Classificar um partido político como “neoliberal” pode ser um atalho para chegar a uma análise consistente, mas ao mesmo tempo implica jogar gasolina na fogueira de uma polêmica (exclusivamente?) brasileira, pois ninguém se assume como tal em nosso país. Mesmo notórios integrantes de think tanks da intelectualidade financeira empresarial não se reconhecem inseridos no arcabouço conceitual do neoliberalismo.

Convém estabelecer, desde logo, que a criação do PSDB não se deveu a uma suposta revolta de políticos íntegros contra o fisiologismo de Orestes Quércia e seu grupo. Ocorreu que, nas eleições de 1986, apoiadores de Fernando Henrique Cardoso (que concorria ao Senado) defenderam o voto em Antonio Ermírio de Morais, do PTB, e o descarte de Quércia, candidato oficial do PMDB ao governo de São Paulo. Mas Quércia saiu vitorioso, e os futuros tucanos foram submetidos a uma dieta de pão e água no partido e no governo de São Paulo. Sem alternativa, Fernando Henrique e seus aliados criaram um novo partido, oficializado em junho de 1988, com o inexplicável nome de “social-democracia”.
Em documentos, entrevistas e declarações da época da fundação do PSDB não há respostas para uma dúvida: por que “social-democracia”? Em compensação, são abundantes as referências ao caráter “moderno” do novo partido, termo que aparece sempre por oposição ao “atraso”, o qual seria a marca do PT. Desde o seu surgimento até os dias atuais, o PSDB jamais contou com quaisquer ligações formais com setores organizados do movimento social, seja de trabalhadores, estudantes, moradores ou confessionais. No que diz respeito ao espectro ideológico-partidário, o partido foi colocado ora na inserção “centro-direita” (afinal, existia o PFL), ora na “centro-esquerda”, dependendo de quem desenhasse o arco. A posição “esquerda” – ou “centro-esquerda”, segundo integrantes de grupos radicais – estava já solidamente ocupada pelo PT. O que importa é destacar que o PSDB esteve permanentemente pressionado por uma poderosa força social à sua esquerda.
O partido engatou-se com empenho na globalização, ousada revolução que o capitalismo promoveu em sua própria base econômica. Infelizmente, para FHC e sua equipe de economistas oriundos de instituições das altas finanças, poderosas crises internacionais enfraqueceram a economia brasileira, exigindo que o governo fosse ao FMI repetidas vezes. Ao final dos governos do PSDB, a balança comercial era deficitária, a dívida pública havia saltado de 28% para 56% do PIB e o desemprego estava na casa dos dois dígitos. Não por acaso, nos últimos meses de seu segundo mandato, Fernando Henrique tinha índices de aprovação popular menores do que os de aprovação, segundo os principais institutos de pesquisa. De todo modo, em três campanhas eleitorais – 2002, 2006 e 2010 –, o “legado” neoliberal foi ignorado ou simplesmente ocultado pelos candidatos tucanos na disputa.
Uma vez que o PSDB se consolidou no thatcherismo, na sequência do Consenso de Washington, não surpreende que se mostrasse ansioso para se colocar em sintonia com as determinações da ordem econômica globalizada, a qual pressupõe a aplicação de políticas neoliberais. E, realmente, FHC dedicou-se com tenacidade na execução de privatizações de empresas estatais de grande porte, ampliação da abertura do mercado interno, que havia sido iniciada por Fernando Collor, anulação do monopólio estatal nas telecomunicações, adoção das reformas administrativa e previdenciária. Essa política econômica abrangente foi definida pelo próprio ex-presidente como o fim da “era Vargas”. A identificação dos governos tucanos com o receituário neoliberal é tão completa que, ainda hoje, aqueles que defendem a política econômica de Fernando Henrique, seus acertos e avanços, têm de defender, ao mesmo tempo, os preceitos básicos do neoliberalismo, como a “estabilidade da moeda”, o equilíbrio fiscal, as “desmonopolizações”, a criação de “ambientes regulatórios” etc. Têm de defender, enfim, o encolhimento da capacidade de ação do Estado.
Resta examinar uma interpretação segundo a qual o PSDB realizou governos social-democratas, e não neoliberais. Nessa explicação, a grife social-democrata seria garantida por FHC mediante sua atuação na oposição democrática à ditadura de 1964, além de seu prestígio de intelectual globalizado. A condição de social-democrata do ex-presidente teria sido confirmada com a sua incorporação ao clube da “terceira via”. Contudo, qualquer observador atento pode concluir que a presença do dirigente tucano na third way é incompatível com o próprio princípio do grupo, conforme havia sido concebido por Anthony Giddens e colocado em prática por Tony Blair, pois a “terceira via” deveria ser uma alternativa às forças da direita e às da esquerda. E, de fato, cada um dos integrantes do clube enfrentava em seu próprio país a oposição de forças da direita propriamente dita. Bill Clinton disputava o poder com o Partido Republicano, enquanto Tony Blair tinha o Partido Conservador, para citar os integrantes mais conhecidos. No Brasil foi diferente. Aqui, a direita – nas versões econômico-pragmática e ideológica – era parte constitutiva dos governos do PSDB. Disputou as eleições de 1994 e 1998 numa única chapa e governou junto ao longo dos oito anos de Fernando Henrique.
Os altos índices de aprovação dos governos petistas, o prestígio internacional de Lula, o sucesso da missão de eleger o sucessor… tudo isso levou o PSDB a uma prática oposicionista marcada pela hostilidade. Com a polarização exacerbada da eleição de 2014 – e a vitória da candidata petista, é claro –, o cenário político brasileiro tornou-se mais envenenado, o que se expressa no cerco da mídia que se alimenta dos escândalos de corrupção em drops diários distribuídos por setores do Judiciário e da Polícia Federal. Como sói acontecer, importantes líderes oposicionistas passaram a se comportar como tubarões ao sentir o gosto de sangue na água.
A imprensa tradicional martela diariamente algumas versões da “crise econômica” – “crise política”, “crise institucional”, entre outras –, enquanto caciques tucanos desfilam em compassos desencontrados. Aécio Neves sonha com novas eleições que, finalmente, apagariam momentos de tristeza e decepção públicas pela vitória que escapou por pouco. Geraldo Alckmin tem planos para concorrer à Presidência em 2018, mas sabe muito bem que, antes de tudo, precisa neutralizar e vencer os contentores de seu partido. José Serra aposta num governo de Michel Temer no qual assumiria um importante ministério da área econômica e, em seguida, seria lançado para a Presidência. Fernando Henrique, por sua vez, busca valorizar o legado de seus governos e, ao mesmo tempo, manter sua influência nos debates e nas decisões do partido. Mas todos compartilham o objetivo de anular Lula e extinguir o PT. Seja agora ou em alguns anos.
Analistas e comentadores frequentemente criam situações hipotéticas com o objetivo de esclarecer motivações presentes em contextos confusos e cogitar sobre futuros desdobramentos de impasses políticos – como no caso do cenário atual, marcado por um movimento golpista que ameaça a democracia brasileira. Não se trata de imaginar o que aconteceria se o candidato tucano não tivesse sido derrotado nas eleições de 2014. Trata-se, antes, de considerar possibilidades e tendências de um governo do PSDB na fase do pós-golpe. Ainda que a antecipação de eleições pudesse imprimir algum grau de legitimidade ao poder político nas mãos de tucanos e seus aliados, o déficit de legitimidade, no Parlamento e na sociedade civil, iria paralisar o governo e jogá-lo em repetidas crises. No caso de um eventual governo Temer – a julgar pela voracidade pelo poder e desprezo por regras da democracia que dirigentes tucanos têm demonstrado –, é de imaginar que, desde que tivessem força para tanto, não resistiriam à tentação de um (novo) golpe dentro do golpe, afastando o atual vice-presidente sob qualquer pretexto.
E da perspectiva da economia política, como seria um governo do PSDB? Coerente com a leitura aqui proposta, a resposta é uma só: seria um governo… neoliberal. Para projetar o cenário de um hipotético governo tucano, basta o click que abre o acesso a várias fontes de inspiração: declarações de Armínio Fraga (durante a campanha eleitoral e depois da derrota tucana); artigos de Fernando Henrique; comportamento da bancada tucana em importantes votações de 2015 na Câmara dos Deputados; artigos e participações em debates na mídia de notórios economistas e comentaristas políticos ligados ao PSDB. Não menos importantes são as medidas concretamente tomadas nos dois mandatos de FHC.
Em primeiro lugar, as privatizações. Durante a campanha eleitoral de 2014, Fraga, ex-futuro ministro da Fazenda, declarou que, se assumisse a área econômica do governo, “pouca coisa iria sobrar” do Banco do Brasil, do BNDES, da Caixa Econômica Federal e de outras instituições estatais similares. Somadas essas intenções ao incansável empenho da dupla de senadores tucanos por São Paulo – com protagonismo de Serra, evidentemente – para diminuir o componente nacional na exploração do pré-sal, podemos desenhar um governo no qual a transferência de ativos estatais para a iniciativa privada ultrapassaria o patamar de privatizações realizadas pelos governos Fernando Henrique.
No que diz respeito ao outro ponto do tripé neoliberal, ou seja, a redução (ou anulação) de normas que regulam o funcionamento do mercado, ainda que se possa dizer que os governos petistas não reverteram a liberalização promovida nas duas administrações do PSDB (Lula e Dilma até ampliaram alguns aspectos da abertura econômica), de um governo tucano deve-se esperar a ampliação da desregulamentação econômica. Como bem explicou FHC – criticando o PT, que teria se apropriado de políticas econômicas tucanas –, “nós faríamos melhor e com empenho sincero o que eles estão fazendo a contragosto”. Desnecessário mencionar que uma das primeiras medidas de um governo tucano seria institucionalizar a independência do Banco Central.
Quanto ao mercado de trabalho, o mesmo Fraga já havia estabelecido qual seria o objetivo de um governo tucano: permitir (incentivar?) o aumento do desemprego, uma vez que ele acredita que taxas baixas de desemprego (em torno de 5% ou 6%, como acontecia até os primeiros meses de 2015) prejudicam o desenvolvimento da economia capitalista. De modo ainda mais direto, o ex-presidente do Banco Central no governo FHC afirmou que, numa administração tucana, o salário mínimo não seria mais reajustado pelas mesmas regras vigentes nos governos do PT. Para ele e para outros economistas neoliberais, o ideal é que as relações de trabalho não sejam aprisionadas por regras e direitos de proteção aos trabalhadores. Atuando em conformidade com as convicções de Fraga, todos os parlamentares da bancada tucana na Câmara dos Deputados (devidamente liderada pelo presidente da casa, Eduardo Cunha) votaram pela ampliação da flexibilização dos contratos de trabalho.
As relações internacionais de um governo do PSDB seriam marcadas pelo alinhamento irrestrito com os Estados Unidos. O que implica, consequentemente, manter relações distantes ou mesmo hostis com governos nacionais que não defendem interesses estratégicos ou econômicos dos norte-americanos e de seus aliados. Esse posicionamento resultaria em fissuras nas relações com os países da América Latina, sobretudo no Mercosul. Apenas a título de exemplo para amparar essa interpretação, cabe lembrar que, se Fernando Henrique fosse o presidente da República, Evo Morales teria sido apeado do governo boliviano pelos empresários golpistas da Meia Lua. Mas o dirigente pôde contar com o apoio do governo Lula para neutralizar o golpe. Na mesma linha de raciocínio, pode-se especular que num governo tucano o Mercosul já teria desaparecido e o grupo dos Brics simplesmente não existiria.
Embora a maior realização dos governos Fernando Henrique tenha sido a “estabilização da moeda”, na definição de economistas tucanos, a realidade é que o saldo final das duas gestões é negativo inclusive no que diz respeito ao combate à inflação. Os números da economia das gestões tucanas merecem ser relembrados nas palavras de Perry Anderson: “O regime está reprovado nos seus próprios termos. A realização principal do governo – estabilização monetária – está desmoronando: a moeda vale um quarto do valor que tinha no início da Presidência de Fernando Henrique Cardoso, as taxas de juros são as maiores do mundo (22%), e o país está na iminência de uma moratória. A violência urbana cresceu nas grandes cidades. A desigualdade é praticamente a pior do mundo. A dependência – em todos os sentidos deletérios – é incomparavelmente maior do que era quando Cardoso, no seu passado distante de sociólogo, elaborou uma teoria crítica sobre ela”.1
Para finalizar o quadro de um hipotético governo tucano com cores dramáticas – mas não improváveis –, basta pintá-lo com matizes usados por importantes economistas ligados ao partido em análises publicadas na grande imprensa, nas quais o principal eixo de interpretação é baseado na inviabilidade do atual “contrato social” brasileiro. Em artigo na Folha de S.Paulo (19 ago. 2015), por exemplo, Samuel Pessoa, Marcos Lisboa e Mansueto de Almeida afirmam que a Constituição de 1988 impôs ao país um patamar de gastos sociais que, realisticamente, não podemos mais manter. Nem o terrorismo-austeridade praticado pela Troika ousou propor queimar o “contrato social” grego. Devemos temer pela nossa Constituição-cidadã?

Roseli Martins Coelho é doutora em Filosofia Política pela FFLCH-USP e professora de Ciência Política da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP)

1 Perry Anderson, “The Cardoso Legacy”, London Review of Books, n.24, dez. 2002.

Publicado no Le Monde Diplomatique Brasil