Publicado no jornal Valor Econômico de 08/03/2013

Em todo o mundo, mas especialmente nas regiões mais pobres do planeta, as mulheres personificam a força da vida que se renova diariamente no desmentido da fatalidade.

Vencer a fome para milhões de mulheres que compõe 43% da força de trabalho agrícola nos países em desenvolvimento, por exemplo, não é uma meta distante, mas uma incumbência da rotina cotidiana.

As mulheres são como voluntárias anônimas dessa que é a guerra mais devastadora e, paradoxalmente, a de mais fácil solução em nosso tempo: superar a privação alimentar que atinge um em cada oito habitantes do planeta, cerca de 870 milhões de seres humanos.

Todos os anos, adverte a Organização Mundial da Saúde (OMS), a fome sozinha mata mais que doenças como a Aids, a malária e a tuberculose juntas.

Nos países em desenvolvimento, 30% da mortalidade infantil nos primeiros cinco anos de vida tem sua origem na desnutrição.

Depende em grande parte das mãos femininas o escrutínio diário entre o alimento e a mesa nua, em milhões de lares em todo o planeta.

Cabe aos governos e instituições de cooperação internacional dar-lhes um empoderamento correspondente a esse protagonismo. Municiando-as das ferramentas, dos direitos, das políticas e dos recursos necessários à eficácia de uma vigília incansável. Insubstituível.

A compreensão do Estado sobre o papel nuclear da mulher no desenvolvimento econômico e social e o consenso político para dotá-la de instrumentos e direitos correspondentes constitui um dos mais importantes passos da luta contra a fome.

Desde a gestação, a mulher é a grande sentinela na linha de frente da luta pela justiça social. Os primeiros mil dias na vida de uma criança, entre a gravidez e os dois anos de idade, marcarão para sempre o seu desenvolvimento.

Podem significar a diferença para mais ou para menos na contabilidade sombria que hoje acumula o saldo de 2,5 milhões de crianças mortas todos os anos, enredadas numa teia de fome e privações.

Nenhum programa sério de combate à pobreza e à desigualdade será bem sucedido se não incorporar como seu aliado quem figura como o primeiro abrigo da segurança alimentar em qualquer sociedade: a mulher.

Do ventre ao leite materno, dele à primeira fruta, da primeira porção de cereal à primeira refeição completa e dela às milhares seguintes, a nutrição humana conecta-se à oferta da natureza e às restrições da sociedade mediada pelo longo e generoso cordão umbilical do zelo feminino.

Revestir a mesa da família de algum alimento, ali onde a oferta é escassa, cara e muitas vezes improvável, requer frequentemente a extensão desse instinto materno no manejo da terra, adicionado de uma intimidade carnal com o ciclo da natureza e do alimento.

No gigantesco continente africano, fronteira onde se trava a principal batalha contra a fome no século XXI, cerca de 240 milhões de pessoas formam a maior proporção de famintos do mundo, equivalente a 23% da população regional.

É no espaço rural, onde vivem 60% dos africanos, que a luta contra a tragédia assume contornos decisivos. As mulheres chefiam uma em cada quatro lares rurais na África. Na porção sul do continente, essa participação sobe a 45%.

Guerras e conflitos éticos, migrações e colapsos ambientais exacerbaram a sua presença e o seu peso na força de trabalho agrícola nos últimos anos. No Norte da África ela saltou de 30% para 43%, desde 1980. Tornou-se majoritária em alguns países, caso do Lesoto, onde corresponde a mais de 65% dos que trabalham a terra.

O aumento das responsabilidades das mulheres significa uma dupla, às vezes uma tripla jornada – no campo, na família e na comunidade. Esses compromissos adicionais nem sempre são reconhecidos, valorizados e compartilhados com os homens e frequentemente torna-se uma trava no empoderamento da mulher nas sociedades.

No chão africano, como em outras terras distantes do globo, o dia feminino nasce junto ao fogo e amanhece com os pés na roça.

A mão que semeia é a mesma que rastreia a coleta da primeira refeição e se desdobra no amparo matinal à infância, no cuidado com os animais.

Muitas vezes, é essa mesma mão que traz a novidade para dentro de casa. A produção de um queijo, um artesanato, a introdução de uma nova semente, a reprodução de um caprino, a coleta do mel – reforços preciosos de um orçamento magro e uma dieta premida pela única certeza que reveste esse universo esquecido: a inconstância do alimento.

É imperioso resguardar esse lastro da vida, sobretudo nas regiões mais pobres, onde a infância e a adolescência femininas estão sendo capturadas precocemente pelo redemoinho da sobrevivência.

Mais de 61 milhões de meninas com idade entre cinco e 14 anos trabalham na agricultura atualmente, lembra a OIT.

Paradoxalmente, em todas as latitudes, são as mulheres que amargam um acesso mais restrito à propriedade jurídica da terra, que por extensão afeta seu direito ao crédito e aos insumos necessários à maximização de um esforço superlativo na cadeia comunitária.

A equiparação desses direitos e acessos, de modo a fechar o hiato de gênero na agricultura das nações mais vulneráveis, figura como uma das mais importantes políticas de segurança alimentar a serem implementadas por governos e instituições voltadas à cooperação internacional.

Não só contra a fome.

Sobretudo nas condições difíceis da luta pela sobrevivência em países pobres e em desenvolvimento, as mulheres frequentemente são quem impelem sociedades à busca da paz, cooperação, da segurança e da solidariedade.

José Graziano da Silva é diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO)