Trata-se de uma realidade que muitos insistem em observar de forma ideologizada e tacanha. Exemplo disto foi a discussão em torno do novo Código Florestal onde, de forma maniqueísta, plantou-se uma separação de um lado entre os defensores do agronegócio, tidos como os “lobos-maus” da destruição do meio-ambiente e do atraso político, e de outro lado setores ditos progressistas sob os vestais de ONG`s estrangeiras, acadêmicos de prestígio, movimentos tidos como “sociais”, artistas etc.

Do ponto de vista da chamada opinião pública, o segundo grupo obteve algum êxito no desvio de foco da discussão ao trazer o debate para o campo da moral em detrimento do que realmente interessa ao Brasil e seus interesses, notadamente no enfrentamento de uma guerra comercial imposta pelos países ricos a nossa agricultura e à própria questão da soberania alimentar brasileira.

O desvio de foco da discussão proposta pelo novo Código Florestal não se resumiu a uma questão moral, pura e simplesmente. O debate demanda um outro nível de discussão que envolveria uma verdadeira unidade de contrários entre a necessidade de defesa de nossa agricultura diante da agressiva política de subsídio aos agricultores nos países centrais e a cada vez maior dependência brasileira de exportação de commodities diante de um quadro de um amplo recuo da participação da indústria no PIB que chegou ao menor índice desde a década de 1950.

Diante da realidade de um país em processo de reprimarização de sua pauta de exportações é que devemos iniciar esta discussão sobre os efeitos sobre o Brasil da oscilação dos preços das commodities no mercado internacional. Mais do que isso, é importante situar este processo partindo de algumas tendências, entre elas: 1) ao aprofundamento da tendência de deteriorização dos preços de troca (Prebish) em um ambiente onde existe de fato um amplo mercado para nossos produtos (China); 2) o papel do mercado de preços futuros e 3) na formação de amplos oligopsônios internacionais sob o rótulo de traders.

Sobre a relevância cumprida tanto pelo mercado de preços futuros e dos traders não restam dúvidas acerca da capacidade, por parte destes agentes, de inflacionar preços. A especulação é um fenômeno objetivo e que opera sob tendências, também, objetivas. Como em tudo na esfera da economia, o mercado e, respectivamente, a lei da oferta e da procura são cada vez mais parte de um passado que na atualidade só existe vivo nas hostes do ultraliberalismo anticientífico. No caso do preço das commodities, a existência de amplos mercados em expansão (China e Índia, por exemplo) acrescida de fenômenos climáticos, por si, já se constituem num relevo para a especulação e a oligopsonização.

Neste sentido é importante neste momento nos atermos ao que vem da China, ainda mais diante de uma realidade que adentra num processo de transição com amplos impactos no mundo. De forma mais específica, cabe a pergunta: Qual o papel da China na oscilação dos preços das commodities e os impactos da demanda do gigante asiático à agricultura brasileira?

De imediato sugiro calma diante desta chamada desaceleração chinesa. É fato que os chineses não crescerão mais da forma que cresceram até a eclosão da crise. Mas isso não significa que a demanda chinesa por commodities deverá diminuir no médio e longo prazo. Para o Plano Quinquenal em execução (2011-2015) a expectativa de crescimento é de 7%, sendo que no presente ano será de 7,5%. Esta “desaceleração” nada mais é do que uma transição de um crescimento de tipo quantitativo para outro qualitativo e mais baseado em setores industriais de alta tecnologia, no consumo popular e principalmente na planificação de uma urbanização que incorporará cerca de 100 milhões de chineses em grandes centros urbanos até o ano de 2020.

Dois fatores internos a esta rápida urbanização merecem atenção. O primeiro baseado na mudança dos hábitos de consumo. Serão 100 milhões de pessoas que deverão aumentar o peso das proteínas em sua cesta diária de alimentação. Prevê-se que em 2015 o consumo médio de carne bovina deverá atingir 10 quilos per capita, sendo que o atual é de 6,7 quilos. Para fins de ilustração, a população rural da China é de 600 milhões de pessoas. O consumo médio anual de carne bovina desta população é de 26 quilos. Na cidade, onde o poder de compra é seis vezes maior do que no campo, o consumo é de 50 quilos. A China importa 20% do que consome em matéria de carne bovina e certamente, confirmada esta previsão, as importações podem aumentar, tendo o Brasil como potencial beneficiário.

Faz-se necessário, para fins de informação, abrir um necessário parêntese. Pois bem, mas estaria a China assistindo a este movimento de aumento de dependência de importações de produtos alimentícios sem providenciar políticas internas de incentivo a este tipo de indústria? A resposta é não. A transformação da estrutura industrial chinesa nos últimos 30 anos foi acompanhada de uma rápida transformação na estrutura agrícola, sobretudo na produtividade do trabalho. A produção de cereais tem batido recordes anuais desde 2004. De acordo com a Agência Nacional de Estatísticas, em 2011, a China obteve um recorde de 571,21 milhões de toneladas de grãos (diga-se de passagem, uma produção quase cinco vezes superior à brasileira), um aumento de 4,5% com relação ao ano anterior; movimento este que ocorre concomitante com a diminuição das terras em condições de plantio, sugerindo que o fator tecnologia, aliado com incentivos à produção tem produzido resultados satisfatórios. Exemplos ilustrativos estão inseridos na produção de carne bovina e de peixe. Em 1978 a produção de carne bovina foi de 8,56 milhões de toneladas, enquanto que em 2008 foi de 72,78. No que cerne a produção de peixe, o salto foi semelhante: Em 1978 a produção de carne bovina foi de 4,6 milhões de toneladas, enquanto que em 2008 foi de 48,95 (1).

O enfrentamento recente do problema da produção de alimentos na China não se restringe a incentivos e/ou subsídios. Tenho em mente que existe um processo de mecanização e cooperativização da agricultura chinesa em ampla escala. Aliás, a prioridade máxima do governo chinês está na modernização das zonas rurais e a pedra de toque deste processo está na meta de fusão, até 2020, das cerca de 30.000 pequenas cooperativas de crédito rural em sete grandes bancos de desenvolvimento voltados à agricultura. Creio que a chave da compreensão do futuro da Revolução Chinesa está, além dos desafios no campo internacional, muito mais ligado a este processo de transição de uma agricultura rústica, familiar para outra de nível superior. Em outro momento poderei discorrer melhor sobre este fenômeno que se relaciona diretamente com a unificação econômica do território chinês, num processo semelhante ao ocorrido nos Estados Unidos na segunda metade do século XIX.

Este processo em andamento na estrutura rural ocorre de forma simétrica com o segundo fator apontado mais acima na construção de infraestruturas novas em matéria de transporte e energia anexa ao processo de urbanização. Há quem acredite que essa massa rural deva se dirigir aos grandes centros urbanos do litoral, constituindo um teratológico exército industrial de reserva amontoado em grandes favelas. Não é verdade, assim como é verdadeiro o fato de China não possuir favelas. Uma das características da urbanização com características socialistas na China está no fato de o dito exército industrial de reserva estar localizado não na periferia das cidades e sim no vilarejo rural, onde geralmente tem seu pedaço de terra concedido pelo Estado. A industrialização é um fenômeno rural na China e este dado serve de parâmetro para compreender que o avanço da urbanização e a demanda por commodities como ferro e petróleo dão-se nos marcos de formação e construção de 156 novas cidades no interior chinês. É evidente e claro que a capacidade financeira do Estado Nacional chinês em alavancar este ambicioso projeto aprofundará os impactos por todo o mundo, incluindo os preços das commodities. Neste sentido, é bom informar o atual Plano Quinquenal vigente prevê a expansão de linhas de metrô em 75 cidades, a criação de 50 milhões de empregos urbanos e a construção de 36 milhões de novas residências.

Se tudo caminhar conforme o planejado pela governança chinesa estará confirmado que a propalada desaceleração não afetará, nos médio e longo prazo, a demanda por commodities. A pergunta que não deve calar é sobre o comportamento do nosso país diante deste quadro. Aprofundaremos e daremos consequência às recentes medidas industrializantes (queda da taxa de juros, desvalorização cambial, algum protecionismo, investimentos em infraestruturas etc) ou sucumbiremos tanto à tentação do combate à inflação nos primeiros sinais de alta deste índice quanto à demanda asiática por commodities.


(1) Dados extraídos do China Statistical Yearbook, para todos os anos.

*Elias Jabbour é geógrafo, doutor e mestre em Geografia Humana pela FFLCH-USP. É autor de “China Hoje: Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado” (Anita Garibaldi/EDUEPB, 2012, 456 p.) e “China: Infra-Estruturas e Crescimento Econômico” (Anita Garibaldi, 2006, 256 p.).

Fonte: Jornal dos Economistas (CORECON-RJ)