Diz-se que os países periféricos da área do euro, assim como a Inglaterra, não têm alternativa de política econômica a não ser pela via da ortodoxia centrada no corte dos gastos para reduzir seus déficits e dívidas públicos. Até o momento, desde a Grécia à Irlanda e passando pela própria Inglaterra, esse tipo de política tem resultado num contundente fracasso. Não obstante, sob o tacão da Alemanha de Merkel e da França de Sarcozy, e mediante o auxílio do FMI, do BCE e da Comissão Europeia, insiste-se na linha do “sacrifício” fiscal recorrente.

O corte de gastos públicos durante uma recessão é o exato oposto do que propôs Keynes há cerca de 70 anos. Sua receita diante da queda do consumo, do emprego e do investimento era o aumento o gasto público, desencadeando o efeito virtuoso oposto, do aumento do consumo (ou da demanda efetiva) para o aumento do investimento, deste para o aumento do emprego e daí para a realimentação da demanda, tudo isso concorrendo para a saída da recessão na medida em que os empresários adquirem confiança na retomada do ciclo.

Na visão ortodoxa, o que se pretende, em tese, é recuperar a confiança dos empresários pelo efeito da redução do déficit e da dívida públicos. Esse elemento mágico, a recuperação da confiança empresarial, seria suficiente para a retomada do investimento, do emprego e da demanda – portanto, operando no sentido contrário ao presumido por Keynes. É fácil verificar que a política ortodoxa se apóia numa quimera, ou seja, num elemento psicológico, a confiança do empresário, independentemente da situação concreta do mercado de trabalho e de bens e serviços.

Em termos técnicos, a política keynesiana atua pelo lado da demanda, enquanto a política ortodoxa pretende atuar pelo lado da oferta. Isso significa que não uma empresa em particular, mas o conjunto delas confia mais em fatores psicológicos para ampliar seus investimentos do que na verificação da situação da demanda efetiva. Comparada à política keynesiana, é uma espécie de placebo administrado à economia, enquanto a política keynesiana é injeção na veia. Então, a pergunta óbvia é: por que essa insistência na ortodoxia, mesmo diante da evidência de seu fracasso?

Há várias razões, sobretudo de ordem ideológica, mas a principal delas está no campo da economia política: diante da crise, os ortodoxos preferem políticas do lado da oferta (redução da taxa básica de juros) porque as políticas do lado da demanda – ou seja, aumento dos gastos públicos – ao contrario das primeiras, são geralmente redistributivas de renda a favor dos mais pobres. Gastos fiscais são aplicados em infra-estrutura e serviços públicos. Taxa de juros baixa favorece sobretudo os ricos que têm garantias reais para tomar empréstimos.

A crise atual tem uma dimensão ideológica adicional por causa da escala da dívida e dos déficits em alguns países europeus como Grécia, mais de 180% do PIB, e da Itália, mais de 120%. Antes dela, a situação fiscal na zona do euro, exceto na Grécia, era extremamente confortável, muito abaixo dos parâmetros do Tratado de Maastricht que institui o euro (máximo de 60% do PIB para a dívida, e de 3% do PIB para o déficit público). Contudo, porque os governos tiveram de salvar os bancos, a crise financeira vinda dos EUA se converteu em crise fiscal em larga escala.

A idéia de que se tem de reduzir déficit e dívida como condição de retomada é um disparate. O corte nos gastos públicos reduz a demanda, o emprego, o consumo interno e a própria receita fiscal, aumentando a relação déficit-dívida/PIB. A medida é, pois, contraproducente. Assim, independentemente do nível do déficit e da dívida, o primeiro movimento sempre terá de ser no sentido de aumentá-lo a fim de estimular o consumo, o emprego e o investimento. O movimento seguinte será no sentido da redução da relação déficit-dívida/PIB. É nesse ponto que entra em jogo a articulação tesouro nacional/banco central, da qual os países do euro estão excluídos.

Normalmente, o tesouro emitiria dívida, e o banco central facilitaria a colocação desses títulos no mercado, como nos EUA. Acontece que o BCE é descolado dos tesouros europeus, um leviatã monetário que tem como mandato único evitar a inflação e pouco interesse em desenvolvimento. Com isso, os países, para aumentarem os gastos públicos recorrendo a endividamento, têm que ir diretamente ao mercado privado. O mercado comandará a taxa de juros e a disponibilidade de recursos de empréstimos, ditando soberanamente as crises entre os países.

Em tese, se reduzirem déficits e dívidas, os países do euro teriam melhores condições de empréstimos no mercado privado. Isso é uma falácia. É a especulação que comanda o processo, mantendo os governos como reféns. Diante dessa situação, um plano keynesiano para resgatar a Europa implicaria, antes de mais nada, mudar a forma de atuação do BCE. Os países endividados seriam autorizados a aumentar temporariamente seus déficits e sua dívidas, até encontrar o ponto do crescimento sustentável, enquanto o BCE, que acaba de disponibilizar para os bancos privados empréstimos de 1,3 trilhão de dólares, garantisse liquidez também aos governos, para que não fiquem como reféns do mercado em sua política de retomada.

Claro, isso só será possível com uma virada eleitoral nos principais países da área do euro, notadamente França, Alemanha, Itália e Espanha – apoiada de fora por um presidente Obama que venha reforçado por sua própria reeleição e pela eleição de uma maioria democrata no Congresso. Não é preciso dizer que a alternativa é caótica: a proposta de Merkel, em vez de mudar o BCE, é reforçar sua linha ortodoxa e mudar o sistema fiscal europeu no sentido de reduzir todos os tesouros nacionais à política de cortes nos gastos públicos. Em suma, fazer da Europa uma magna Grécia!

 

 

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(*) Economista, professor de Economia Internacional da UEPB, presidente do Intersul e autor, junto com o matemático Francisco Antonio Doria, de “O universo neoliberal em desencanto”, recém-lançado pela Civilização Brasileira. Esta coluna sai também no site Rumos do Brasil e, às terças, no jornal carioca Monitor Mercantil.

Fonte: Carta Maior