A Rede D é um grupo em formação que pretende pensar e colocar em prática “um projeto nacional desenvolvimentista”, com definiu Carlos Lessa. Foto: Samuel Lorenzetti=

Uma árdua tarefa, reconhecem os participantes ao listar as algumas das encrencas postas na mesa: resistências ideológicas e políticas nas universidades, governos e mídia, assim como os poderosos interesses instalados, a começar pelo sistema financeiro nacional e sua histórica aversão ao risco. E, no momento, a difícil tarefa de manter o prumo em meio ao remoinho da crise financeira internacional, a embaralhar todas as cartas, e o fantasma da “primarização” irrevogável da economia brasileira, alimentado pelo boom da soja e do minério de ferro.

Reunidos em Campinas entre os dias 8 e 10 de maio, enfrentaram uma pauta ampla e complexa no seminário “Desenvolvimento e Crise Global: impactos no Brasil e na América Latina”. A maioria dos cerca de 50 experts presentes formada por economistas, alguns sociólogos, cientistas políticos e diplomatas, unidos pela crítica radical à ortodoxia neoclássica. Filiados muitos deles às escolas de economia da Unicamp e UFRJ, alguns desgarrados da FGV-SP e USP, vários de instituições do Estado, como o Itamaraty e o Ipea, e apoio financeiro do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), uma organização social ligada ao Ministério da Ciência e Tecnologia. E especialistas da Cepal, o centro de pesquisas latino-americano da ONU sediado no Chile, cuja história está intimamente ligada ao paradigma desenvolvimentista que esgrimam e pretendem ver hegemônicos no País. (A FGV do Rio não foi convidada, muito menos a PUC carioca, ambas inimigas declaradas, apontadas como o “outro” a ser esconjurado, na academia, nos jornais e TVs, enfim mundo afora.)

Um projeto com gás, devido ao crescimento recente da economia brasileira, com distribuição de renda e dólares garantidos pela exportação de commodities. Acossado, contudo, pela nova configuração do capitalismo internacional e a divisão do trabalho dele resultante, com a imbatível concorrência chinesa a se firmar como a “fábrica que restou no planeta”.

O grau zero desse imbróglio localiza-se na voracidade da finança internacional desregulamentada, surgida nos anos 1970 e início dos 80 nos EUA, que resultou em uma montanha de dólares e euros mundo afora, ávidos por bolhas especulativas, segundo comentou o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, consultor editorial de CartaCapital. “O fato mais importante dos últimos 30 anos foi o mercado financeiro norte-americano ter atraído fundos da Europa”, afirmou Belluzzo. “Foram esses fluxos de capitais que permitiram aos EUA manter as taxas de juros baixas, o que gerou a primeira bolha (ligada à internet), depois a segunda, no mercado imobiliário, e finalmente esse boom de consumo que observamos. O sentido de determinação é este: do crédito das finanças nos EUA para o gasto norte-americano. Do gasto norte-americano para a geração de déficits (nos EUA). Do déficit para a acumulação de reservas na China. E do gasto da China para o afrouxamento das restrições de balança de pagamentos no Brasil.”

Aí a origem da relativa bonança atual do País, com desemprego baixo e o crescimento acumulado nos últimos anos, com reservas de quase 400 bilhões de dólares. A despeito da barbeiragem eminentemente ortodoxa do BC de Henrique Meirelles, que aumentou os juros logo após o estouro da crise em setembro de 2008, “um erro inacreditável”, segundo a cartilha da Rede D.

Na direção desejada agiu o Ministério da Fazenda de Guido Mantega, ao usar os bancos públicos para contrapor-se à seca de crédito de 2009. E a partir dos bons resultados colhidos, inflar os ânimos das hostes heterodoxas. A eleição de Dilma Rousseff e a escolha de Alexandre Tombini para o BC deram novo alento, que agora os especialistas filiados à “escola campineira” de pensamento econômico, com o argentino Raúl Prebisch e o brasileiro Celso Furtado como patronos, buscam fortalecer.

Professor da UFRJ, Ricardo Bielschowsky chamou atenção para o fato de que as experiências desenvolvimentistas anteriores do País, no período de Getúlio Vargas e na década de 1970, souberam reconhecer as oportunidades. “Agora é a mesma coisa”, diz o economista, “existem no momento três frentes de expansão potencialmente poderosas. São três motores do investimento que estão colocados à nossa frente neste momento: aqueles movidos pelo crescimento com distribuição de renda e foco no consumo de massas, os investimentos em serviços sociais e em atividades baseadas em recursos naturais.”

O desejável, contudo, é ir além. E “governar esse processo”, diz Bielschowsky, de modo a criar uma estratégia de crescimento que renda benefícios à maioria. “A construção de um mercado de consumo de massas já surgiu. A explosão do consumo chinês por alimentos e energia, também. E há uma recuperação do investimento governamental, a começar pela Petrobras. Fica faltando a inovação, que não é uma frente em si mesma, mas é algo transversal, capaz de turbinar esses vetores.”

Ricardo Carneiro, professor do Instituto de Economia da Unicamp e coordenador da Rede D, considera que é relevante atentar para a centralidade do Estado nessa trajetória a ser esboçada. “O que move o capitalismo periférico? Certamente não são as mesmas forças que movem o capitalismo central. No caso brasileiro, boa parcela de todo o debate sobre o desenvolvimentismo tinha a ver com superar o desenvolvimento comandado pela demanda externa. É essa a reflexão de Prebisch e Furtado. Eles fizeram um grande esforço para internalizar os fatores dinâmicos do capitalismo. De um certo ponto de vista, esse pode ser o nosso debate novamente. No caso dos capitalismos avançados, é possível pensar nessa forma dinâmica que podemos chamar de desenvolvimento autônomo, o progresso técnico combinado à capacidade de financiamento. Mas no caso da periferia não dá para fazer sem o Estado. Precisamos aprender essa lição.”

Entre os dois polos de desenvolvimento bem sucedidos que se colocam, o chinês e o norte-americano, surge como consenso entre os participantes da rede que nenhuma das opções poderá ser adotada pelo Brasil. “Nem China, nem EUA”, diz Carneiro. “O modelo norte-americano é o do consumo, que supõe renda média alta e instituições capazes de financiar o consumo. É um país que conseguiu crescer nos últimos 20 anos em cima da demanda ampliada pelo crédito. E não podemos ter o padrão chinês, cujo crescimento se deu com base na produção de manufaturas em cima de salários de fome. Depois de 30 anos de crescimento, o salário industrial na China é hoje de 1,1 dólar por hora. No Brasil, um País relativamente pobre, é de 5,3 dólares por hora, cinco vezes mais.”

O “modelo brasileiro” teria de seguir a combinação de três elementos fundamentais, avalia o economista, ecoando o pensamento dos demais participantes do seminário. “Primeiro, precisamos de muito mais mercado interno do que externo. E temos duas grandes frentes de expansão, a distribuição da renda, que pode melhorar bastante, ainda que não se trate de uma força autônoma, mas de algo que aumenta a multiplicação do crescimento. E temos um campo vastíssimo que é a infraestrutura. A infraestrutura brasileira é absolutamente inadequada, defasada. E temos a terceira frente, dos recursos naturais, que vão resolver problemas de divisas e um conjunto de questões que podem ser restritivas ao crescimento.”

Ex-embaixador do Chile no Brasil, o economista Álvaro Diaz, hoje pesquisador-sênior da Cepal lotado em Brasília, considera ainda que o Brasil terá ainda de encarar a herança do período de inflação alta. “As regulações do mercado financeiro foram herdadas de décadas, como no caso da caderneta de poupança, e têm de ser desmontadas. Aí existe uma intensa economia política por trás disso. A construção de coalizões para construir um Estado que se reforme e que possa impulsionar o desenvolvimento é uma questão central. Por exemplo: na América Latina existem 10 países onde a carga tributária é inferior a 15% do PIB. O PIB tem 10%. Como fazer uma política desenvolvimentista com uma carga tributária de 10%? Não dá, isso requer um novo pacto fiscal, o que me parece ter sido uma das contribuições da Cepal nos últimos anos. Esse problema precisa estar no centro das nossas reflexões.”

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Fonte: CartaCapital