Ora, a Fraternidade Muçulmana está muito bem posicionada para se beneficiar dessa degradação e contribuir para que continue a reproduzir-se. A ideologia dos “Irmãos” legitima essa miserável economia de mercado/bazar, que anda na direção oposta à do que se exigiria para algum desenvolvimento digno do nome. Os fabulosos meios financeiros postos à disposição dos “Irmãos” (pelo Golfo) permitem traduzir aquela ideologia em meios eficazes: ajuda financeira para a economia informal, caridade (centros de cuidados médicos e assistência aos pobres e outros).

Assim, os “Irmãos” se implantam na sociedade real e a vão substituindo, impondo sempre a dependência: o cidadão passa a depender da caridade dos Irmãos. Os países do Golfo jamais tiveram qualquer intenção de apoiar o desenvolvimento dos países árabes, por exemplo com investimentos em indústrias locais. Mas apoiam a manutenção e a reprodução de um modelo de “lumpen-desenvolvimento” – para usar os termos já propostos por André Gunder Frank – que prende numa espiral descendente as sociedades afetadas; espiral de pauperização e exclusão cada vez maiores, as quais, por sua vez, amplificam e reforçam, em toda a sociedade, a influência crescente do Islã político e reacionário.

Mas esse sucesso teria sido difícil, se não respondesse perfeitamente aos objetivos dos países do Golfo, de Washington e de Israel. Esses três aliados íntimos têm hoje uma única e principal preocupação: fazer fracassar o levante dos egípcios. Porque um Egito forte e de pé marcará o fim de uma hegemonia tripla: hegemonia do Golfo (submissão ao discurso pró-islamização da sociedade); hegemonia dos EUA (o Egito miserabilizado e ‘compradorizado’ não escapará ao controle dos norte-americanos); e hegemonia de Israel (o Egito impotente não defenderá os palestinos).

 

A uniformização dos governos, submetidos ao neoliberalismo e a Washington foi brutal e total no Egito, com Sadate, mais lenta e contida na Argélia e na Síria. Em meu livro mais recente,* lembro que a Fraternidade Muçulmana – que está em rota para assumir o controle do sistema de poder – não pode ser considerada simplesmente como “partido islamista”, mas, sobretudo, como partido ultrarreacionário e, além disso, de fundamento religioso islamista. É partido reacionário não só no modo como pensa o que chamamos “questões sociais” (o véu, a Xaria, a discriminação contra os coptas), mas, também, nos domínios fundamentais da vida econômica e social: os “Irmãos” são contra greves, contra reivindicações relacionadas a melhores condições de trabalho, contra sindicatos independentes do poder do Estado, contra a redistribuição da terra, contra os movimentos de resistência à expropriação da terra etc.

O abortamento planejado da “revolução egípcia” garantiria a perpetuação do sistema implantado no Egito desde Sadat, fundado na aliança entre o comando do exército e o comando do Islã político. Claro que, assegurados no poder pela vitória eleitoral, os “Irmãos” estão em posição de exigir mais poder que o mínimo que os militares parecem dispostos a ceder. Mas não parece empreitada fácil arrancar, dessa aliança original, mais vantagens a favor dos “Irmãos”.

O primeiro turno das eleições presidenciais de 24/5 foi organizado para atender o objetivo que interessa ao sistema de poder vigente e a Washington: reforçar a aliança nos pilares do sistema, entre o comando do Exército e a Fraternidade Muçulmana; e regulamentar as diferenças que persistam entre ambos (definindo qual, dos dois grupos, ocupará a frente do palco). Os dois candidatos “aceitáveis”, nesse espírito, foram os únicos que tiveram recursos para as respectivas campanhas eleitorais. Morsi (FM: 24%) e Chafiq (Exército: 23%). O autêntico candidato do movimento – Hamdeen Sabbahi – que não recebeu qualquer ajuda extra para a campanha eleitoral, teria obtido 21% dos votos (número, ele próprio, pouco confiável).

Ao final de longas negociações, ficou acertado que Morsi seria declarado “vencedor” do segundo turno. A Assembleia, como o Presidente foram eleitos graças a massiva distribuição de “cestas básicas” (carne, azeite e açúcar) distribuídas aos eleitores que se comprometessem a votar  nos islamistas. Estranhamente, os “observadores estrangeiros” nada viram, apesar de essas ‘negociações’ serem feitas à vista de todos, por toda parte, e serem plenamente conhecidas na rua egípcia. A dissolução do Parlamento foi retardada pelo Exército, que conta com que os “Irmãos” logo perderão prestígio, ao se recusarem a abordar as questões sociais (emprego, salários, escola e saúde públicas).

O sistema como está organizado, “presidido” por Morsi, é a melhor garantia de que se manterá o crescimento em ritmo de lunpen-desenvolvimento e com a destruição das instituições do Estado – os dois objetivos que mais interessam a Washington. Logo se verá que o movimento, que nada perdeu de seu firme compromisso com as lutas por melhor democracia, progresso social e independência nacional, voltará às ruas, depois de mais essa farsa eleitoral.

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* Le monde arabe dans la longue durée, le printemps arabe ? Paris: Le temps des cerises, 2011 (http://www.decitre.fr/livres/le-monde-arabe-dans-la-longue-duree-9782841098941.html)

Fonte: Forum Tiers Monde

http://www.forumtiersmonde.net/fren/index.php?option=com_content&view=category&id=65&Itemid=142