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Os cinquenta anos da fundação de Ação Popular

Dentre as organizações políticas democráticas que assumiram posições revolucionárias e tiveram influência de massas, a AP foi a maior que já existiu no Brasil. Sua incorporação ao Partido Comunista do Brasil, pouco mais de dez anos depois de fundada, foi considerada por esse partido, em texto comemorativo dos seus 90 anos, como “o mais importante e exitoso processo unificador na história das esquerdas brasileiras”.


Seu surgimento está intimamente relacionado às características que teve a década de sessenta do século passado. Já nos seus albores, o mundo vibrava com as esperanças renascidas de conquistas então efetuadas e ansiava para que novas vitórias aflorassem dos conflitos em curso. Em uma ilha do Caribe, em 1959, um fato sacudiu a América – Cuba se libertava.  Nomes até então desconhecidos viraram legendas que o mundo passaria a reverenciar, a exemplo de Fidel Castro e Ernesto “Che” Guevara. A África negra e a África árabe feriram de morte o velho colonialismo, que reagiu com guerras e assassinatos. E novos nomes apareciam no firmamento dos povos: Patrice Lumumba, herói da libertação do ex-Congo Belga, assassinado em 1961; Bem Bella, que em 1962 dobrou a França na libertação da Argélia; Nelson Mandela, condenado à prisão perpétua em 1963, pelo apartheid dos ingleses na África do Sul.


Foi um tempo em que forças progressistas fervilhavam mundo afora. Demandas reprimidas havia muito e direitos desde sempre negados eclodiam em lutas que se estenderiam por toda a década. Nos EUA, o Movimento pelos Direitos Civis foi às ruas para civilizar um país que se tornou potência mantendo aspectos de barbárie.  Os negros conquistavam o direito ao voto em 1965 – sim, ao voto, essa coisa elementar das civilizações. Negros e brancos, adeptos da não violência, ocuparam ruas e cidades, com Martin Luther King à frente. Erguia-se em armas, também, o Black Power, que enfrentaria com êxito a violência bestial da Ku Klux Klan. 


Mas não foi só. Pelo mundo afora minorias procuravam unir-se e buscavam seus espaços. Antirracistas organizavam-se; o feminismo crescia, buscando os caminhos emancipacionistas; a liberdade das opções sexuais começava a ser reivindicada, e mudanças aconteciam na música, no cinema, nas artes em geral, na literatura e nos costumes. Pela Europa, já no final da década, ocorreria uma das maiores explosões estudantis de massa da história, com o jovem Daniel Cohn-Bendit à frente, verberando costumes e preconceitos.


O Brasil entra nos anos sessenta pela porta de Brasília, inaugurada exatamente em 1960, no dia 21 de abril, consagrado ao herói da Pátria, Tiradentes. O ambiente era de desenvolvimento. O presidente Juscelino Kubitscheck, na esteira de processo iniciado por Getúlio Vargas, avança na industrialização do país. Em Getúlio, a industrialização teve a marca da substituição de importações. Em Juscelino, a da abertura ao capital estrangeiro. Em ambos, o planejamento foi valorizado e o desenvolvimento conduzido pelo Estado. Rodovias foram construídas, assim como ferrovias, aeroportos, hidrelétricas, indústrias de base.


Transformações econômicas ocorriam, transformações sociais também, e no desaguadouro dessas vertentes apareciam pensamentos, expectativas e pleitos novos. Uma visão nacionalista estruturava-se no país e ia-se formando um projeto nacional.


A organização do povo também cresce nesse período. Os trabalhadores urbanos criam em 1960 seu CGT, o Comando Geral dos Trabalhadores. Trabalhadores rurais, a partir dos anos cinquenta, refundam suas Ligas Camponesas, que ganham espaço político no início dos sessenta. Os estudantes, com suas prestigiadas entidades União Nacional dos Estudantes, UNE, e União Brasileira dos Estudantes Secundaristas, UBES, mobilizam-se. 


No movimento estudantil universitário atuavam, há mais tempo, o Partido Comunista do Brasil (então PCB) e a Juventude Universitária Católica, a JUC, uma organização da Igreja Católica. Os comunistas tinham tradição de atuação nesse meio. Porém, desde 1956, envolvidos em luta interna, foram perdendo posições. Em 1962 um grupo, oriundo do PC do Brasil, estrutura o Partido Comunista Brasileiro, que, no meio estudantil, ficou com presença mais significativa que a do PC do Brasil. O ambiente de efervescência geral que se vivia exigia respostas rápidas aos anseios radicalizados das massas mobilizadas. O PC do Brasil não tinha estrutura para dar essas respostas. O PC Brasileiro tinha estrutura mas não tinha posições políticas adequadas. E quem mais correspondia às expectativas do movimento era a JUC.


A JUC refletia os empuxos renovadores que na Igreja vieram com o papa João XXIII, aquele que falou de forma positiva sobre a “socialização” em curso no mundo. Sofria restrições e recebia críticas de membros conservadores da hierarquia da Igreja, mas tinha ligações e era apoiada por gente como D. Helder Câmara, D. Antônio Fragoso, D. Cândido Padim, D. Vicente Távora e padres Francisco Lage, Alípio de Freitas e Henrique de Lima Vaz, entre outros.


Em 1960 a JUC realiza no Rio de Janeiro seu Congresso dos 10 anos, no qual aprova um documento chamado “Diretrizes mínimas de um ideal histórico para o povo brasileiro”, redigido por Herbert J. de Souza (o Betinho), dentre outros. O documento sinaliza para o que chama de “socialismo democrático”. Com grande penetração nos órgãos estudantis estaduais e nas faculdades, com suas posições políticas predominando nos encontros nacionais estudantis, a JUC crescia continuamente. Suas bases mais expressivas estavam no Rio de Janeiro, em Minas Gerais e na Bahia.  Em 1961 a entidade disputa o cargo mais prestigiado do movimento universitário, a presidência da UNE. E vence.  O jucista Aldo Arantes era eleito presidente da UNE no XXIV Congresso da entidade.

Se a atividade política naquele momento, no movimento estudantil, já era grande, tudo ficou ainda mais grandioso na gestão de Aldo Arantes. De saída, a UNE perfilou-se com o governador Brizola no comando da Cadeia da Legalidade, em 1961, para garantir o retorno ao Brasil de João Goulart e sua posse na Presidência do país. Depois, encabeçou a caravana chamada de “UNE Volante” e percorreu quase todos os estados da Federação, discutindo os problemas do país, fazendo assembleias, exibindo peças teatrais. Fundou o Centro Popular de Cultura, o CPC, e coordenou demorada greve nacional por um terço de representação estudantil nos órgãos colegiados das universidades. Deu entusiástico apoio a Cuba Livre.


No início da gestão do Aldo Arantes um fato pôs em questão a continuidade da ação política daqueles jovens no interior da JUC.   A UNE delibera filiar-se à União Internacional dos Estudantes, sediada em Praga e dirigida pelos comunistas. A hierarquia católica não aceitou. Aldo Arantes foi expulso da JUC, por superior decisão, ao que consta orientada pelo Vaticano.


Os líderes da JUC mais diretamente envolvidos com a atividade política reagiram com amadurecimento ao golpe recebido. Consideraram que, havia já algum tempo, eles estavam atuando como um partido político dentro da JUC, o que carecia de sentido, posto que a JUC não era um partido, mas uma organização da Igreja; que, portanto, para continuarem fazendo política, tinham que tomar a decisão de entrar em algum partido ou fundar outro. Essa consciência disseminou-se entre aqueles que formavam uma espécie de setor político da JUC.


No curso da UNE Volante, consultas sobre essa questão foram feitas em quase todos os estados, destacadamente aos políticos que eram da JUC, aos religiosos que assistiam a JUC, e a pessoas que não tinham nada a ver com a JUC nem com a Igreja. As respostas recolhidas foram uniformes: perseverar na atividade política, porém dentro de um partido; considerar limitados e viciados os partidos existentes; criar, portanto, um novo partido.


É com essa consciência que, no início de 1962, o grupo que estava imbuído do propósito de articular a criação do novo partido realiza em São Paulo uma primeira reunião: aprova um documento chamado “Estatuto Ideológico”, que defende a “revolução brasileira” e o “socialismo”, e começa a atuar como grupo independente. Enquanto a denominação Ação Popular ia sendo definida, aquele agrupamento passou a ser conhecido como “grupão”, e a famosa e longa “Greve do 1/3” já seria por ele dirigida. Em junho de 1962, o “grupão” realiza seu segundo encontro nacional, em Belo Horizonte, com representantes de 14 estados do país. Ali seria aprovado um “Esboço de Estatuto Ideológico” e assumido o nome a partir de então definitivo: Ação Popular.


E é já como Ação Popular que a organização aparece no XXV Congresso na UNE, em 1962, ostentando tal força que os três candidatos a presidente da entidade eram todos de AP, inclusive o que foi eleito, Vinicius Caldeira Brandt.


O ano de 1963 começa no Brasil com a realização de um plebiscito. Mais de 80% dos brasileiros que a ele compareceram votaram pelo fim do parlamentarismo.  O presidencialismo foi restaurado e já estava com seu presidente, João Goulart, empossado. Ele também já possuía um programa político geral pronto, que era o das reformas de base. Adensavam-se as nuvens no horizonte.


É nesse momento que se realiza em Salvador o evento cujo cinquentenário agora se celebra: o Congresso Nacional de Fundação de Ação Popular, com representações de quase todos os estados do país. O documento principal aprovado no Congresso chamava-se Documento Base.


O Documento Base refletia a consciência de uma organização inquieta e audaciosa, que buscava com conceituações novas um caminho para o que defendia ser uma “revolução socialista no Brasil”. Seus relatores principais foram Duarte Pereira, Vinicius Caldeira Brandt, Herbert de Souza e Luiz Alberto Gomes de Souza. Houve influência inspiradora do padre Henrique de Lima Vaz. O Documento procurava não copiar, mas inovar, criar. Demonstrava rejeição à posição, em voga na época, de uma necessária fase de consolidação do capitalismo no país, anterior à postulação socialista. Tomava partido frente às grandes correntes existentes no mundo, declarando-se ao lado da “corrente socialista que está transformando a História moderna”, nela destacando “o papel de vanguarda da Revolução Soviética”. Reconhecia “a importância extrema, decisiva mesmo”, do marxismo na teoria e prática revolucionárias.  Embaraça-se, contudo, em uma “terceira posição”, crítica do “idealismo” e do “materialismo”, intitulada de “perspectiva realista”, associada ao que chama de “socialismo como humanismo”. A organização que surgia vinha de uma matriz idealista forte. Com a emergência da ditadura militar um ano depois, demonstrou coragem e determinação para enfrentá-la. Nos duros embates teóricos e práticos que se seguiram, suas posições foram decantadas. 


Ao registrar os avanços e as insuficiências políticas e ideológicas da organização que surgia, não se pode perder de vista, porém, que todo o processo descrito foi resultado da iniciativa de brasileiros cheios de ideais transformadores e que eram, em sua quase totalidade, jovens. Universitários, na sua maioria, mas também secundaristas, profissionais liberais, religiosos, trabalhadores do campo e da cidade. Poucos tinham mais que 25 anos de idade. Por isso, pode-se dizer que a fundação de Ação Popular, em 1963, que agora completa 50 anos, foi um gesto de sentido histórico protagonizado pela juventude brasileira.


O líder que mais contribuiu com esse processo foi Herbert José de Souza, o Betinho, que no Congresso tinha 27 anos e era dos mais velhos do grupo originário. Outros eram Aldo Arantes, Luís Alberto Gomes de Souza, Haroldo Lima, Cosme Alves Neto, que participaram de todas as três reuniões da fundação, e mais Duarte Pereira, Vinicius Caldeira Brandt, Antônio Lins, José Serra, Jorge Leal Gonçalves Pereira, Severo Sales, Maria Angélica Duro, Maria Auxiliadora de Almeida Cunha, Solange Silvany, Manoel Joaquim Barros, Péricles de Souza, Carlos Alfredo Marcílio, Fernando Schmidt, que participaram do Congresso.


Na história do Brasil tem sido assim. Sempre que as contradições se aguçam e os desafios aparecem, a juventude responde à altura, com iniciativas marcadas com suas digitais de coragem, vibração, inteligência e irreverência.


Nas lutas pela independência, que começaram na Bahia em 1821, uma mulher se tornou heroína ao entrar para as forças armadas patrióticas: era uma jovem, Maria Quitéria de Jesus Medeiros, com 29 anos. O intelectual negro José do Patrocínio integrou-se à Campanha Abolicionista com 26 anos e o poeta branco Castro Alves escreveu Vozes d´África com 21. Irineu Evangelista, o Barão de Mauá, lança em Niterói a indústria naval brasileira com apenas 32 anos, e Astrogildo Pereira funda o Partido Comunista do Brasil também com 32. Mario de Andrade faz a Semana de Arte Moderna de São Paulo com 29, Siqueira Campos compõe o heroico “18 do Forte” com 24, e Prestes encabeça a “Coluna Invicta” com 27. Por aí afora as coisas vão, com jovens permanentemente vanguardeando o processo brasileiro, com “tenentes” na luta antioligárquica, que levou à Revolução de 1930, com a UNE e a UBES contribuindo para a democratização do ensino no país, que tem em Anísio Teixeira um de seus maiores referenciais – ele, que foi secretário de Educação da Bahia com 24 anos.


Na fase mais recente da vida brasileira, na “Campanha da Legalidade”, em 1961, a UNE dava sua voz de comando para os estudantes de todo o Brasil através de seu presidente Aldo Arantes, que tinha 22 anos. Na resistência ao golpe militar tem destaque a Guerrilha. No episódio, a “Juventude do Araguaia” pavimentou a estrada para a democracia, na qual, mais à frente, apareceriam os “caras pintadas”, levando a opinião e a força jovem à política de Brasília. 


Por isso, quando se registra a passagem dos cinquenta anos do Congresso de Fundação de Ação Popular, a homenagem mais justa que se pode fazer é à protagonista maior do evento, a juventude brasileira.



Haroldo Lima esteve no Congresso dos 10 anos da JUC, em 1960, e nas três reuniões nacionais que resultaram na criação da AP. Desde a incorporação de Ação Popular ao PC do Brasil, é membro do Comitê Central desse Partido.