O porta-voz do Ministério das Relações Exteriores de Israel, Yigal Palmor, acusou o Brasil de ser um “anão diplomático”. Tudo isso porque o governo do Brasil, chocado, como todo o mundo, com a ofensiva genocida das forças de Israel em Gaza, chamou de volta seu embaixador em Tel-Aviv para consultas.

Aparte a vulgaridade quase anedótica do ventríloquo bufão, essas são afirmações que intrigam pessoas com um mínimo de informação.

Em primeiro lugar, porque foi justamente um representante da nossa diplomacia “anã”, Oswaldo Aranha, que presidiu a sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas que criou o Estado de Israel. Aranha foi um dos principais articuladores diplomáticos da Resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas 181, de 1947, que deu reconhecimento internacional a Israel. Por isso, Oswaldo Aranha é nome de rua em Tel-Aviv.

Em segundo lugar, porque o Brasil sempre teve uma posição bastante equilibrada e moderada em relação ao conflito israelo-palestino. Nosso país reconheceu, desde o início, a existência do Estado de Israel. Ao mesmo tempo, o Brasil é um histórico defensor da criação de um Estado Palestino soberano, geograficamente coeso e economicamente viável, situado nos territórios ocupados por Israel desde 1967, a saber: Cisjordânia, Faixa de Gaza e Jerusalém Oriental.

Tal defesa, compartilhada por quase toda a comunidade internacional, tem sua base jurídica em muitos instrumentos internacionais, com destaque justamente para a mencionada Resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas 181, de 1947. Com efeito, essa Resolução, que criou o Estado de Israel, assegurou, ao mesmo tempo, ao povo palestino, o direito à criação de um Estado que conviveria pacificamente com Israel, configurando o que se chama de “solução de dois Estados” para aquele conflito do Oriente Médio.

Assim, o Brasil historicamente se posicionou em relação àquele conflito com muita moderação e tomando como base fundamental as resoluções da ONU sobre o tema. Essas resoluções são claras: os israelitas têm direito ao seu Estado, mas os palestinos também. Ademais, a ONU condenou explicitamente a ocupação, por parte de Israel, dos territórios palestinos e dos territórios de outros países tomados após a guerra de 1967. De fato, tanto o Conselho de Segurança das Nações Unidas, através da sua Resolução 497, quanto a Assembleia Geral, que aprovou moção de apoio à essa Resolução , condenaram taxativa e reiteradamente a ocupação ilegal.

Além de se posicionar de forma equilibrada sobre o tema, tomando como parâmetros as resoluções da ONU relativas ao conflito, o Brasil sempre deu firme apoio a todas as iniciativas destinadas à retomada das negociações de paz. Desse modo, o nosso país, em consonância com a comunidade internacional, apoiou os entendimentos alcançados no segundo Acordo de Oslo (1995), na Iniciativa Árabe de Paz de Beirute (2002), no chamado “Mapa do Caminho para a Paz” (2003), na “Iniciativa de Genebra” (2003) e nas outras que as sucederam.

Assim sendo, cabe aqui a pergunta: quem é o anão diplomático nessa história? O Brasil, que apoia as resoluções da ONU e as tentativas de negociação, ou Israel, que as descumpre sistematicamente, manifestando desprezo pela comunidade internacional?

No plano externo, Israel usa somente dois argumentos de peso: seu poderoso exército e o apoio incondicional dos EUA e seus aliados. No que tange aos palestinos, a “diplomacia” israelense se resume a isso. Convenhamos: é muito pouco para quem acusa o Brasil de nanismo diplomático.

Se há uma crítica que se pode fazer ao Brasil, é precisamente a contrária à que fez o ventríloquo bufão. Uma posição muito equilibrada, relativamente a um conflito com correlação de forças tão assimétricas, tão desproporcionais, pode beneficiar o forte, em detrimento do fraco. Fica cada vez mais claro que tanto o Brasil quanto os demais países precisam assumir uma posição mais incisiva, no que tange à defesa do sofrido povo palestino.

Esse povo, que não tem Estado, território coeso, economia viável e nem forças armadas vem sendo submetido ao que Ilan Pappé, historiador israelense, denominou apropriadamente de “genocídio incremental”. Aos poucos, o governo de Israel vai colonizando quase toda a Cisjordânia, tomando as poucas terras remanescentes dos palestinos, e sitiando 1,8 milhão pessoas na estreita Faixa de Gaza.

O governo de Israel não gosta, mas não há como deixar de comparar Gaza a um gueto. A situação lá não é igual à do gueto de Varsóvia, mas, aos poucos, está se aproximando bastante.

Gaza sofre um bloqueio impiedoso há sete anos, que devasta sua precária economia e submete a população a sofrimentos indizíveis. Há falta de água e de energia. Há fome e falta de remédios. A taxa de desemprego é de 40% e os palestinos que lá moram não podem manter contato regular com seus familiares na Cisjordânia. Praticamente todo o comércio externo foi cortado. Até mesmo a pesca foi severamente restringida pelo governo de Israel. Para não morrer, a população de Gaza depende da ajuda internacional, que chega a conta gotas, e de precários túneis pelos quais entram alimentos e remédios. Justamente os túneis que o governo de Israel quer fechar.

Gaza é hoje uma gigantesca prisão. Uma prisão já condenada pelo Alto Comissário para os Direitos Humanos das Nações Unidas e pelo comitê da Cruz Vermelha Internacional, entre vários outros. Gaza é uma crua ofensa à consciência do mundo.

Ante tal situação dantesca, não resulta difícil entender que o Hamas eventualmente dispare seus precários e primitivos foguetes Qassam contra Israel, sem nenhum sucesso, já que esses artefatos são facilmente destruídos pelo sofisticado sistema antiaéreo israelense.

Portanto, classificar a atual ofensiva genocida do governo de Israel em Gaza, que já matou 800 pessoas, incluindo mulheres e crianças, como uma resposta apropriada ao Hamas, justificada pelo direito à autodefesa, é uma manifestação de nanismo intelectual. Não é apenas desproporcional. Simplesmente não é autodefesa. É ataque indiscriminado que atinge especialmente a população civil inocente de Gaza, já massacrada cotidianamente pelo bloqueio.

Não é uma guerra. Trata-se de uma política deliberada de sufocação e aniquilamento. É o “genocídio incremental”, que, às vezes, não é tão incremental assim.

É por isso que o governo de Israel, mesmo contando com a simpatia da mídia ocidental, vem perdendo, nos últimos anos, apoio na opinião pública internacional e na opinião pública brasileira. Ao convocar seu embaixador, o governo do Brasil está somente entrando em sintonia com o que pensa e sente boa parte de sua população.

Contudo, o principal problema do governo que chama o Brasil de “anão diplomático” é o seu nanismo moral. No dia seguinte em que acusou o Brasil de “anão diplomático”, o governo de Israel bombardeou uma escola das Nações Unidas em Gaza, manifestando, dessa forma, todo o seu apreço à diplomacia, ao multilateralismo e à comunidade internacional.

Desconhecemos manifestação do ventríloquo bufão sobre esse crime. Mas, no placar da diplomacia mundial, a desproporcionalidade já é gritante.

Brasil 10 x Israel 0.

Marcelo Zero é diplomado em Ciencias Sociais pela UnB e assessor legislativo do Partido dos Trabalhadores.

Publicado originalmente por IstoÉ.