Desde a primeira metade da década de 1990 temos escutado que deveríamos fazer reformas institucionais para nos inserirmos bem na “globalização”. Alguns diziam que os tempos seriam outros e que era necessário fazer “o dever de casa” para que navegássemos em mares bem tranquilos. Esses mares não se mostraram tão tranquilos assim na década de 1990, quando ocorreram diversas crises financeiras (México, Ásia, Rússia e Brasil, por exemplo). A reflexão acadêmica evoluiu a partir do diagnóstico de que havia algo de errado na nova ordem mundial.

Dani Rodrik, célebre economista e professor da Universidade de Harvard, argumentou que havia o “teorema da impossibilidade” (um trilema) global (“Feasible Globalizations”, NBER Working Paper No. 9129, Aug. 2002). Em síntese, democracia política, soberania nacional e integração econômica não são mutuamente compatíveis quando exercidas ao mesmo tempo e de forma integral. Um país poderia escolher duas dessas dimensões, nunca as três ao mesmo tempo e integralmente. O drama da eurozona revela a pertinência do “trilema de Rodrik” para gregos e troianos.

Se avaliarmos bem a partir do conhecido boletim Focus, do Banco Central do Brasil, o que vem ocorrendo com as expectativas dos agentes econômicos desde dezembro de 2014, é muito fácil notarmos que houve a clara deterioração da confiança na economia brasileira. Em junho deste ano, o ministro de Estado da Fazenda afirmou que estaríamos enfrentando apenas uma ressaca passageira. Qual seria o teor dessa ressaca?

O jornal “El País Brasil” (24/10/2015) publicou uma matéria sobre a crise na América Latina, citando como o Brasil, a Colômbia, o Peru e o Chile amargam déficit nas contas públicas com o fim da festa das commodities. Na matéria constam diagnósticos. Para Ricardo Caballero (MIT), por exemplo, “tivemos um episódio daquilo que se conhece como doença holandesa. Quando o preço e a produção de um bem de exportação sobem muito, as matérias-primas em nosso caso, geralmente elas arruínam o resto do setor exportador, por causa de uma valorização sustentada da taxa de câmbio”. Segundo o colombiano José Antonio Ocampo, da Universidade Columbia, “o quinquênio de crescimento excepcional, que vai de 2004 a 2008”, deve muito “a uma espécie de alinhamento dos astros”. Logo adiante, ele completa: “A desindustrialização foi excessiva, o investimento em tecnologia muito baixo, e há muito por fazer até obter uma educação de qualidade, um setor público eficaz, e uma melhora na infraestrutura que potencialize o crescimento”.

Conforme ponderou o famoso economista Joseph Stiglitz, “basicamente, todas as economias emergentes estão enfrentando um momento difícil. Uma das razões é a desaceleração da China, porque a demanda por commodities está diminuindo. Eles também estão sofrendo com o fim dos juros baixos nos EUA, que, aliás, não vão acabar, mas o medo disso terminar prejudica esses países“ (“Folha de S.Paulo”, 05/11/2015). A interdependência global gera paradoxos e perplexidades: os países desenvolvidos sofrem o risco de deflação e os países em desenvolvimento ou emergentes sofrem pressões inflacionárias. Bem recentemente, o Fundo Monetário Internacional (FMI), que revisou posicionamentos após a crise de 2008, chamou esse cenário global de perspectivas de “um novo medíocre”.

Nesse cenário complexo e adverso, se o governo brasileiro conseguisse efetivamente realizar um superávit primário de 1% do PIB, desvinculando receitas e despesas, por exemplo, a carga de juros jogaria esse resultado para um déficit fiscal nominal da ordem de 7,5% do PIB. Muito provavelmente “o mercado” exigiria um superávit primário ainda maior nos anos seguintes. Para Amir Khair, os gastos com juros representam 97% do déficit fiscal neste ano (“Estadão”, 27/09/2015). A inflação elevada (estagflação) é fruto da combinação do choque tarifário dos preços administrados, sem que se tenha discutido publicamente e de forma qualificada os problemas de modelagem setorial, com os repasses da desvalorização cambial do real. Sua alta taxa de difusão está associada ao processo de desindustrialização, que também impacta no crescimento potencial brasileiro. Alguns economistas consideram em conversas a hipótese de ser esse um efeito do tipo “histerese”. A desindustrialização brasileira é prematura, ela vem ocorrendo desde meados dos anos 1980, nossas exportações perderam complexidade desde 1994 e mais recentemente o crescimento do setor de serviços não foi capaz de acomodar uma nova classe média de renda sem gerar grandes pressões inflacionárias.

As desonerações fiscais e o represamento dos preços administrados retardaram alguns efeitos da crise vigente. Entre 2011 a 2015, segundo levantamento da Receita Federal, foram editadas ao menos 40 medidas provisórias contendo isenções fiscais contestadas pela Operação Zelotes; de 2010 a 2018, o total das desonerações fiscais empresariais é de R$ 501 bilhões (“Blog do Fernando Rodrigues”, 04/11/2015). Não são somente as desonerações que fazem falta hoje no ajuste fiscal. Conforme afirmou o professor Naercio Menezes Filho em artigo de opinião publicado em jornal, “está na hora dos mais ricos também contribuírem com o ajuste fiscal” (“Valor Econômico”, 20/11/2015). O “Sonegômetro” disponível online, por sua vez, registra a estimativa de sonegação fiscal de 10% do PIB no Brasil. Nesse sentido, existe um considerável espaço para ganhos de eficiência na fiscalização e na gestão da arrecadação tributária em nosso país.

Segundo o relatório da Transparência Internacional, o Brasil tem uma das piores legislações do mundo no que diz respeito à lavagem de dinheiro e à evasão de divisas (“Blog do Fernando Rodrigues”, 11/11/2015). O ajuste, portanto, poderia muito bem estar sendo feito de forma progressiva, redistribuindo o peso da carga tributária para aliviar os mais necessitados e ainda estimular o desenvolvimento da economia popular. A carga tributária regressiva é injusta e a propensão marginal ao ato de poupar ou consumir não é a mesma para classes sociais distintas de renda. Tal fato se traduz, entre nós, em um problema crônico de preferência pela liquidez da parte de uma minoria endinheirada, algo próximo ao que Keynes (1936) descreveu e que é capaz de afetar a nossa taxa de poupança através do investimento produtivo. Trata-se de algo que ainda diz respeito ao funcionamento do sistema financeiro nacional e a oferta de crédito, seus prazos, spreads e linhas de financiamento.

Em relação às agruras do ajuste e à potência da política monetária, o ex-ministro João Sayad afirmou que “chamo, seguindo o professor Thomas Sargent, de dominância fiscal o caso em que as taxas de juros reais são maiores do que a taxa de crescimento do produto, o que acontece no Brasil há vinte anos. Se as taxas de juros fossem reduzidas um pouquinho, digamos de 14,25% para 13,25%, o Tesouro economizaria pelo menos 1% do PIB, ou R$ 50 bilhões” (“Valor Econômico”, 20/10/2015). Parte do setor empresarial doméstico talvez apoie essa medida, pois de acordo com o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial, “o Brasil segue perdendo posições no ranking dos maiores exportadores mundiais de bens manufaturados” (“Análise IEDI”, 18/11/2015). Nos últimos dez anos a participação dos manufaturados nas exportações brasileiras recuou de 53% para 34%. Para o Iedi, “a indústria do país continua perdendo competitividade no cenário internacional e doméstico, o que contribui para agravar a restrição externa ao crescimento e é parte explicativa da recessão econômica vivida pelo país”.

Buscar uma maior transparência e avaliar permanentemente a qualidade dos gastos públicos, aperfeiçoando os métodos de gestão, são medidas relevantes em uma democracia política. Um debate sobre o “orçamento de base zero” e a transparência (publicidade) das decisões fiscais também se mostra interessante. Nesta hora difícil, é preciso algum cuidado próximo da ética da responsabilidade weberiana com o discurso simplório da desvinculação das receitas, pois há ciclos econômicos e o gasto público é um estabilizador automático da demanda agregada (cf. a relação do “big government” com a instabilidade financeira do sistema capitalista descrita por Minsky). Sem os estabilizadores automáticos, a depressão, o desemprego involuntário e a deflação podem gerar um cenário preocupante em um contexto de grandes e persistentes desigualdades socioeconômicas. Por que não retomamos o debate sobre o desenvolvimento regional, rediscutindo o papel do governo federal e o pacto federativo?  

Voltando ao “trilema de Rodrik”, é preciso debater publicamente as contradições, os riscos e as opções de inserção na globalização. Não devemos abrir mão da democracia política, mas sim aperfeiçoá-la, e não há país exitoso que tenha abdicado da soberania nacional. A grave crise política não pode paralisar por mais tempo o Brasil.

Rodrigo Medeiros é professor do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes)