Artigo publicado na edição 109 da revista Teoria e Debate

(…) Podemos ser dirigidos por la prensa sin advertilo. Y no existe en ningún diário la información por la información; se informa para orientar en determinado sentido a las
distintas clases e capas de la sociedad, y con el propósito de que esa orientación llegue a expresarse en acciones determinadas.
Periodismo y Lucha de Clases, de Camilo Taufic, Akal Ediciones, 1976, pág. 7

Dia 2 de fevereiro de 1951.
Palácio Rio Negro, Petrópolis.
Primeira reunião do ministério de Getúlio Vargas, recém-eleito, na qual seriam anunciadas as diretrizes centrais do novo governo.
Só dois jornalistas presentes: um repórter da Agência Nacional e Samuel Wainer. Iniciava-se, com ferocidade, a conspiração do silêncio da grande imprensa contra Getúlio. O silêncio ensurdecedor foi o primeiro movimento, não o último.
Getúlio certamente percebeu.
Fim da reunião, Wainer é convidado a ficar e jantar com a família.
Terminado o jantar, é chamado por Getúlio à sala de despachos, vasto salão que o presidente usava para conversas reservadas. Falava sempre entre baforadas de charuto e caminhadas de um lado para outro. Iniciou a conversa com rememorações.
– Tu te lembras de uma frase que disseste no dia em que começamos a campanha?
– Não, presidente – respondeu Wainer. Getúlio puxou-lhe pela memória:
– Era uma frase sobre jornalismo.
Wainer lembrou-se. Voava com o presidente do Rio de Janeiro para o Amazonas e lhe disse:
– Presidente, a imprensa pode não ajudar a ganhar, mas ajuda a perder.
Dissera mais:
– Perceba que sou o único jornalista destacado para cobrir sua campanha. Note que a do brigadeiro Eduardo Gomes mobiliza pequenas multidões de repórteres e fotógrafos. Toda a grande imprensa está contra sua candidatura.
– Não preciso da grande imprensa para ganhar – retrucou Getúlio na conversa a bordo do avião.
O presidente pensava em Franklin Roosevelt, que nunca tivera apoio dos jornais americanos e sempre vencera as eleições. Pensou e disse.
Wainer ponderou:
– Presidente, ao contrário do que ocorre em países como os Estados Unidos, no Brasil a imprensa tem um fortíssimo poder de manipulação sobre a opinião pública. Não é fácil enfrentá-la.
E completou com a frase que o presidente pretendia que ele lembrasse:
– A imprensa pode não ajudar a ganhar, mas ajuda a perder.

Getúlio, entre as baforadas de charuto e as passadas pelo salão, perguntou:
– Tu reparaste que hoje não veio ninguém cobrir a reunião?
– Claro que reparei. Hoje foi desencadeada a conspiração do silêncio.
E Wainer acrescentou, ainda:
– O senhor só vai aparecer nos jornais quando houver algo negativo a noticiar. Essa é uma tática normal da oposição, e a mais devastadora.
O presidente não parava de caminhar, e fumava seu charuto, e queria dizer alguma coisa conclusiva, e disse:
– Por que tu não fazes um jornal?
Wainer, perplexo, e feliz, reagiu:
– Presidente, isso é o maior sonho de um repórter como eu. Não seria difícil editar uma publicação que defendesse o pensamento de um governante como o senhor, que tem o perfil de um autêntico líder popular.
Getúlio foi taxativo:
– Então, faça.
Wainer perguntou:
– O senhor quer saber como faria?
– Não – Getúlio respondeu prontamente.
E acrescentou:
– Troque ideias com a Alzira e faça rápido.
– Em 45 dias, dou um jornal ao senhor – reagiu Wainer.
– Então, boa noite, Profeta.
– Boa noite, presidente.
Samuel Wainer, até ali, notabilizara-se como um repórter brilhante, raro, cuja maior façanha fora a entrevista que fizera com Getúlio, no Rio Grande do Sul, na fazenda Santos Reis, de propriedade de um dos irmãos dele, Protásio.
Nela tirou do presidente a afirmação categórica – “Eu voltarei como líder de massas” –, senha que indicava sua candidatura à Presidência, depois de todo aquele tempo de ostracismo. Era fevereiro de 1949.
A entrevista, publicada pela cadeia dos Diários Associados, teve uma repercussão extraordinária. Em outubro de 1950 Getúlio se elegia, voltava como líder de massas e presidente da República, e Wainer permaneceria ao lado dele, apesar de alguns desencontros, até o suicídio.
Naquele fevereiro de 1951, Samuel Wainer, 39 anos, não tinha a exata dimensão da grandeza daquele sonho de criação de um jornal nem, provavelmente, de toda a dimensão da tempestade que se abateria sobre sua vida. Ao propor que conversasse com Alzirinha, sua filha querida e extremamente ativa, Getúlio havia dado o sinal verde para a empreitada.
Viver é correr riscos, Wainer sabia disso, e iria arriscar. Encontrara sua razão de viver: o jornal Última Hora, que começou a ser concebido em março de 1951 e ganhou as ruas em 12 de junho do mesmo ano. Rapidamente, tornou-se um impressionante sucesso, graças, sobretudo, à criatividade dos jornalistas que o produziam e à capacidade de Wainer, seu espírito de liderança e sua coragem.
E, também, porque Última Hora não escondia ser uma publicação a favor de Getúlio, reconhecidamente uma liderança popular.
O jornalista sabia que não ia enfrentar moinhos de vento, mas monstros verdadeiros, uma realidade adversa, poderosos interesses, encarnados em robustas famílias oligárquicas que dominavam a imprensa brasileira, como infelizmente até hoje. Teve de enfrentar até uma CPI, cuja motivação exclusiva era a criação do jornal que dirigia, sob a acusação de que recebera recursos do Banco do Brasil, como se os outros órgãos de comunicação não o recebessem rotineiramente.
Só ele não podia receber empréstimos de banco oficial, só com ele se transformava em escândalo. A direita brasileira, Carlos Lacerda à frente, sabia como utilizar-se da mídia para tentar atingir o coração de um projeto reformista em andamento.
Lacerda era dono da Tribuna da Imprensa, que nascera graças à ajuda da Igreja Católica e de alguns empresários amigos, mas nunca se tornara um jornal influente. Sua voz só ganhou ressonância quando Roberto Marinho franqueou-lhe os microfones da Rádio Globo e Chateaubriand, as telas da TV Tupi. Foi com o poderio desses aliados, sobretudo, que ele bombardeou o Última Hora, sem nunca se preocupar com a veracidade dos fatos, esgrimindo sua incomparável capacidade de caluniar.
O jornal mais influente, então, e pouca gente hoje se lembra disso, era o Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, cujo dono era o violento, arrogante e irascível Paulo Bittencourt. Todos os meios de comunicação se uniram contra o Última Hora, intruso indesejável naquele seleto clube. E o que, de pronto, incomodou o clube de elite da imprensa brasileira foi o impressionante sucesso do novo jornal, cuja tiragem rapidamente alcançou ou ultrapassou a dos concorrentes.
No lançamento da Última Hora no Rio Grande do Sul, o encarregado da saudação, depois dos habituais elogios, ressalvou que o jornal só havia se viabilizado com a ajuda do governo federal. Wainer, tímido no uso da palavra, resolveu falar, que ficar calado era levar desaforo pra casa. Depois de abordar as dificuldades do empreendimento, cujo auxílio havia sido muito menor do que aventara o jornalista gaúcho, disse:
– Quero aconselhar a todos que me ouvem a se tornarem donos de jornal. Não há nada melhor no Brasil.
– Afirmei, e passei a oferecer exemplos ferinos, sem mencionar nomes. Não era necessário: todos sabiam de quem eu falava. “Um dono de jornal pode ser alcoólatra e será tratado pela sociedade como homem sóbrio”, exemplifiquei. Era Paulo Bittencourt. Pode ser um assassino, e será recebido como cidadão respeitável. Era Tenório Cavalcanti, dono da Luta Democrática. Pode ser um gângster, e será encarado como exemplo de austeridade. Era Assis Chateaubriand. Enfim, pintei o dono de jornal como uma pessoa acima do bem e do mal, fora do alcance da lei. Era nesse clube que eu tentaria entrar em 1951, sem saber com precisão o que me aguardava.
Carlos Lacerda perseguiu Wainer implacavelmente. Wainer e o jornal Última Hora, indissociáveis. E, ao fazer isso, tinha um objetivo central: atingir Getúlio. Era um golpista convicto, o que lhe importava eram os fins. Os meios, ora, os meios. Nunca se incomodou com a veracidade dos fatos. Lacerda era a voz da direita, a personificação do conservadorismo brasileiro. Brandia seu verbo brilhante, elevado às alturas pelo restante da imprensa, irmanada contra Getúlio, fundado num moralismo visceral, hipócrita, e quase sempre mentiroso, sem qualquer fundamento. As vestais sempre agem assim.
O udenismo tardio que nos assalta frequentemente, querendo atingir Lula, vem de lá, com as mesmas características, com a mesma falta de compromisso com a verdade, embora hoje não carregue, por falta de atores à altura, o brilho dos ataques de Lacerda. São apenas espectros do “Corvo”, apelido apropriado com que Wainer o brindou, sequenciado por outro, “Mata-Mendigos”.
A luta que se processou, ali, no território do jornalismo – que era, sem dúvida, também, inseparavelmente, o da política – envolveu, de um lado, como já dissemos, um jornal que se colocara ao lado de um projeto político em andamento, o Última Hora, e, de outro, o restante da imprensa brasileira, convicta de seu pensamento conservador, protagonista das lutas contra quaisquer avanços reformistas, contra melhorias salariais para os trabalhadores, contra a reforma agrária, contra o controle do petróleo pelo Estado, contra as liberdades sindicais, contra a soberania do país.
A mídia hegemônica no Brasil guarda essa característica de há muito – nunca admitiu avanços sociais, propostas de reformas progressistas, nenhum governo que tivesse qualquer matiz de esquerda.
O restante da grande imprensa se constituía em outro projeto político. A imprensa hegemônica era, como é, o sustentáculo do que havia de mais atrasado e conservador no Brasil, e o Última Hora pagou o preço de ir na contramão disso, e apoiar Getúlio. Um preço alto.
Os meios de comunicação dominantes não aceitavam qualquer intruso, e não por ser intruso apenas, mas sobretudo porque era um protagonista com ideias diferentes daquele bloco, o avesso daquele bloco. O ataque de que foi vítima pode, também, ter sido provocado pelo fato de Wainer ter valorizado a redação, começado a pagar salários dignos a seus profissionais, atraído figuras destacadas do jornalismo brasileiro, como Paulo Francis e Nelson Rodrigues. A vida como ela é: foi provocado por tudo isso.
O aspecto principal do ataque ao jornal Última Hora, no entanto, foi o fato de estar ao lado do projeto político que Getúlio Vargas iniciara em 1951, pretendendo dar continuidade ao que começara entre 1930 e 1945, cuja nódoa era a ditadura entre 1937 e 1945. Agora, vinha como líder de massas e abençoado pelas urnas um Getúlio democrático e com um projeto político mais avançado, o que exasperava ainda mais a direita brasileira.
Última Hora não escondia que apoiava Getúlio, sem, no entanto, deixar de lado o apuro jornalístico, a criatividade, o respeito aos fatos. Isso era uma afronta àquelas poucas famílias que haviam se apoderado dos instrumentos de construção da opinião pública no Brasil, famílias que se sentiam no direito de conspirar contra governos legítimos, como no caso do de Getúlio.
E como será logo depois, com a tentativa de não permitir a posse de Juscelino.
E como será em 1964, quando conduz, com os militares, o golpe que cobriria a Nação com um manto de terror e dor.
É assim hoje, há uma década, desde 2002, quando Lula ganhou as eleições presidenciais. Observo, de passagem, e tenho insistido nisso, que somos o único país do mundo em que o alvo principal da oposição é um ex-presidente. Uma característica a ser registrada, a favor de Lula.
Durante todo o segundo governo de Getúlio, Wainer foi perseguido como um cão danado por toda a imprensa e especialmente por Carlos Lacerda, e era perseguido assim com o objetivo central de atingir Getúlio, o verdadeiro alvo de toda essa operação midiática, que tinha respaldo militar. A mídia, quando isso cabia, em clima de Guerra Fria, nunca se envergonhou de ser vivandeira de quartéis. Hoje, felizmente, os quartéis não estão abertos para o assalto midiático.
Wainer foi objeto de uma feroz CPI – e ele confessa que errou ao patrocinar a criação dela, acreditando na superioridade da base aliada de então, que o abandonou às feras. Foi acusado de não ser brasileiro, de favorecimento por bancos oficiais. Foi condenado e preso, e tudo isso, rigorosamente, por ter ousado criar um jornal que se dispôs, desde o início, a defender aquele projeto político, com a clareza de que seria a única publicação a fazê-lo, ao menos a única em condições de confrontar a mídia hegemônica.
O jornal sobreviverá até o meio-dia de 21 de abril de 1972, antes de chegar à maioridade dos 21 anos. A venda se consuma por US$ 1,5 milhão, feita a um grupo de empreiteiros liderado por Maurício Alencar, que já havia arrendado o Correio da Manhã. Passara pela tentativa de golpe contra Juscelino, pelo governo do próprio Juscelino, pelo efêmero Jânio Quadros, pelas turbulências do governo Goulart, até sentir se abater o terror da ditadura sobre o país.
O momento heroico da trajetória do Última Hora, no entanto, foi inegavelmente o governo Getúlio, quando foi protagonista da história, quando estava na barricada em defesa de um projeto político, combatendo o outro partido, o da mídia hegemônica, de cuja trincheira partiam os ataques mais violentos e mortíferos contra o presidente Getúlio Vargas, até conseguir com que ele, para não passar à história como covarde, desse um tiro no coração e adiasse o golpe por dez anos.
Wainer, que morreu em setembro de 1980, conseguiu terminar a existência podendo se orgulhar de não ter se acovardado diante dos desafios de seu tempo. Como o fizera, a seu modo, o líder que ele mais admirou, Getúlio Vargas.
Talvez, para lembrar a grandeza do jornal, caiba lembrar sua atuação nos instantes finais de Getúlio.
Luís Costa, plantonista no Catete, chama Wainer ao telefone, aos prantos, entre soluços, na manhã do dia 24 de agosto de 1954:
– O presidente acaba de dar um tiro no coração.
Wainer corre para a oficina do jornal, onde o clima era de absoluta comoção, operários em lágrimas, outros desmaiados. À cabeça de Wainer, que não perdia o senso político e o espírito jornalístico, veio a manchete do dia anterior:

Só morto sairei do Catete
Refletiu alguns minutos, poucos. A manchete, incrivelmente forte, continuava lá, intacta, composta em chumbo. À época, para que se entenda, havia o hábito de guardar algumas páginas na estante para a eventualidade de republicar alguma coisa.
Assaltou-lhe a ideia de republicar aquela histórica primeira página exatamente como saíra na véspera. Mas como? Como fazer a ligação com o suicídio, um dia depois? Decidiu.

“Ele cumpriu a promessa.”

Só morto sairei do Catete

Logo abaixo, Wainer descreveu o suicídio do presidente. Wainer foi testemunha, naquele dia, da reação cheia de ódio, de indignação do povo que apoiava Getúlio, que saiu pelas ruas do Rio de Janeiro atacando todos os jornais inimigos do presidente morto. E procuravam por Lacerda. Ao contrário do que imaginava a direita raivosa, a população sabia de quem era a culpa pelo suicídio. Essa ideia de construção da opinião pública pela imprensa deve ser sempre relativizada, medida, pesada e sopesada. Nunca se está lidando, como às vezes se pensa, com um rebanho de cordeiros, como imaginava a imprensa de ontem, e como raciocina a mídia de hoje.
Wainer chegara a escrever um minieditorial em que conclamava a que se mantivesse a calma. Temia que a direita pudesse usar isso para esmagar as massas desesperadas. Tão grandes foram as manifestações que não houve condições para que os militares tentassem nada.
O único jornal que pôde circular foi o Última Hora, que no dia vendeu perto de 800 mil exemplares. A oficina não parava de trabalhar. O povo nem sequer esperava que o jornal chegasse às bancas – retirava-os à força dos caminhões distribuidores.
Wainer comandava tudo, emocionado mas firme. Via os outros chorando, copiosamente.
E ele, impassível. Quando percebeu que a operação caminhava bem, saiu da oficina, foi para a redação, para um canto de sua sala, e chorou, chorou, e chorou.
Era o fim de Getúlio, a quem devotara sincera amizade e admiração durante anos, o fim do homem que ele tirara do ostracismo para ser líder de massas e presidente da República.
No choro, e todos os seus companheiros de redação fizeram questão de deixá-lo sozinho para chorar em paz, certamente pensava que as mãos da imprensa hegemônica brasileira daquele momento, daquele partido político que fez de tudo para derrubar o presidente, estavam sujas de sangue. Sabia, e não tinha compaixão por isso, que por mais que lavassem as mãos aquele sangue jamais desapareceria.

Nota: A quem quiser conhecer mais profundamente a trajetória da Última Hora, além de quaisquer outros livros, sugiro a leitura de Minha Razão de Viver, da Editora Record, longo depoimento do próprio Samuel Wainer, no qual me baseei para produzir este texto. As memórias foram ditadas em três etapas e somam 53 fitas gravadas. Na primeira, iniciada em janeiro de 1980, foram coordenadas por Sérgio de Souza, um dos mais brilhantes jornalistas que conheci, da qual resultaram 35 fitas. Na segunda, e ainda sob a coordenação de Sérgio, mais quatro fitas. E na terceira, conduzida por Marta Góis e finalizada em agosto de 1980, mais catorze fitas.

Emiliano José é professor doutor (aposentado) em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia, jornalista, escritor e integrante do Conselho de Redação de Teoria e Debate