmo lugar, em tempos diferentes e de mães diferentes. De nascor não vem apenas nação, mas também Natureza: ação de fazer nascer, nascimento, natureza de alguma coisa, ordem das coisas geradas e os órgãos da geração.

genus: vem de geno: engendrar e, por extensão, produzir, causar (donde: genitor). Genus: nascimento, raça, nascimento nobre, estirpe e, por extensão, reunião de seres tendo uma origem comum e características semelhantes naturais; o vocábulo genus é, por este motivo, sempre associado a natio. Gênero natural e nação caminham juntos. De geno vem gens: o grupo de todos os que se prendem pelos machos a um ancestral comum, ancestral que é macho e livre, formando a comunidade de origem (clã, família, tribo, raça e povo). Gentes designa o povo romano por diferença e oposição aos não-romanos (afora os helenos, todos os não-romanos ou as não-gentes, serão designados como bárbaros). É dessa palavra, gentes, que os cristãos farão a oposição entre cristãos e pagãos, isto é, os gentios, tradução latina do hebraico: goi.

ratio: vem de reor: contar, calcular. Ratio: conta, cálculo, faculdade de contar e calcular, por extensão, faculdade de julgar e pensar, método, razão. Ao contrário de todos os termos que vimos até aqui, não encontramos em ratio nenhum sentido que permitisse falar em raça e, no entanto, é deste termo latino que raça deriva.

“Identificação entre Estado, nação e povo é recentíssima e combinou idéias diversificadas”.

Vejamos, então, nossos dicionários.
raça: do italiano razza (século XV): espécie, tipo; vindo de ratio, contagem por semelhança de espécie e tipo. Donde: 1) família, considerada na sequência de gerações e continuidades de caracteres – só se diz das grandes famílias, isto é, das dinastias que governam (a raça dos Capetos, a raça dos Tudor, a raça dos Orléans e Bragança). Por extensão: família, sangue, comunidade de sangue ou linhagem; espécie; 2) subdivisão da espécie zoológica, dividida em sub-raças ou variedades, constituídas por indivíduos que reúnem características comuns hereditárias; 3) grupos humanos: século XVII: grupo étnico que se diferencia dos outros por um conjunto de caracteres físicos hereditários (cor da pele, forma da cabeça, proporção dos grupos sanguíneos etc), representando variações naturais no seio da espécie (raça branca, negra, vermelha, amarela); a partir do século XIX: grupo natural de homens que possuem caracteres semelhantes, físicos, psíquicos, culturais, provenientes de um passado comum; etnia, povo, nação.

nação: 1270: nascimento, raça; 1) grupo de homens para os quais se supõe uma origem comum; raça; 2) grupo humano geralmente bastante vasto que se caracteriza pela consciência de sua unidade e pela vontade de viver em comum; povo; 3) grupo humano constituindo uma comunidade política estabelecida num território definido ou um conjunto de territórios definidos e personificada por uma autoridade soberana; Estado; 4) conjunto de pessoas que constitui o grupo da comunidade étnica; 5) pessoa jurídica constituída pelo conjunto dos indivíduos que compõem o Estado, mas distintas dele e portadoras do direito subjetivo de soberania.

etnia: conjunto de indivíduos próximos por certos traços comuns de civilização, notadamente a comunidade da língua e da cultura, ao contrário da raça, que depende de caracteres anatômicos.
Antes de qualquer comentário, observemos que tanto no dicionário grego como no de latim, a palavra raça não existe e, no entanto, os tradutores não tiveram dúvida em traduzir ethnos, genos, natio, genus por raça e, curiosamente, não tem como traduzir ratio por raça. Vemos também que os dicionários não têm dúvida em transformar os dois termos gregos e os dois termos latinos em sinônimos de povo, país, Estado. Em suma, os dicionários traduzem para os sentidos dos séculos XVIII, XIX e XX termos clássicos, cuja significação não possui correspondentes em nossa sociedade e em nossa cultura.

Esse anacronismo dos dicionários, porém, não é infundado: as teorias sobre a nação, a raça e o Estado sempre foram buscar na antiguidade greco-romana os elementos com que pudessem legitimar sua própria formulação. Em resumo: com seu anacronismo e com sua a-historicidade, os dicionários nos oferecem em estado bruto os elementos conceituais com que nação, raça e Estado foram elaborados, de modo a deixar claro, para nós, que a formulação moderna os associou, combinou e identificou.

Podemos evidenciar este fato, lembrando, por exemplo, que, antes do surgimento do Estado-nação no século XIX, a palavra nação designava os estrangeiros, isto é, os grupos que não eram da mesma origem que o grupo em cujo território o grupo estrangeiro habitava. Falava-se na nação bantu ou nagô para referir-se aos escravos africanos; na nação tupi ou na nação tapuia para indicar os índios em território português; e os judeus, na Europa, eram genericamente designados como “o povo da nação”.

Assim, até o século XIX, nação se refere à origem comum de um grupo estrangeiro; raça, por sua vez, se refere, por exemplo, a corporações profissionais; país, se refere ao território comunal de origem (país dos bretões, país dos bascos, país dos gascões); etnia, sequer era usada e Estado se referia aos estamentos ou às ordens sociais do mundo sócio-político do Antigo Regime.

Encerro, assim, minhas primeiras observações enfatizando que, por um lado, os diferentes grupos sócio-políticos sempre encontraram instrumentos linguísticos e descritivos para designar diferenças que, para eles, eram tidas como naturais – helenos e bárbaros, romanos e bárbaros, cristãos e gentios, fiéis e góis. Para nós, entretanto, sendo traços de língua, religião, organização política, nós os consideramos como culturais e, portanto, históricos não por natureza. Por outro lado, percebemos como a identificação entre Estado, nação, povo e raça é recentíssima e foi feita combinando termos e idéias de proveniências diferentes, mas que tinham em comum três aspectos: 1) referir-se à origem do grupo; 2) referir-se a traços tidos como naturais a este grupo; 3) referir-se à diferenciação entre esse grupo e outros. Origem, naturalização e diferenciação permitiram unir termos e conceitos cujos sentidos, embora próximos, designavam realidades diferentes. Temos ideologias e, delas, virão mitologias.

“Legitimação que assegure e conserve lealdade é requisito do Estado moderno”.

Eric Hobsbawn, num estudo recente sobre o surgimento dos Estados nacionais, observa que para um Estado existir precisa possuir quatro traços definidos pela Revolução Francesa: 1) território contínuo e demarcado por fronteiras legais reconhecidas; 2) exercer a autoridade diretamente e não por meio de corporações e estamentos autônomos, isto é, possuir unidade e centralização jurídica, política e administrativa; 3) ser reconhecido como povo soberano, isto é, uno, indiviso e autor de suas leis; 4) encontrar mecanismos de legitimação pelos quais a população seja leal aos governantes, o melhor instrumento para isto sendo a consulta periódica aos sujeitos, na qualidade de cidadãos que escolhem representantes e emitem opiniões em público. Hobsbawn observa que as condições para o Estado ser Estado não parecem requerer que ele seja uma nação. Por que, então, o Estado moderno se apresenta como Estado-nação?

O Estado moderno, através da administração pública, da legislação e do exército é onipresente e busca legitimar-se através dos procedimentos de democratização. Todavia, a democratização, ao afirmar a universalidade dos direitos numa sociedade de classes, onde os trabalhadores começam a se organizar em movimentos políticos, põe em perigo a unidade e a legitimidade do Estado. Este precisa, portanto, de uma espécie de legitimação cívica, uma religião cívica que desperte e conserve a lealdade. Assim, ao lado do Estado político é preciso um Estado simbólico, emocional, cimento afetivo de lealdade e obediência. O Estado simbólico-emocional é a nação, a comunidade imaginária.

Ora, diz Hobsbawn, para identificar-se com a nação, o Estado precisaria contar com elementos protonacionais que fossem postos em movimento por ele como elementos nacionais. Quais seriam os elementos protonacionais existentes na população que poderiam ser mobilizados politicamente pelo Estado para dar origem ao Estado nacional? A ideologia afirma que esses elementos são: a língua, a religião, a consciência do pertencimento à comunidade e à etnia. Hobsbawn nos mostra que nenhum desses elementos é protonacional:

– Antes do Estado-nação não há língua nacional, pelo contrário, há dezenas de dialetos e de línguas, de modo que a língua não é fator pré-nacional de unificação nacional e as línguas nacionais foram impostas pelo próprio Estado, a partir da linguagem das elites cultas de cada país, a imposição sendo feita pela educação e por formas variadas de comunicação social (hoje: rádio e televisão; ontem, o jornal de província);
– a religião também não é o elemento protonacional de identificação e por dois motivos opostos: ou porque a religião visa ao universal e não ao particular; ou porque a religião visa ao particular extremo, a tribo, por exemplo. Nos dois casos, a religiosidade não serve aos fins nacionais do Estado;
– o sentimento de pertencer a uma comunidade de origem não é popular; as elites dominantes, pré-nacionais e pré-estatais possuem essa consciência (são regidas pelos princípios da natio, fidelitas e communitas), mas as classes populares possuem lealdades locais e dirigidas a pessoas concretas, jamais uma lealdade abstrata à comunidade de origem;
– finalmente, a etnia ou a raça; na medida em que o Estado político está à procura de uma unidade nacional é porque ela não está dada para ele e a pluralidade étnica e racial é um fato inescapável, sobretudo porque a existência das pequenas comunidades locais, das corporações profissionais, das ordens múltiplas, e das “nações”, multiplica as etnias, em vez de unificá-las. Assim sendo, a etnia, também, não é o elemento protonacional para a nação.

“Racismo nacionalista do século passado exprime o momento de consolidação do Estado”.

Como explicar que não sendo estes os elementos protonacionais da nação, quando esta se apresenta como Estado nacional e estes sejam os elementos apresentados como seus constituintes? É que o Estado político produz a ideologia nacional e cria o Estado-nação. Ele o faz criando uma herança nacional, uma tradição nacional, uma história nacional, uma educação nacional e os símbolos nacionais e, sobretudo, ele o faz através da invenção da etnia como raça biológica. Assim, o Estado nacional é um construto histórico, de natureza política e ideológica, cujo principal agente de elaboração é a classe média urbana estimulada pelo Estado. Esta classe não possui os vínculos políticos e econômicos que lhe dêem estabilidade, ao contrário da classe dominante que domina a economia e o Estado político e da classe trabalhadora que se relaciona com o mercado e com o Estado pela mediação da classe dominante. Assim, o Estado político mobiliza a classe média e a elite intelectual para produzir o Estado nacional.

Por que, nesta construção ideológica, a etnia entendida como raça natural terá um papel central, desde o final do século XIX?

Pelo menos por quatro motivos principais:
1- A urbanização moderna, produzindo, pela imigração e migração, uma diáspora sem precedentes e causando verdadeiro terror nos estratos mais tradicionais da classe dominante e na classe média;
2- a democratização, levando a classe trabalhadora a organizar-se social e politicamente, pondo em dúvida a legitimidade do mercado e do Estado político e, sobretudo, exigindo a efetivação de seus direitos;
3- a teoria darwinista da evolução das espécies e da sobrevivência dos mais aptos por seleção natural das raças melhores e superiores;
4- o desenvolvimento dos estudos de genética, enfatizando os caracteres hereditários dos indivíduos e grupos.

Através da escola e das universidades, através da legislação sobre imigração e migração, através dos estratos cultos da pequena-burguesia (professores, jornalistas de província, oficiais subalternos) que se sentem ameaçados pela democracia, pelos trabalhadores, pelos capitalistas e pelos imigrantes/migrantes, uma poderosa engenharia social e política fará da raça o conceito central da nação. Agora, a língua se torna produto da raça e a reforça; a religião se torna produto da raça e a reforça; o pertencimento à comunidade de origem se torna produto da raça e a reforça. Com a raça produzindo a língua, a religião e a comunidade, está produzida a nação. E, com o nacionalismo, virá o racismo, que o exprime como os genitores exprimem a prole.

No entanto, se compararmos o racismo do século XIX e aquele que preside o nazismo com o racismo contemporâneo, as diferenças são grandes e delas é preciso tratar.

Sem dúvida, todos os racismos possuem em comum a idéia da nação una e indivisa no espaço e no tempo; a idéia de raças inferiores e superiores por hereditariedade; o conservadorismo reacionário antidemocrático e autoritário. São ideologias etnocêntricas e xenófobas. São ideologias biológicas, psicológicas e políticas. São nacionalistas e erguem mitos nacionais, operam com a identidade nacional mítica, o caráter nacional mítico. Mas são histórica e conceitualmente diferentes.

Diferença histórica: o racismo nacionalista do século XIX e da primeira metade do século XX exprime o momento de construção, consolidação e plenitude dos Estados nacionais; o racismo nacionalista do final do século XX exprime a mudança que o capitalismo neoliberal impôs aos Estados nacionais, isto é, sua desaparição no mercado mundial transnacional e a formação de conglomerados políticos. Estamos assistindo ao possível término dos Estados nacionais e, por isso, o racismo nacionalista não pode, hoje, exprimir-se como se exprimia ontem.

Diferença conceitual ou ideológica: embora o racismo seja uma ideologia e uma paixão, embora seja essencialmente violento, não opera, hoje, com as categorias que lhe permitiam operar até os anos 1950 de nosso século. A grande mudança ideológica lhe foi dada de presente, afinal, pelo discurso anti-racista dos anos 1950 e 1960. De fato, o antigo racismo era, fundamentalmente, uma ideologia biológica e uma mitologia dos caracteres hereditários. O discurso anti-racista dos anos 1960 e 1970 demonstrou que a raça era, na verdade, etnia e que a etnia é um fato e um processo cultural-histórico, algo feito e construído pela ação humana e não um dado da natureza. O atual discurso racista se apropriou da elaboração anti-racista e fez dela sua nova bandeira.

“Discurso racista universalista é etnocêntrico e filho bastardo da revolução francesa”.

Escrevendo sobre o novo nacionalismo racista, Pierre André Taguieff distingue três níveis do racismo e dois grandes tipos de racismo contemporâneo.
Níveis:
– Racismo primário: fenômeno psico-social emocional ou passional, sem qualquer elaboração ou justificação; corresponde ao que chamo de mito. Há uma mitologia racista que é um estado de espírito passional, irracional, que exprime medo e cólera, terror e ódio;
– racismo secundário: fenômeno psico-social mais sofisticado e que consiste no etnocentrismo;
– racismo terciário: que usa o vocabulário da raça e desenvolve justificativas científicas – nos séculos XIX e início do XX, a justificativa vem da biologia e da genética; agora, vem da antropologia e da psicologia social.

Esses três níveis de racismo encontram como adversários os argumentos anti-racistas. Que dizem os discursos anti-racistas?

1- Raça e racismo não são a mesma coisa, isto é, a raça é um dado natural e o racismo é uma ideologia que usa esses dados com propósitos de discriminação e violência; este argumento divide, portanto, discursos sobre a raça em legítimos (científicos) e ilegítimos (racistas e ideológicos). A fragilidade desse argumento é evidente, na medida em que não discute a própria cientificidade da biologia e da genética quando criam o conceito de raça; 2- para corrigir essa fragilidade, o discurso anti-racista introduz outro, fornecido pelos geneticistas: a raça é um dado genético comprovado; o racismo, porém, transforma as diferenças de raças em hierarquias entre raças e, por isso, será melhor encontrar um outro conceito para designar a raça, já que o de raça foi desvirtuado pelo racismo. A fragilidade, também é evidente, pois, mudado o conceito, bastará mudá-lo também no racismo, que continuará a ter bases científicas para se pronunciar;

“Racismo se apropriou do discurso anti-racista: todos temos o direito à diferença”.

3- os anti-racista preferem, então, mudar de terreno: raça não é um conceito biológico ou genético, mas um conceito social e político usado para justificar a discriminação, o assassinato e o genocídio; o conceito a ser usado para captar as diferenças sociais e culturais é a etnia. E, é este argumento que permite que, do discurso anti-racista, saia um novo discurso racista.
Dissemos que o discurso racista, além de possuir níveis, também se distribui em tipos. Os dois grandes tipos de discursos racistas – excluído o discurso apavorado e apavorante do racismo como paixão irracional – surgem, na verdade, legitimados pelos discursos anti-racistas. O primeiro é o discurso universalista, o segundo o contrário do primeiro, é o discurso comunitarista. O primeiro corresponde, sobretudo, aos séculos XIX e XX, até os anos 1960; o segundo corresponde, sobretudo, ao final do século. Isto não significa que o primeiro tenha desaparecido, mas ele permaneceu como discurso que corresponde ao ato do racismo mitológico passional, enquanto o segundo se tornou o discurso racista predominante.

O discurso racista universalista é o filho bastardo da Revolução Francesa (ou do que os marxistas chamam de revolução burguesa); o discurso racista comunitarista é filho bastardo do pós-modernismo (isto é, do elogio do descentramento e da diferença). Antes de explicitarmos essas filiações, vejamos o que são tais discursos, de acordo com a descrição que deles nos faz Taguieff.

Racismo universalista ou discriminatório: afirma a existência de um modelo universal de humanidade numa escala hierárquica de espécies ou raças que vão da mais inferior à superior; afirma a naturalidade da desigualdade e da hierarquia das raças. Esta racismo, biológico e etnocêntrico (pois a raça superior é a minha), presidiu a formação dos impérios coloniais, a escravatura, o nazismo e o fascismo. Seus axiomas são: a desigualdade é natural e nós somos os melhores; existe um único e verdadeiro tipo ou raça humana, e somos nós. Como diz um autor, os outros pertencem a raças particulares e nós pertencemos e somos o universal. Os outros são não-humanos, semi-humanos ou quase-humanos. Nós somos os humanos e a humanidade. Exterminar o outro é natural e não é eticamente imoral, pois o outro não faz parte do gênero humano.

Racismo comunitarista ou diferencialista: é o racismo contemporâneo que se apropriou dos pontos centrais do anti-racismo, isto é, que a raça não é natureza, mas cultura e etnia, e que todos temos o direto à diferença. Agora, afirma-se o caráter sagrado da comunidade, a identidade do grupo ou da nação, a obrigação de defender a integridade, a identidade e a especificidade da nação ou comunidade e, portanto, sua diferença. Cada comunidade-nação tem sua tradição, sua história, seus costumes, sua origem, sua língua, sua religião, sua sexualidade – essa diferença tanto pode ser genético-hereditária quanto puramente histórico-cultural, pois o importante não é a causa ou a origem dessa diferença e sim sua existência visível (vejo a diferença da cor da pele, da textura da pele e do cabelo, dos gostos culinários, do modo de se vestir, do formato dos olhos, dos deuses adorados, das formas de parentesco e de casamento, da música, da dança, da pintura, dos modos de pensar a diferença é um fato dado, o outro é um fato dado). Ora, cada comunidade-nação (por ser tomada como mito e não criação histórica) tem sua verdade própria, milenar, tem sua língua materna, seus símbolos pátrios, seus costumes. Cada Estado-nação existe, desde todo sempre, como uma realidade cultural inquestionada. É obrigação de cada um deles preservar sua diferença, sua alteridade, sua autenticidade. Portanto, somos contra a imigração, a migração, a mestiçagem, o sincretismo religioso, o sincretismo nas artes, a importação de idéias, pois tudo isso retira da nossa comunidade nacional sua vida verdadeira. Se os imigrantes, os migrantes, os negros, os índios, os judeus tiverem amor à sua diferença e à sua comunidade serão os primeiros a concordar conosco. Como a negritude, como a indianidade, como a orientalidade, como o arabismo e o judaísmo haverão de permanecer em sua pureza e integridade, se deixarmos imigrações, migrações e miscigenações acontecerem? Para nosso bem e para o bem dos outros, respeitemos o direito democrático à diferença. Sem dúvida somos desiguais e ninguém há de negar que alguns são superiores a outros, mas ninguém precisa ser exterminado, desde que não venha contaminar a minha diferença. Os movimentos nacionalistas ganham a totalidade do fundamentalismo religioso porque a religião é a mais pura e autêntica guardiã da raça – muçulmanos (e sua divisões), católicos (e suas divisões), ortodoxos, judeus, budistas, cada religião exprime a nação e a raça, no mesmo momento em que o Estado nacional está desaparecendo.

Se o discurso racista universalista era etnocêntrico e rumava à escravatura e para o genocídio: o discurso racista comunitarista é xenófobo e prefere formas legais de separação e exclusão, para não ter que chegar à violência do genocídio. Entre a violência física do racismo discriminatório – colonialismo, escravatura e genocídio – e a violência simbólica do racismo diferencialista – segregação e apartheid – o discurso anti-racista tornou-se impotente, vendo o racismo nacionalista apropriar-se de seus argumentos. O discurso racista discriminatório funda-se nos valores mais caros à democracia nascida na Revolução Francesa: o indivíduo e a universalidade; o discurso racista diferencialista funda-se nas armas que as minorias criaram para sua auto-defesa anti-racista: a comunidade e a alteridade. Lembremos, por exemplo, dos trabalhos científicos e filosóficos dos negros africanos ao elaborar a negritude para diferenciá-la do helenismo europeu, ou dos trabalhos dos eruditos judeus para diferenciar a cultura hebraica da grego-romana, ou dos trabalhos dos antropólogos para garantir a diferença indígena, ou dos folcloristas e do cinema novo brasileiro para afirmar a dimensão revolucionária do ser nordestino. Cada um desses esforços anti-racistas dos anos 1950, 1960 e 1970 produziram como contrapartida o neo-racismo do direito à diferença, do qual o movimento separatista que começa a crescer no sul é o último exemplo.

“Separatismo, cruzada antinordestina e contra os negros recrudescem em São Paulo, 1992”.

Não é minha intenção concluir de modo pessimista, dizendo que os racistas sempre serão mais fortes do que o anti-racismo. Mas, também, não poderei concluir com otimismo ingênuo.

Em 1992, quando o neonazismo, o separatismo, a cruzada antinordestina e contra os negros recrudesceram em São Paulo, na qualidade de ocupante de um posto na administração pública responsável pela cultura, propus que a SMC (Secretaria Municipal da Cultura) tivesse como tema 500 Anos Depois: São Paulo dos 1000 Povos, diga não ao preconceito, diga sim à solidariedade. Desconfio, aliás, ter sido este o motivo para que a Comissão de Graduação da Faculdade sugerisse como tema esta aula inaugural “Cultura e Racismo”.

Na verdade, minha preocupação com o racismo vem de longa data, tanto por minha participação na Comissão Teotônio Vilela de Direitos Humanos – cujos trabalhos, hoje, se desenvolvem na USP no Núcleo de Estudos da Violência – quanto por meu interesse em compreender a sociedade brasileira como sociedade autoritária e violenta, repousando sobre o mito da não-violência, da democracia racial e dos direitos políticos de todos os cidadãos. Sociedade hierárquica, marcada por relações sociais de tutela e relações políticas de favor e clientela, crispada no verde-amarelismo da Seleção canarinho e das Escolas de Samba, a sociedade brasileira, quantos já o disseram e quantos já o demonstraram, é profundamente racista (tanto como machista e classista). São Paulo, talvez mais do que outras cidades, é conservadora e reacionária, incapaz de um cotidiano minimamente fundado na idéia dos direitos fundamentais dos cidadãos.

Ainda em 1992, participei de uma comissão contra o racismo e o neonazismo, da qual participavam judeus, negros e nordestinos que, embora acidentalmente unidos por um perigo comum, manifestavam o racismo entre si, exprimindo o modo como a organização social, as ideologias políticas e as mitologias culturais impregnavam mesmo aqueles que têm no racismo seu grande adversário.

Se escolhi, entre vários caminhos possíveis para a aula de hoje, aquele que aponta o modo como o discurso e as idéias anti-racistas acabam operando como espelho para o racismo oferecendo a este último argumentos para renovar-se e atualizar-se é porque estou convencida de que as categorias de que dispomos para pensar o Brasil e para pensar o racismo não são suficientes para quebrá-lo. Sei, como muitos sabem, que o mundo não se transforma por meio de idéias, pois as relações sociais são uma matéria opaca que determina nosso pensar e nosso agir. Mas acredito, também, que se não inventarmos um outro pensamento para os problemas que enfrentamos, não atravessaremos a opacidade da matéria social e nossa ação política e intelectual será cega.

A questão que, muito grosseiramente, procurei abordar aqui sugere que, talvez, nossa impotência para elaborar um discurso contra o racismo venha do fato de termos sempre elaborado discursos anti-racistas, quando talvez fosse o caso de elaborar um discurso não-racista. Mas isto é assunto para uma outra aula, numa outra ocasião.
Muito obrigada.

* Livre-docente em Filosofia, USP, ex-secretária de Cultura da Cidade de São Paulo, 1989-1992.

EDIÇÃO 29, MAI/JUN/JUL, 1993, PÁGINAS 60, 61, 62, 63, 64, 65, 66