Meio século depois, boa parte dos ícones forjados nos anos 1960 continua comandando a massa. A começar pelo Rei Roberto Carlos, de 70 anos, entronizado pela Jovem Guarda, a partir de 1965. Mesmo há anos sem inéditas ou sucessos nas paradas, em fase “Las Vegas al Mare”, os súditos não o abandonam. A banda Del Rey, liderada pelo vocalista pernambucano China (ex-Sheik Tosado) e o bloco carnavalesco carioca Exalta Rei propagam exclusivamente suas músicas. Bastou um breve flerte com a sertaneja Paula Fernandes, de belas pernas à mostra, em seu especial de fim de ano de 2010, e a moça se tornou campeã de vendas do combalido mercado de discos nacional: 1,3 milhão de cópias no ano passado, superada apenas pelo eclesiástico “Ágape Musical”, do padre Marcelo Rossi.

Seu parceiro Erasmo Carlos, também de 70, se bandeou para a esfera “cult”, disparando discos elogiados, como “Rock’n’Roll” (2009), 15 mil discos consumidos, e “Sexo” (2011), 10 mil, em parcerias com Adriana Calcanhotto, Arnaldo Antunes, Nando Reis, Liminha, Nelson Motta. Essas vendas ainda serão turbinadas, no Dia das Mães, com a edição do DVD “Erasmo Carlos ao vivo no Teatro Municipal – 50 Anos de Estrada”. O iê-iê-iê, quem diria, invadiu o templo da música erudita.

Esses lançamentos todos saem pela gravadora Coqueiro Verde, da qual Erasmo é sócio, ao lado do filho, Léo Esteves. Não é um selo de pequeno porte. Lança 10 títulos por mês – a empresa tem 300 em catálogo, boa parte em DVDs – e arrebanha artistas novos do porte de Karina Buhr, Silvia Machete, MV Bill, Kassin, Domenico, Moreno Veloso, Autoramas, Mundo Livre S/A e os recauchutados Mutantes.

Por falar neles, sua mais completa tradução, Rita Lee, de 64, se despediu dos palcos, em janeiro, honrando a tradição de ovelha negra. Xingou a polícia do Festival de Verão de Barra dos Coqueiros (SE), que reprimia o consumo de drogas em seu show, e acabou presa. Como em velhos tempos, foi autuada por “desacato, apologia ao crime ou ao criminoso”, enquadrada no artigo 287 do Código Penal. Mas seu novo CD, “Reza”, já está em pré-venda no iTunes e entra nas lojas na segunda-feira.

A onipresença sessentista não trata apenas dos ídolos vivos. Também Elis Regina reencarna na pele e vocal da filha, Maria Rita

Alternando as carreiras de escritor (“Estorvo”, “Budapeste”, “Leite Derramado”) e compositor, Chico Buarque, de 67, de repertório celebrado por um bloco feminino carioca, Mulheres de Chico, surpreende em mais um retorno. O último disco, “Chico”, lançado no ano passado, destila audácias estilísticas em assimétricos sambas, baião e até um blues confessional (“meu tempo é curto/ o dela sobra/ meu cabelo é cinza/ o dela é cor de abóbora”) e já vendeu expressivas 80 mil cópias. A excursão de lançamento vai contabilizar 81 shows para um público estimado em 150 mil pessoas.

De volta à atitude iconoclasta da era tropicalista, após vários discos de “standards”, Gal Costa, de 66, também reaparece renovada num álbum nada ortodoxo, “Recanto”, com inéditas expressamente confeccionadas pelo fiel fornecedor Caetano Veloso, de 69. Trata-se de uma espécie de transposição para o suporte eletrônico das óperas de ruídos de seus discos da transição dos anos 1960 para os 70 (“Gal Costa”, 1969, “Legal”, 1970). A nova casa de shows carioca Miranda lotou no início da turnê, duas semanas atrás, e o disco já foi adquirido por 25 mil pessoas.

É um público que vem acompanhando a mutação roqueira de Caetano em manifestos farpados como “Cê” (2006), de 35 mil adeptos, e “Zii e Zie” (2009), que fez circular 15 mil cópias. Isso sem contar os respectivos desdobramentos, de “Cê ao vivo” (2007), mais 10 mil, e “MTV ao vivo”, em CD (6 mil) e DVD (11 mil) do segundo.

Seu parceiro antípoda Gilberto Gil, que, como ele, completa 70 anos neste ano, tem uma agenda polpuda para o lançamento do próximo título, “Ensaio Geral – Concerto de Cordas e Máquinas de Ritmo”, previsto para edições em CD, DVD e Blu-ray, em outubro. Em 28 de maio, estreia no Municipal carioca acompanhado por 40 músicos da Orquestra Petrobras Sinfônica, que, na contramão da iconoclastia de Caetano e Gal, dará roupagem erudita a clássicas de seu repertório e algumas alheias. Entre junho e agosto, encara a Europa e em setembro, América do Sul. Mas o anterior, “Fé na Festa” (2010), ainda tem solicitações para shows no México e nos Estados Unidos, num giro em outubro e novembro.

A quarta mosqueteira do coletivo Doces Bárbaros, a sempre alada Maria Bethânia, de 65, responde com poesia própria (“eu não provo do teu fel/ não piso no teu chão/ e pra onde você for/ não leva meu nome, não”) à artilharia que recebeu por causa de subsídios fiscais para um blog em que declamava poemas. O que ela escreveu se entrelaça com um tema de Paulo César Pinheiro (“Carta de Amor”), incluído no recém-lançado disco “Oásis de Bethânia”, de faixas climáticas e intimistas, cuja tiragem inicial é de 30 mil cópias.

Menos badalado que a Tropicália, o movimento mineiro do Clube da Esquina, liderado pelo carioca Milton Nascimento, de 69, ainda se debate com atrasos burocráticos para as comemorações dos 40 anos de seu disco homônimo, de 1972, a inauguração de um museu em Belo Horizonte e a filmagem de um documentário. Mas com participação especial de Lô Borges, parceiro do disco do Clube, ele realiza uma turnê por oito cidades celebrando 50 anos de carreira, 70 de idade e 45 do disco de estreia, com direito a registro em DVD na apresentação do Rio, em 6 de outubro.

No paroxismo do enfrentamento do tempo, outro pilar sessentista, Jorge Benjor, que estreou no berço da bossa nova, o Beco das Garrafas, em 1963, com seu manifesto “Samba Esquema Novo”, desmente a data de nascimento dos dicionários (22/3/1942) e “adia” por três anos (alega ter nascido em 1945) a entrada oficial nos 70 anos. Incensado pela banda paralela Los Sebozos Postiços, formada por integrantes do Nação Zumbi e do Mundo Livre S/A, com sua rara valsa “Descalços no Parque”, regravada no disco mais recente de Marisa Monte, e o obscuro samba-rock “Deus É Amor”, do primeiro álbum de Gal, de volta ao repertório da cantora no show “Recanto”, ele lança neste fim de mês “Luau MTV Jorge Benjor”, gravado em Paraty. Sem inéditas desde “Reactivus Amor Est”, de 2004, o pai do samba-rock tem sido incentivado pela legião de fãs a revisitar, a bordo de seu emblemático violão acústico, o clássico “Tábua de Esmeraldas”, de 1974.

Mas a onipresença sessentista não trata apenas dos ídolos vivos. A árdua reabilitação artística de Wilson Simonal (1939-2000), promovida por meio do corajoso documentário “Ninguém Sabe o Duro Que Dei” (Calvito Leal, Micael Langer, Cláudio Manuel), de 2009, e o livro “A Vida e o Veneno de Wilson Simonal” (Ricardo Alexandre) desaguou nos CD e DVD “O Baile do Simonal”, iniciativa de seus filhos Max de Castro e Simoninha.

Também Elis Regina (1945-1982), inflamada porta-estandarte da MPB, reencarna na pele e vocal da filha, Maria Rita, numa turnê patrocinada pela empresa Nívea, por cinco capitais brasileiras. “Isso pra mim é apenas uma homenagem à maior cantora que o Brasil teve e jamais terá”, decretou ela, engolfada no mesmo repertório e arranjos da mãe, cuja celebração dos 30 anos da morte ainda incluirá documentário, livro e exposição. As duas caixas com 25 CDs da passagem de Elis pela atual gravadora Universal entre os anos 60 e 70, recém-editadas, estão próximas de esgotar as primeiras duas mil cópias cada uma, uma soma de quase 50 mil unidades consumidas.

O que explica tal equação atemporal, fustigada ainda na década de 70 por composições do então recém-chegado (e hoje desaparecido) cearense Belchior, o mesmo autor de “Apenas um Rapaz Latino-Americano” (“mas trago de cabeça uma canção do rádio/ em que um antigo compositor baiano me dizia/ ‘tudo é divino, tudo é maravilhoso'”)? Seria o fenômeno rotulado pelo crítico inglês Simon Reynolds como “retromania”, a partir de seu diagnóstico de estagnação da cultura pop, “viciada em passado”?

A internet promove, mas pulveriza. E aprisiona os artistas em nichos, em alguns casos à mercê dos fã-clubes, quase como uma “art delivery”

Pouco provável, no país autofágico de “Fora da Ordem”, ácida diatribe do supracitado Caetano: “Aqui tudo parece que ainda era construção/ e já é ruína”. Muito se deve à capacidade de reinvenção de boa parte desses artistas – cada qual à sua maneira. Pela contramão, deslocando o ouvinte de sua zona de conforto, como Caetano, Gal e o recente Chico. Ou reafirmando seu culto às canções depuradas, num desafio à voz quase nua, como a dramatúrgica Bethânia.

Em entrevista recente, Gilberto Gil referiu-se à sua geração como “uma turma que chegava junto com a bossa nova para levar adiante o trabalho de modernização da canção popular do país”. Dava continuidade à que foi chamada de linha evolutiva da MPB, de pés (e ouvidos) fincados na universidade eclética do auge do rádio, batizada de era de ouro, entre os anos 1930 e 50.

A geração de Carmen Miranda, Francisco Alves, Orlando Silva, Silvio Caldas, Dalva de Oliveira, Aracy de Almeida, Pixinguinha, Noel Rosa, Ismael Silva, Ary Barroso, Braguinha, Lamartine Babo, Custódio Mesquita, Assis Valente e adiante, Dorival Caymmi, Luiz Gonzaga, Ataulfo Alves, Lupicínio Rodrigues, Herivelto Martins, Geraldo Pereira, Haroldo Lobo, Wilson Batista, Nelson Cavaquinho, Cartola, Marlene, Emilinha, Cauby Peixoto, Nelson Gonçalves, Ângela Maria, entre muitos, usufruiu da conjunção da potência radiofônica de alcance nacional com uma indústria do disco em expansão, à medida que o país se urbanizava.

Nos anos 60, a distribuição da música recebeu um terceiro suporte e uma nova inflexão. Iniciada de forma quase amadorística na década anterior, a TV ganhava fôlego e musculatura, e seu combustível de crescimento foi moldado na argamassa dos programas de humor e música. Às vezes, numa conjunção deles, como no “Corte Rayol Show”, do humorista Renato Corte Real e do cantor Agnaldo Rayol, ou no competitivo “Esta Noite se Improvisa”, desafio à memória das estrelas musicais.

A grande repercussão do I Festival Nacional de Música Popular Brasileira, da extinta TV Excelsior, no Guarujá (SP), em março e abril de 1965, catapultou a vencedora, Elis Regina (com a música “Arrastão”, de Edu Lobo e Vinicius de Moraes), para a linha de frente de um programa semanal de TV, “O Fino da Bossa”, ao lado do sambista Jair Rodrigues.

“O Fino” faria a transição do banquinho e violão do movimento inicial, sussurrado por João Gilberto e seus seguidores, para os extrovertidos palcos da genericamente alcunhada MPB. E a TV ainda abriria espaço para o pop/rock emergente dos cabeludos da Jovem Guarda, de Roberto, Erasmo e Wanderléa, montados em roupas da marca Calhambeque, num início da “marquetização” da idolatria, e até mesmo para as gerações antecessoras, no “Bossaudade”, liderado por Elizeth Cardoso e Cyro Monteiro.

A vitrine escancarada aos novos – e repertórios obrigatoriamente inéditos – dos festivais possibilitou a consolidação dos diversos formatos da MPB e até a efetivação de um movimento de vanguarda como o tropicalismo, num permanente diálogo com as grandes plateias. Aos poucos esse tripé propulsor da música popular no Brasil foi sendo esvaziado. A audiência das rádios perdeu espaço para o poder da imagem televisiva e, com a passagem dos cachês pagos para as apresentações dos artistas subsidiadas pelas gravadoras, aos poucos a TV, agora inteiramente devotada ao folhetim eletrônico, também passou a transmitir apenas o sucesso de ocasião, reservando à música o espaço subalterno das trilhas de novelas.

Com a debacle da indústria do disco, minada pelo jabá e as piratarias física e digital, as gerações musicais, a partir do BRock dos anos 80, encontraram portas fechadas e saídas estreitas, como ocorreu ao “mangue beat” pernambucano. Como se sabe, a internet e as redes sociais promovem, mas também pulverizam. E aprisionam os artistas em nichos, em alguns casos à mercê dos fã- clubes, quase como uma “art delivery”.

Ou seja, a permanência dos ícones sessentistas deve-se, em primeiro lugar, ao afortunado talento de vários deles, lapidado pelo permanente contato com a massa indiscriminada – e não segregada, como o atual projeto tosco das emissoras de TV de interpretar os supostos (maus) gostos da emergente classe C. Como vaticinou Gilberto Gil em “Rep”: “O povo sabe o que quer/ mas o povo também quer o que não sabe”.

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Fonte: Valor