Há nesta cidade uma reunião de ideólogos e jacobinos, que, com o nome de Centro Comercial de Molhadistas, está simplesmente afrontando a consciência humana.

Que os membros desse clube de perversos jurem vender vinho puro e legitimo, vá; é um ato de virtude e lealdade, que lhes merecerá a estima pública, além de ser um direito amparado pela Constituição.

Mas não fica aí o Centro. Quer mais; quer impor a todos os que vendem vinhos a obrigação de vendê-los puros e verdadeiros, chegando ao excesso de divulgar os lugares em que há falsificados, com todas as indicações de rua e número.

Filosoficamente, o ato do Centro é um absurdo. E axioma da metafísica que nenhuma coisa, considerada em si mesma é boa ou má; só o pode ser comparada com outra.

Ora se todos os vinhos de uma loja forem de uma certa qualidade antipática ao Centro, não se pode dizer que sejam falsificados ou impuros. Para isso seria preciso que a loja vendesse outros vinhos, dos que o Centro chama de puros, e é isto o que ele, em alguns casos não poderá provar.

Largo do Capim, antiga praça de comércio do século XVIII a XIX que foi derrubada para  a construção da Av. Pres. Vargas em 1943, na capital do Rio de Janeiro

Juridicamente, é um atentado. O direito de vender vinho puro implica o de vendê-lo falsificado. Não é um princípio abstrato, está nos códigos modernos e verifica-se em todas as ordens da atividade humana. Os livros são o vinho do espírito, e ninguém se lembraria de estabelecer que só se escrevessem livros bons. Quando um tenor canta mal, tenho o direito de não voltar ao teatro, mas não o de impedir que o tenor cante no dia seguinte: 1º. Porque ele tem o direito de cantar mal; 2º. Porque o meu vizinho tem o direito de ouvi-lo.

Moralmente, é uma obra odiosa e vã. Há para a virtude a mesma escala que para o frio e o calor. A alma humana, e implicitamente a comercial, é uma sucessão de temperaturas. Assim, por exemplo, o mesmo homem pode vender vinhos falsificados e zurrapas verdadeiros. Por que exigir dele que também os vinhos sejam verdadeiros? Virtudes inteiriças são raras. E quando não fosse baldado exigir de todos o mesmo grau de virtude, seria certamente odioso e maometano: – crê ou morre. Se para ganhar o céu, não exige Cristo sacrifício, como exigirá o Centro para ganhar quatro patacas, que, afinal, valem menos que o céu? É ser mais papista que o papa.

Socialmente, é um perigo, e gravíssimo. No dia em que cada classe se lembrar de indagar o que é que todos os seus membros vendem, chegaremos à guerra social. Por enquanto, só vejo este uso nos vinhos e na política; fiquemos nisso.

Economicamente, é uma injustiça. Quem vende vinhos falsificados, não os vende a troco de ouro, mas de papel moeda, que é a moeda de convenção, simples promessa de dinheiro, donde resulta que há um certo número de velhacos que toda a sociedade não pode deixar de ter em si, ao passo que o vinho pode ser obra de um honesto cavalheiro, esmerado e transparente em todas as outras coisas da vida.

Teologicamente, é uma tríplice heresia: 1º. Porque é dos livros, que o que se salva é a fé, não as obras, e uma vez que o inculpado creia nas verdades morais eternas, nada estará perdido; 2º porque é também dos livros, que há mais alegria no céu por um pecador que se arrepende, do que por um justo, e a perseguição aos inculpados tira-lhes a impossibilidade de arrependimento; 3º, porque é ainda dos livros, que o Deus permitiu a existência de heresias, e se o vinho falsificado é uma heresia, é provavelmente permitido por Deus, e destinado a afinar o valor dos vinhos puros, e dos que se dão ao mister de os vender.

Por todas essas razões e por outras que omito, e não são menos concludentes, proponho a extirpação do sobredito Centro, como uma invenção do diabo, fator de desordens e, iniqüidades e abominações.

 

*Machado de Assis, um dos maiores escritores da literatura mundial, por algum tempo dedicou-se ao trabalho de jornalista em vários jornais cariocas, passando a ter colunas semanais. A presente crônica foi escrita para o jornal A Gazeta de Notícias, um dos mais conceituados jornais daquela época (anos de 1880).

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Nota
De Dilson Ferreira da Cruz
Esta crônica genial destaca-se pela inversão do ponto de vista. Era esperado que o cronista atacasse os falsificadores de vinho e defendesse o fim da falsificação. No entanto, exatamente o contrário, alegando que os contraventores tinham o direito constitucional, moral, teológico, social e econômico de vender um produto falso! Essa versão invertida das coisas, que cria um mundo às avessas, onde o certo é errado e este que é correto é típica da paródia, género que inverte sentido ou os procedimentos.

Obra:
Machado de Assis: trinta crônicas irreverentes / seleção, organização e notas Dilson Ferreira da Cruz – Barueri / SP: DISAL, 2007.