O jornal “El País” publicou uma interessante matéria sobre a situação da renda, na Espanha em crise, apontando a localidade de Alcobendas (Madrid), como a “capital da desigualdade”. Ali, 1 por cento da população  se apropria de 27 por cento da renda. Não está tão mal, comparando com o Brasil. Aqui, se um grupo reunido numa sala tivesse que dividir R$ 100,00, uma delas ficaria – segundo o IBGE – com R$ 45,00 sozinha. Os dados do Censo de IBGE de 2010 não devem ter mudado muito, o que implica em concluir que um dos problemas mais graves do nosso país é, mais do que a geração de renda, a sua distribuição. E que se abrem, para resolver esta questão duas perspectivas bem distintas, quando se fala em “ajustes”:  fazer ajustes para depois distribuir renda ou fazer ajustes na economia (e na política), para crescer distribuindo renda?

Mais além dos debates, com ódios e ressentimentos,  disseminados após a vitória da presidenta Dilma, este é dissenso verdadeiro que percorre hoje a sociedade brasileira e que o PT e a esquerda devem integrar, com capacidade de responder “técnica” e politicamente. Estas respostas envolvem,  não só as questões políticas de fundo, que assediam em geral a República e a Democracia – num ambiente internacional desfavorável – mas também as intricadas questões de sustentabilidade financeira, para o tipo de crescimento com distribuição de renda que defendemos. A pergunta mais elementar, mas mais significativa, é a seguinte: o projeto de desenvolvimento deve se ajustar à necessidade de aumentar, em termos reais, os baixos salários ou é bom a economia crescer mantendo os níveis de desigualdade atuais?

Em termos políticos, a questão mais importante não é difícil de ser localizada, embora mais difícil de ser respondida: qual a agenda política do Governo e dos partidos do campo da esquerda, que sustentam o Governo, para fortalecer um movimento majoritário na sociedade – com reflexos parlamentares – para sustentar políticas de crescimento com aumento real dos baixos rendimentos?

Nenhuma das respostas é simples. Mas as respostas “liberais” também não são nem simples nem de fácil aplicação. Aplicar suas receitas num país que tem uma renda menos concentrada, como a Espanha (comparando com o Brasil),  é muito diverso de aplicá-las aqui.  As desigualdades sociais enormes, combinadas com contrastes que só se tornam “estéticos” nos filmes  de segunda, são romantizadas até o momento que se constata que micro-projetos de “inclusão” podem servir de exemplo, mas  mudam a vida apenas de pequena  parte das comunidades nos territórios de aplicação. Aplicar uma “receita” espanhola” ou grega, no Brasil, provocará uma onda de comoção social muito mais forte do que as chamadas “jornadas de junho” de 2013.

Penso que se deve forjar nos partidos de esquerda, frações de partidos democráticos progressistas, nos movimentos sociais, na academia, junto à intelectualidade progressista de todas as organizações profissionais, com os sindicatos, alcançando uma base parlamentar solidária com a continuidade das mudanças no país, uma grande Frente Política de esquerda, para compor, tanto uma agenda política de caráter estratégico, conjugada com uma agenda econômica, como medidas imediatas, para um novo ciclo de crescimento da economia com distribuição de renda (e aumento real de renda dos “de baixo”), inclusive junto ao setor público.

O Presidente Lula disse corretamente que só a força da política rivaliza com a força do mercado. Poder-se-ia ir mais adiante e dizer que hoje só a direita “liberal” compreendeu isso em profundidade. Acionou todas forças políticas, subsumidas no mercado, para reatualizar a sua agenda contra a chapa vencedora nas eleições presidenciais. E exigiu do Governo que vai assumir um “ajuste” que contempla o seu programa, não o programa vencedor nas eleições. Na verdade, o mercado só é puramente técnico quando finaliza as suas jogadas especulativas nas bolsas mundiais, mas, no restante do tempo, ele faz política 24 horas por dia. E a faz  para colocar os estados endividados à disposição dos seus mecanismos de enriquecimento sem trabalho.

Se não alterarmos a correlação de forças na sociedade e no parlamento, dificilmente a sua agenda deixará de emplacar. A base de sustentação de um Governo que governa e deve governar dentro da ordem institucional,  traça os limites da sua governabilidade democrática. E também da sua capacidade prática de manejar os fundos públicos e orientar as poupanças privadas para provocar crescimento e geração de renda. Estes limites estão claros. Uma boa parte da base parlamentar do Governo esgotou a sua capacidade de apoio, dentro do jogo político tradicional que caracterizou o país desde a constituição de 88. É preciso mudar as regras do jogo na política, para manter as regras do jogo dentro da democracia.

Esta mudança pode ser traduzida no seguinte: constituição de uma Frente Política que trace, desde logo, um Programa Mínimo, que tanto sirva para orientar e propor ações para o presente como, se não realizadas, amalgamar uma unidade para o futuro. No plano imediato,  para defender a proibição do Financiamento Empresarial paras as campanhas eleitorais; nova Regulamentação para as concessões na área de comunicações; Regulamentação imediata do Imposto Sobre as Grandes Fortunas; novo financiamento para o Sistema Único de Saúde; nova Política de Valorização do Salário Mínimo.

 

Num plano mais estratégico, uma Constituinte para a Reforma Política; Democratização das Comunicações de molde a permitir a livre circulação da opinião; reestruturação do Imposto de Renda para reduzir a oneração do assalariados médios e de baixos ingressos; reforma do Pacto Federativo para descentralizar recursos; Reforma Tributária para o estado arrecadar com mais eficiência e estimular o setor industrial  (com  oneração do grande capital e das grandes fortunas); constituição de formas de Participação Cidadã, na produção e no acompanhamento das políticas públicas da União.

Crescimento com aumento de desigualdades ou crescimento com redução das desigualdades? Eis o dilema de um país que, depois de melhorar a vida de cinquenta milhões de pessoas,  deve  escolher entre tornar-se uma brutal experiência de contrastes, entre riquezas imensas acumuladas por muito poucos, de um lado  e pobreza insanável, de outro; ou buscar um caminho alternativo,  num mundo cada vez mais violento, mais desigual, mais barbarizado pelas guerras. O capital financeiro capturou os estados pelos mecanismos de controle da dívida pública nas mãos da especulação mundial e aniquilou programas de partidos, compromissos com a ordem democrática e subsumiu as instituições ao seu regime duro. Cabe à esquerda renovada, aqui no Brasil,  pactuar uma unidade processual na defesa das promessas da Constituição de 88, com seus direitos fundamentais  a espera da sua concretude.

Regras claras para a acumulação privada, para a intervenção-regulação da economia pela Estado, aumento do poder aquisitivo da população de baixa-renda e formas claras para o financiamento do desenvolvimento, nada disso é incompatível com um “programa de transição” para uma sociedade bem menos desigual do que a atual, na qual as pessoas possam pensar suas utopias em condições de mais liberdade e mais igualdade. Estamos entrando num novo ciclo político no país e a tendência hegemônica, neste momento,  é  o congelamento das conquistas democráticas e populares emplacadas, com erros acertos, grandezas e misérias, nestes últimos doze anos, como ocorre em todas as grandes transformações sociais. Mas não nos enganemos, após o congelamento vem o degelo e, no caso, a liquidez do retrocesso.

(*) Governador do Rio Grande do Sul

Publicado em Carta Maior