Existe um sentido de continuidade na estratégia internacional do falecido ex-presidente Néstor Kirchner, nascida naquela Argentina ao borde do nocaute econômico em 2003, e que foi seguida por sua esposa Cristina Fernández, de 2007 em diante.


Entre uma data e outra, o mundo mudou e a Argentina também.


Em 2003 Néstor Kirchner buscou uma relativa autonomia a nível internacional, para um país que havia caído em default, vivia subjugado ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e atravessava uma das piores crises de sua história.


Nesses anos o mundo demonstrava maior confiança num capitalismo financeiro, que se estendia por todas as partes, indiferente aos atentados de 11 de setembro ou à invasão do Iraque.


Esta confiança se quebrou com a tragédia financeira de 2007-2008.


Junto com esse fato, veio a plena incorporação da China e da Índia ao circuito econômico mundial, a crise abriu um novo cenário internacional pós-queda do Muro de Berlim.


Com os países centrais em crise e obrigados a resgatar, através de verbas multimilionárias os seus sistemas financeiros, e com o acelerado crescimento da China, que incluiu um salto de seu comércio e seus investimentos na América Latina, se gerou um espaço para que a região tivesse uma maior margem de manobra, para desenvolver um projeto econômico próprio.


Nada simboliza melhor o novo panorama mundial que a aparição estelar dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e a prolongação, até o dia de hoje, de uma crise que os países centrais não puderam resolver, apesar de terem feito o que sempre disseram que não se podia fazer: imprimir toneladas de dólares, libras, yenes e euros, com o sistema conhecido como Quantitative Easing (injeção eletrônica de dinheiro mediante compra de dívida dos bancos privados) para reativar a atividade econômica.


China, Rússia e Argentina


Acossada pelos fundos abutre, que reabriram a ferida da dívida, afrontada pelos países centrais e os grupos midiáticos hegemônicos mundiais, que não perdoam a nacionalização da petroleira YPF e do Sistema de Pensões – para ficar somente nas medidas mais resistidas – bombardeada internamente pela oposição e seus pilares jornalísticos, que atiçaram a corridas contra o peso argentino, a desvalorização e as espirais inflacionárias. Mesmo com tudo isso, Cristina Kirchner aproveitou o novo cenário internacional com o mesmo princípio de autonomia relativa que havia sido aplicado por seu esposo e antecessor.


Em fevereiro, o governo assinou um convênio com a China, que deu início a uma nova “aliança estratégica”, permitindo avançar em projetos energéticos, de tecnologia aeroespacial, mineração e comunicações, que incluem a construção de uma nova usina nuclear, duas represas hidroelétricas e importantes obras de infraestrutura, tudo isso financiado com empréstimos sob as melhores condições que as oferecidas pelos mercados internacionais.

Em abril, foi a vez da Rússia. Acompanhada de vários assessores de governo e uma recheada comitiva de empresários, Cristina Kirchner assinou acordos para a construção de mais uma usina nuclear, outra represa hidrelétrica, investimentos conjuntos nas petroleiras e em outros empreendimentos.


Não se trata unicamente de economia. Num mundo em que a velha ordem ainda não saiu da pauta, os acordos têm um claro impacto geopolítico.


A China incorpora um aliado de peso na América Latina, para sua batalha silenciosa contra os Estados Unidos, a Rússia faz o mesmo, em meio a uma tensa queda de braço travada na Ucrânia, onde os concorrentes ocultos são os norte-americanos e a União Europeia. É um toma lá dá cá. A presidenta agradeceu o apoio de ambos os países no tema das Malvinas, num momento em que o governo britânico do conservador David Cameron, enfrentado a uma dura campanha eleitoral, anunciou um fortalecimento de sua presença militar nas ilhas.

Sinal de novos ventos internacionais, e Cristina Fernández foi mais além nessa estratégia que seu marido. Em junho de 2003, com apenas três semanas de mandato como presidente, Néstor Kirchner viajou ao Brasil, para se reunir com Lula, em sua primeira visita internacional como chefe de Estado. Era uma clara mensagem de vontade política pró-Mercosul, mas a segunda viagem, no mês seguinte, foi a Washington, onde se reuniu com George W. Bush, que acabava de determinar a invasão do Iraque.

O apoio que obteve nesse momento de profunda crise econômica não evitou que, dois anos mais tarde, em 2005, numa recordada aliança com Lula e Hugo Chávez, fosse derrubado o projeto ALCA, um dos objetivos prioritários do Estados Unidos na região, que forçaria uma integração econômica do continente americano sob as regras estabelecidas por Washington.

Cristina Kirchner foi além, e se transformou na primeira presidenta que não visitou a Casa Branca desde o retorno da democracia, em 1983. Essa independência teve seus custos. Em 2014, Barack Obama não apoiou o governo argentino em seu litígio contra os fundos abutre, na Corte Suprema do país, última instância para apelar contra a decisão do juiz Thomas Griesa, de Nova York, que obriga a Argentina a pagar a totalidade dos bonos de dívida sem reconhecer o que já foi quitado e a reestruturação alcançada em 2005.

Um futuro sem Cristina

Duas organizações com evidente presença chinesa – o Banco de Desenvolvimento dos BRIC e o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura – são provas de que o desafio de se buscar uma nova ordem econômica mundial no pós-guerra continua de pé, contra a dominação dos Estados Unidos, através do FMI e do Banco Mundial, que vem marcando as últimas décadas.

Em 2014, a China emprestou para a América Latina 22,1 bilhões de dólares, montante superior aos 20 mil que foram conjuntamente destinados à região pelo Banco Mundial e pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Com o FMI mais preocupado com a crise europeia, o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura, lançado em Pequim, em outubro do ano passado, conseguiu a adesão não só dos países asiáticos, mas também do resto dos BRICS e de 17 nações europeias, entre elas a Alemanha, o Reino Unido, a França e a Espanha.

No contexto atual, de estancamento econômico mundial, essa luta entre a nova e a velha ordem mundial se intensificará. Para a América Latina, essa será uma oportunidade de aproveitar as chance de se inserir num mundo mais multipolar. Foi o que Cristina Kirchner fez, mas, a partir de dezembro, haverá outro presidente na Casa Rosada.

O opositor com mais chances hoje é Mauricio Macri, do PRO, que governa a cidade de Buenos Aires e representa uma direita favorável à reaproximação com os Estados Unidos. As últimas pesquisas continuam dando ventagem para Daniel Scioli, provável candidato do kirchnerismo – um político à direita de Cristina, mas à esquerda de Macri. As eleições de outubro decidirão se o país seguirá avançando pelo caminho das alianças multipolares ou se voltará a uma política subordinada a Washington.

Publicado em Carta Maior