Publicado na Folha de S. Paulo de 6/3/13

Hugo Chávez comentou certa vez que se via como figura de transição na história venezuelana. O mesmo pode ser dito em relação a seu impacto na América Latina.

Generalizando bastante, os 14 anos de seu governo cobrem o mesmo período em que a região adotou um etos econômico de crescimento com inclusão social, um consenso político em favor da prática democrática e, na política externa, uma postura de independência em relação às prioridades de segurança nacional dos Estados Unidos.

Chávez aderiu radicalmente a cada um desses elementos da nova América Latina. Seu gosto pelo teatral, pela retórica inflamada, com certeza destoava da preferência regional pela procura de soluções mais pragmáticas. Os historiadores que se debruçarem sobre o período dentro de algumas décadas vão dispor de ferramentas mais amplas para avaliar mais profundamente o legado de Chávez.

Por ora, um olhar rápido sobre seus sonhos não realizados e sobre as conquistas que ele de fato alcançou apontam para um legado que também poderia ser descrito como transicional.

No campo dos sonhos não concretizados, e essa lista não é abrangente, a maioria teria exigido muito dinheiro e participação de muitos outros países da região. Podemos incluir nessa categoria o Oleoduto do Sul, que teria 8.000 km de extensão, custaria US$ 25 bilhões e levaria óleo do Orinoco à Patagônia.

O Brasil fez objeções. Mesmo uma ideia um pouco mais modesta -um oleoduto até Cuba- nunca decolou.

O Banco Sul-Americano de Desenvolvimento teve destino similar -inaugurado em 2009, desta vez com o apoio nominal do Brasil, no final nenhum país, nem a própria Venezuela, investiu capital para lançar a empreitada.

As realizações: Chávez merece crédito pelo menos parcial por ter ajudado a redefinir a arquitetura institucional da América do Sul. O Mercosul é uma organização diferente do que era antes de a Venezuela tornar-se membro pleno. O tempo dirá se a estratégia do Brasil nessa frente foi um toque de sabedoria política real ou se foi movida por pura ideologia (creio na primeira alternativa).

Contrariando a visão de alguns observadores, Chávez tampouco implodiu a Unasul, instituição que já pode ser vista como ao menos parcialmente responsável por ter evitado conflitos -pense em Bolívia, Equador, Colômbia.

Com relação à América do Sul, apesar das exibições bombásticas nas cúpulas, Chávez sofria pressões para jogar segundo as regras em evolução da região, e não o contrário.

A Alba -união de nove países “quase-mais-ou-menos” bolivarianos, como a Venezuela- é evidentemente a grande vitória de Chávez, uma que poderá conferir a presidentes venezuelanos futuros uma influência constante nas Américas, especialmente no Caribe.

Ainda não dispomos de dados públicos confiáveis, mas é seguro afirmar que Caracas gastou bilhões com projetos de desenvolvimento na Alba, especialmente projetos relacionados ao petróleo.

A Petrocaribe concedeu aos membros da Alba, além de cinco outros países participantes da América Central e do Caribe, preços preferenciais nas importações de óleo venezuelano, pagáveis em 25 anos com juros de 1%.

As transferências dos fundos da Venezuela de assistência à Alba complementaram os Orçamentos de governos centrais, gerando benefícios diretos que foram sentidos para além do patronato político, sob a forma de novas rodovias, saúde e grades energéticas.

Alguns benefícios escolhidos a esmo: a Telesur, o cancelamento da dívida do Haiti, o financiamento de muitos milhares de cirurgias oculares em países da Alba, realizadas por médicos cubanos.

Dois países na América Latina se destacam: Cuba e Colômbia. Independentemente de como avaliamos o modo como o ex-presidente colombiano Álvaro Uribe conduziu a contrainsurgência contra as Farc, Chávez não a facilitou.

Os dois líderes optaram pela polarização e a crise como seu “modus operandi”. Mas o atual presidente colombiano, Juan Manuel Santos, vem mostrando como usar a interdependência geográfica e comercial da Colômbia com a Venezuela para beneficiar a Colômbia.

E, ao convocar Cuba para exortar Chávez a empurrar as Farc para a mesa de negociações, Santos demonstrou possuir um entendimento agudo do equilíbrio de poder no relacionamento entre Havana e Caracas.

LIGAÇÃO COM CUBA

Especialmente desde 2004, quando Chávez venceu o primeiro referendo pós-golpe, o incentivo econômico dado por Caracas a Havana exerceu impacto enorme em Cuba: bilhões vindos do petróleo em subsídios, transferências de recursos e investimentos diretos em energia, infraestrutura, etc.

Dezenas de milhares de assessores cubanos -nas áreas de saúde, esportes e segurança-, pelos quais Havana foi paga em dinheiro e créditos, foram essenciais para ajudar Chávez a erguer e reforçar sua base política e institucional.

E Chávez tomou de Fidel a tocha anti-imperialista em nível internacional, demonstrando prazer em espicaçar Washington.

Quando Fidel adoeceu, em 2006, as primeiras fotos dele foram com Chávez a seu lado no hospital. Mas seria um equívoco concluir que Hugo Chávez tenha tido alavancagem política ou econômica sobre Cuba.

A verdade é inversa. Vejo o relacionamento Cuba-Venezuela em três períodos distintos. O primeiro é anterior ao período de Chávez e data da fuga pós-1959 de oficiais militares cubanos da era de Fulgêncio Batista para Caracas, onde trabalharam para a CIA e com colegas venezuelanos como retaguarda durante a Baía dos Porcos e a Operação Mangusto.

A segunda fase teve início em 1992, quando o coronel Chávez fracassou em sua tentativa de golpe militar, mas, jurando retornar um dia, embarcou para Havana, onde ele e Fidel iniciaram seu relacionamento estratégico.

A fase três ganhou definição em 2002, com a tentativa de golpe contra o próprio Chávez, e se consolidou após 2004, quando Havana exerceu um papel muito significativo, não apenas por enviar seus profissionais para trabalhar nas “misiones”, mas também ao encorajar e ajudar Chávez a institucionalizar e consolidar seu poder.

Enquanto o benefício econômico para Cuba ainda é enorme, não se deve subestimar a influência de Havana sobre Caracas sob Chávez.

E a fase quatro? Os sucessores de Chávez -em seu próprio partido, ou não, se de algum modo Henrique Capriles vencer uma nova eleição presidencial no curto prazo- não vão desfazer rapidamente as camadas de aproximação bilateral e regional. Os pobres venezuelanos, cuja adesão a oposição agora compreende que precisa conquistar, auferem benefícios diretos das “misiones”, algo que não seria possível sem Cuba.

A Alba e a Petrocaribe vão se dissolver após Chávez? A resposta a essa pergunta é “não imediatamente”, o que, para Cuba, novamente significa que será possível prever a manutenção do status quo, mesmo que modificado, no curto a médio prazo.

JULIA SWEIG é diretora do Programa América Latina e do Programa Brasil do Council on Foreign Relations.

Tradução de CLARA ALLAIN