Um dos momentos mais tocantes no filme Diários de motocicleta, de Walter Salles, que narra a viagem do jovem Ernesto “Che” Guevara pela América do Sul na companhia do amigo Alberto Granado, é quando “Che” visita um leprosário da Amazônia peruana. Ainda estudante de medicina, Guevara, na noite em que comemora seu aniversário, atravessa um pequeno rio que separava os leprosos da convivência com outras pessoas e vai visitá-los. Um gesto de grandeza humana de quem estava prestes a se tornar um médico.

Essa aventura dos dois amigos argentinos se dá no ano de 1952, tempos antes de Guevara integrar-se à luta guerrilheira de Sierra Maestra em Cuba, sob o comando de Fidel Castro, revolução socialista vitoriosa e que mudou corações e mentes no mundo inteiro.

Alguns fatos e acontecimentos históricos menos ou mais relevantes são assim: trazem, com maior ou menor intensidade, os indícios de alguma transformação social significante. Configuram uma inflexão nos caminhos do homem e prenunciam novas alternativas para a humanidade. Os exemplos nesse quesito serão inúmeros e desnecessários, mas a lembrança dessa possibilidade nos remete à atual fase do desenvolvimento capitalista, bem como seus reflexos para o mundo atual, onde a exploração do homem pelo homem adquiriu novos e sofisticados contornos.

No Brasil de hoje, alguns desses fatos e acontecimentos mais recentes têm sido debitados, a meu ver, a dois fatores políticos e sociais de relevância: os quase doze anos de governo do Partido dos Trabalhadores por um lado e a tentativa oposicionista de interromper a caminhada vitoriosa desse governo, sob inúmeros aspectos, em particular os sociais.

Já é sobejamente conhecida a fúria com que alguns dos setores mais conservadores da sociedade brasileira atacam os doze anos de governos petistas em âmbito federal. E esses setores não só estão representados majoritariamente em partidos como do PSDB, DEM, parte do PMDB e o penduricalho PPS. Contudo, não bastasse a verborragia, normalmente vazia de significados e argumentos sólidos de deputados e senadores de tais partidos, há uma vez mais que chover no molhado: o verdadeiro e mais articulado dos partidos de oposição, no entanto, é conhecido já há algum tempo entre nós pela sigla PIG, o “Partido da Imprensa Golpista”.

É na redação de telejornais, revistas e jornalões da mídia brasileira que a matilha de cães hidrófobos é solta por seus patrões atrás dos ossos da discórdia, onde é possível identificar até alguns imortais da pior cultura brasileira, aquela que é preconceituosa, racista e de traços marcadamente fascistas.

Junte-se a isso os radicais de esquerda das novas gerações, muitos deles portadores de uma espécie de ejaculação precoce quanto à necessidade de transformação do país e que, na ânsia de um orgasmo revolucionário, mais atrapalham do que ajudam, por vezes oferecendo argumentos à tal matilha para a sua empreitada contra o novo Brasil, cujo parto tem sido dos mais difíceis.

O atual episódio envolvendo o programa “Mais médicos” é emblemático: trouxe à tona a síndrome do grande romance de Robert L. Stevenson O médico e o monstro, liberando em boa parte da classe média e médica, insuflada e acobertada pela matilha, o seu lado mais egoísta e irracional, transformando uma questão humanitária num palavrório do mais baixo grau político e ideológico.

É triste perceber, em pleno século XXI, que o Brasil ainda acoberta em suas entranhas gente tão desclassificada e hipócrita, incapaz de olhar o país com olhos mais justos e minimamente solidários para com os mais necessitados. Não são os mesmos que criticam a questão da saúde no país? Que debochada e incivilizadamente sugerem que a presidente Dilma vá tratar o seu linfoma em Cuba? Não são os que repetem como papagaios o que reproduz o esgoto midiático, cujo nível de conhecimento da realidade em que vivem não ultrapassa as páginas de um Almanaque Capivarol?

Sinto calafrios quando penso que os representantes políticos dessa corja possam algum dia voltar ao poder político no Brasil. Já basta ver o que fazem no governo do Estado de São Paulo, onde se praticou e pratica a maior corrupção e bandalheira de assalto ao erário público em proveito próprio, com o butin repartido há anos por integrantes da máquina administrativa do estado, sempre acobertados pela mesma mídia hipócrita e moralista que sistematicamente ataca os governos Lula e Dilma.

Espero, sinceramente, que o Brasil não se torne o único país do mundo que vergonhosamente repudie a missão solidária de milhares de médicos que para cá vieram de outros países, em particular os cubanos, numa atitude ímpar de egoísmo e sensibilidade para com ainda os milhares e milhares de compatriotas espalhados pelas regiões mais pobres, secularmente ignoradas pelos inúmeros monstros de jaleco branco que, ao se formarem, fizeram um juramento da boca para fora… Juramento de Hipócrates ou de hipócritas?

O episódio de Fortaleza é um tapa na cara do país, um escárnio que nos ridiculariza perante o mundo, pois apenas confirma aquilo que todos nós já sabemos: médico no Brasil, só para quem pode pagar. É doloroso ver alguns médicos de formação guevariana serem vaiados por um conjunto de Abdelmasshis.

QUE SEJAM BENVINDOS OS MÉDICOS CUBANOS!

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Izaías Almada, mineiro de Belo Horizonte, escritor, dramaturgo e roteirista, é autor de Teatro de Arena (Coleção Pauliceia da Boitempo) e dos romances A metade arrancada de mim, O medo por trás das janelas e Florão da América. Publicou ainda dois livros de contos, Memórias emotivas e O vidente da Rua 46. Como ator, trabalhou no Teatro de Arena entre 1965 e 1968. Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.