Ao que tudo indica – pelo menos aparentemente – anda a passos céleres a concretização de um acordo encetando a criação do maior bloco econômico até existente. Sob a rubrica de uma Parceria Transpacífica (Trans-Pacific Partnership – TPP) reunir-se-ão 40% do PIB global envolvendo países asiáticos (Brunei, Cingapura, Malásia e Vietnã), norteamericanos (Estados Unidos e Canadá), sulamericanos (Peru e Chile), além de Austrália e Nova Zelândia.

O TPP obedece a mesma lógica do pacto TTIP (Transatlantic Trade and Investment Partnership) entre os EUA e a União Europeia. Juntos, o TPP e o TTIP abrangerão mais de 60% do PIB global.

A possibilidade de um acontecimento desta magnitude não pode passar despercebido. Certamente poderá ter algum efeito internacional numa época de gradativo aumento de importância de países como o Brasil, China, Rússia e Índia, possibilitando maior margem de manobra ao país menos interessado numa chamada multipolaridade política e econômica. Refiro-me aos Estados Unidos da América.

De alguma forma, dois países poderão ser afetados caso o acordo se concretize. Por motivos óbvios, China e Brasil são os menores interessados nisso. O primeiro pela clara manobra de contenção de sua área de influência, sobretudo na região da Ásia do Pacífico e o segundo pelo poder de atração que os Estados Unidos continuarão a exercer pela banda pacífica e andina de um continente cujos esforços de integração esbarram justamente nos limites econômicos do mais importante de seus membros, o Brasil. Mais adiante voltarei a tocar nesses aspectos.

Porém, existe uma pedra neste caminho e tem nome: Estados Unidos. Parece contraditório, mas não é. As notícias dão conta de uma resistência norteamericana à abertura de seu mercado. Os EUA parecem não ter aprendido com a “inteligência” mostrada por seus generais nos campos de batalha do Vietnã e repetem a mesmo comportamento nas mesas de negociação deste tratado. Por exemplo, os EUA pressionam contra medidas visando o controle do sistema financeiro, tentam reforçar regras de proteção à propriedade intelectual, o que afetaria programas de subsídios de remédios contra a AIDS oferecidos por países como o Vietnã. Outro exemplo está na resistência à abertura de seu mercado a produtos lácteos, produtos estes que – nos Estados Unidos – estão sujeitos a tarifas de até 300% o que afeta diretamente a Nova Zelândia.

O mais intrigante do processo de consolidação da TTP é o grau de sigilo com que estão ocorrendo as negociações. Para atestarmos o grau de sigilo público e legislativo, é angular a citação que segue extraída do sítio resistir.info: “Desde o princípio das negociações TPP, o processo de redação e negociação dos capítulos do tratado foi envolvido num nível de secretismo sem precedentes. O acesso aos rascunhos dos capítulos do TPP está blindado em relação ao público geral. Membros do Congresso dos EUA só podem ver porções selecionadas dos documentos relativos ao tratado em condições altamente restritivas e sob supervisão estrita. Foi revelado anteriormente que apenas três indivíduos em cada país TPP têm acesso ao texto completo do acordo, ao passo que a 600 “conselheiros comerciais” – lobbyistas que defendem os interesses de grandes corporações estadunidenses tais como Chevron, Halliburton, Monsanto e Walmart – é concedido acesso privilegiado a secções cruciais do texto do tratado.”

A inteligência dos “generais” norteamericanos a frente das citadas corporações entrarão em ampla fase de teste na mesma proporção em que os dispositivos deste tratado virem a público. Poderemos assistir a uma resistência igual ou maior que a vivida com a tentativa de implantação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) no final da década de 1990. Não tenho dúvidas de que o caminho para este tipo de acordo será muito mais complicado e tortuoso do que o verificado na malfadada época da ALCA. Outra implicação reside na própria conjuntura: não vivemos mais numa época de plena hegemonia dos postulados livre-cambistas. E o contraexemplo vem da própria Ásia do Pacífico excluída do TPP onde um país que tem na defesa de suas capacidades produtivas uma expressão concreta, e contemporânea, da própria noção de nacionalidade. Seria dispensável dizer que estou falando da República Popular da China.

E a China nessa história? Não deverá passar incólume. Não sei até onde essa tentativa de cerco afetará sua performance econômica, pois a China é por demais grande e influente para deixar de ser notada, também, como uma potência financeira que tem substituído os postulados de Bretton Woods (FMI e Banco Mundial) transformando-se na maior provedora de crédito liquido do mundo. E será cada vez mais notada na mesma proporção em que seu mercado interno vai ganhando peso.

A tendência de médio e longo prazo é a China depender cada vez menos de mercados externos e mais de seu mercado interno. Um mercado interno nada desprezível e baseado numa fusão monumental entre mais de uma centena de conglomerados empresariais e um amplo sistema financeiro regido pelo Estado. E se trata de uma transição de “modelo” que não ocorre sem as consequentes dores decorrentes de uma conjuntura internacional incerta e com alto grau de inconsequência.

Posta as coisas desta forma, a grande questão, imediata, que envolve a relação entre a China e o possível TPP está em até que ponto essa ofensiva norteamericana no Pacífico poderá atrapalhar a transição econômica interna chinesa. Acredito que não existe relação causal entre um processo e outro. O nível de constrangimento é mais de ordem política, geopolítica e estratégica. Está claro que os EUA estão mirando seus olhos à China. E faz tempo. Todos seus movimentos têm como alvo estratégico o gigante asiático: desde as guerras no Iraque e Afeganistão até o apoio à Al Qaeda na Síria, que se de um lado intenta isolar o Irã e desmantelar a força do Hezbollah no Líbano, por outro busca privar a China de possíveis aliados estratégicos no Oriente Médio.

Os chineses trabalham com a noção de tempo histórico. Jogam o jogo sabendo que nada é eterno: os Estados Unidos tendem a se enrolar nas suas próprias ações. A intransigência norteamericana em insistir na abertura comercial irrestrita de outros países é um fato muito bem explorado pela China. Vejam os exemplos da cada vez maior presença chinesa na carteira de investimentos de nossos vizinhos sulamericanos outrora quase sugados pela possibilidade de uma ALCA. Comparem, também, as condicionalidades anexas aos créditos carimbados pelo FMI e o Banco Mundial e as não condicionalidades dos créditos consignados por instituições chinesas.

O Brasil deverá ser afetado em seu projeto de integração sulamericana. Não há dúvidas disso. Mas não nos atenhamos a teses e sim a um grande fato: antes de pensarmos nos efeitos, ao Brasil, das estratégias de terceiros países, devemos montar nossa própria estratégia. Estratégia baseada num pensamento nacional. Bem, estou falando de estratégia e pensamento nacional. Ambas as coisas não combinam – são antípodas – com anomalias de tipo “tripé macroeconômico”. O tripé de nossa política monetária é apenas expressão da miséria em matéria de pensamento estratégico que vivemos em nosso país. Mantido esse atual estado interno de coisas pouco poderemos fazer diante de investidas estratégicas de chineses e norteamericanos. Sempre teremos uma inflação do tomate a combater com os mesmos remédios que institucionalizam nosso mercado interno a produtos estrangeiros, notadamente chineses e coreanos.

Entre o abstrato e a abstração existe uma distância nada pequena. Entre uma coisa e outra está a acomodação e a covardia intelectual e visão pequena de nação que nos impede de ir além da “estratégia” da estabilidade da moeda. Nosso livre-cambismo nos condiciona a estarmos inerentes aos efeitos tanto da preferência pela liquidez da política externa norteamericana quanto do principio da demanda efetiva que pauta a visão chinesa de estratégia internacional. Quem se dá conta disso?

* Originalmente publicado no “Jornal dos Economistas” (CORECON-RJ) nº 295/Fevereiro de 2014