A Editora Manifesto tem a honra de convidar para o lançamento do livro Jornal Movimento, uma reportagem, de Carlos Azevedo, com reportagens de Natalia Viana e Marina Amaral, que ocorrerá no próximo dia 12 de setembro, às 19 horas, na Livraria Cultura do Shopping Villa Lobos, na cidade de São Paulo.

O livro foi produzido com apoio do Ministério da Cultura (Minc) e patrocínio da Petrobras, e é fruto de um ano e meio de trabalho de uma equipe que pesquisou os arquivos da época, descobriu documentos inéditos e realizou mais de 60 entrevistas. É uma oportunidade ótima para rever as pessoas que ajudaram a construir essa história.

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Leia artigo de Natália Viana sobre a história do jornal Movimento

Fazer revista dá trabalho pra caralho. Sempre tem um monte de ideia, a pauta fechada, mas come o tempo: matéria que fura, foto que não sai, colaborador que some. E olha, repórter adora esperar pelo último segundo pra mandar o texto—eu inclusa. E depois pra juntar tudo e fazer algo que preste? Isso hoje, na era da internet, globalization, o diabo a quatro. Agora, imagina organizar essa zona toda 35 anos atrás, quando o telex era considerado avançado, o telefone custava os olhos da cara—comprava-se a linha—, fora que a coisa era mesmo na máquina de escrever. E a polícia usava fusquinha, a baratinha. Não: imagina montar um jornal semanal, sem um puto, cujos donos eram os próprios jornalistas—sem patrão—com a missão de defender a liberdade em plena ditadura. E com o focinho dos policiais fungando ali, na nuca, o tempo todo.

Bom, imagine, mesmo, porque vai ficar só na imaginação. Que viver o que a turma fundadora do jornal Movimento viveu, só eles mesmos. Entre 1975 e 81, o Movimento foi uma das principais vozes de resistência ao regime militar no Brasil, um dos mais descarados e teimosos defensores da democracia. Durou seis anos, lançou a campanha pela Constituinte, irritou diversos milicos do poder. O general [e presidente] Ernesto Geisel chegou a dizer uma vez que a leitura do Movimento não era “salutar”. E só porque ele deu muita azia praquele povo já tá mais que justificado o projeto “Jornal Movimento—Uma Reportagem”, que eu tenho tocado ao lado dos jornalistas Carlos Azevedo e Marina Amaral. Vai ser um livro-reportagem sobre o semanário, escrito a partir de pilhas e pilhas de documentos [eles guardaram quase todas as atas de todas as reuniões], centenas de entrevistas e os exemplares amarelados e esfarelentos do jornal, que vão ser digitalizados e incluídos num DVD. O livro sai no final do ano. Tem muita história pra contar.

Era São Paulo, era 1975. Em 11 anos, a ditadura já tinha torturado, matado e caceteado grande parte da esquerda; centenas estavam no exílio ou na clandestinidade, sob nome falso [caso do Carlos Azevedo, idealizador e autor do projeto], na moita. Por outro lado, a crise do petróleo tinha empobrecido o povo, a inflação era surreal, saca só: de 64 a 77 o custo de vida mínimo saltou de 54 cruzeiros pra 2.542! E a oposição “bem comportada” crescia. Nisso, o governo começava a falar em abertura controlada, a chamada “distensão política”, fazendo eleições gerais e liberando a censura de quem podia até falar mal, mas sempre com carinho: o Estadão. Ia demorar muito pra liberarem mais que isso.

Foi quando nasceu o Movimento, claro que a partir de uma rebeldia. A equipe de jornalistas “rachou” com o dono do jornal em que trabalhava, o Opinião, depois que o dono demitiu o editor Raimundo Pereira – conhecido pela sua teimosia, por ser um grande jornalista e por andar na redação de bermuda e chinelo e aquela cara de bicho-grilo. Era uma turma bem boa. Exemplo, os jornalistas Tonico Ferreira, Marcos Gomes, Teodomiro Braga e Bernardo Kucinski, além de Jean Claude Bernardet, o artista plástico Elifas Andreato, o sociólogo Chico de Oliveira e o escritor iniciante Aguinaldo Silva (sim, hoje ele escreve novelas da Globo). Decidiram fundar um jornal sem patrão, dos próprios jornalistas, com eleição pra editor e diretoria e um programa político assumido, diferente da maioria dos jornais que têm partido, mas ficam no armário. O programa: oposição à ditadura militar, pelas liberdades democráticas e em defesa dos interesses nacionais. E simbora.

Pra começar, passaram o chapéu em várias cidades do Brasil, chamando conhecidos e nem tão conhecidos a colaborar. Vendiam cotas de sociedade a um valor meio pesado, mas que valia a causa (e ainda podia ser dividido em módicas parcelas mensais). Em alguns meses juntaram quase um milhão de cruzeiros e 300 acionistas, alugaram uma casinha em Pinheiros e montaram a banca. Arrecadaram apoios de peso. No Conselho Editorial estavam Audálio Dantas, presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, Chico Buarque, o indigenista Orlando Villas-Bôas e o futuro ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Cada acionista doava metade mais um para a equipe, que assim podia tomar as decisões da empresa democraticamente, em discussões que duravam horas e horas e horas e horas e não raro viravam noites.

Considerando isso, até que a coisa andou rápido. No dia 2 de julho, a redação na Rua Carvalho Pinto já funcionava naquele caos: telefone, máquina de escrever, falatório, discussões fervidas. Gente espalhada nas poucas mesas que representavam cada editoria. Estavam terminando a primeira edição pra ir às bancas na semana seguinte, quando o editor de Nacional, Sérgio Buarque, ouve um chiado de walk-talk:

“Entra um cara meio gordo, chega bem no meio da sala e diz:

—Com licença.

Olhei para o Flávio Aguiar, na mesa em frente, ele fez aquele sinal de ‘Porra, já entrou’.

—Sem rodeios, nós somos da Polícia Federal.

Aí, tinha uma coisa, essa coisa brasileira, com essa origem lusitana, que é um formalismo patético. O cara foi levar um ofício da Polícia Federal, pra dizer que o jornal estava censurado com base no AI-5 e tal.

Ligamos para o Raimundo. Ele chegou, começou a reclamar, o cara ligou pra alguém e falou:

—Olha, o sujeito aqui tá criando caso…

O Raimundo reclamava:

—Como é que vocês vão censurar uma coisa que ainda não saiu?

Mas não teve jeito, né?”

A ordem vinha do presidente da República.

Assim, quando o Movimento saiu, no dia 7 de julho de 1975, já saiu censurado. E bem feio. A capa era toda preta. A foto era estra-nha, fora de quadro, meio corpo de um homem em pé olhando um trilho onde um relógio de parede, amassado, mostrava nos ponteiros parados: 4 horas e 55 minutos. A legenda, pequena e torta, dizia “Central do Brasil”. Era uma matéria de Aguinaldo Silva sobre os quebra-quebras que estavam acontecendo na estação central do Rio por causa da superlotação e do atraso dos trens. Era boa. Mas era nada menos que a quinta opção de capa: os censores vetaram as quatro anteriores, e mais 18 matérias inteiras, oito fotografias, dez ilustrações e 12 charges. E não tinha jeito: naquela semana foi um vai-e-volta até a sede da PF, em Higienópolis, pra tentar reunir uma edição inteira. Muito do que voltava vinha com aquele carimbo sinistro: Censurado. A edição, por isso, saiu com 17 horas de atraso. Chegou a muitas cidades só uma semana depois.

Mesmo assim, 21 mil leitores compraram. Por quê? Pelo mesmo motivo que irritava tanto a tesoura da Censura: o jornal era cricri. E fazia bom jornalismo. Mesmo censurado, denunciou uma porrada de coisas. Na primeira edição, uma matéria esmiuçava timtim por timtim um acordo nuclear com a Alemanha em que o Brasil estava comprando reatores com uma tecnologia que ainda não tinha sido totalmente testada. O jornal já questionava também a tal “distensão” – será que a coisa ia abrir mesmo ou tavam fazendo a gente de idiota? E sempre pegou no pé da exploração de pretróleo por multinacionais, que naquela época começava a acontecer com os chamados “contratos de risco”. Tanto que uma edição inteira sobre o tema foi proibida de circular, e o jornal ficou proibido de tocar no assunto dali por diante (uma censura, aliás, inédita). Pior, o diretor Tonico Ferreira ainda recebeu a seguinte ordem: bico fechado e não conte a ninguém sobre a proibição. “Mas isso é impossível! Quando eu for avisar à redação sobre a apreensão do jornal já estarei violando a ordem!”, respondeu.

É que a censura não tinha nada de aleatório. Isso o pessoal foi percebendo aos poucos, porque era gente teimosa, que a cada edição fazia um relatório contando tudo o que foi cortado e mandava pra acionistas, colaboradores e amigos. Descobriram um padrão: primeiro, eram vetadas todas as críticas às políticas centrais da ditadura, ou à ditadura. Depois, qualquer denúncia sobre tortura e repressão.

Outra coisa que dava horror aos milicos era uma das obstinações do jornal: a seção Cena Brasileira, que relatava a vida do povo nos mais diferentes confins. Não saiu, por exemplo, uma bela entrevista com um preso comum, “Hiroito, o rei da boca do lixo”, e uma reportagem sobre o “Diário de Dorinha”, um folheto feito pras meninas da Febem que ensinava a serem boas domésticas, serviçais às patroas e ainda sorrirem na hora de ganhar o trocado do mês. Curioso é que a censura também tirava matérias que não tinham a ver com nada disso, mas eram boas: podiam atrair novos leitores.

A ideia era fechar o jornal, sem fechar. Estrangulando.

Em dois anos, foram mais de 3.090 artigos censurados na íntegra, 4,5 milhões de palavras, 3.162 desenhos. Isso significava, na redação, mais trabalho. Além de muitas matérias extras, tinham que mandar os rabiscos dos chargistas meio prontos, pra ver se passavam: só daí o ilustrador podia completar o desenho. Muitíssimas charges de primeira nunca saíram. No time, Chico e Paulo Caruso, Jota, Henfil, Alcy, Nilson, Zero.

E pra mandar aquilo tudo pra Brasília, onde a censura passou a operar? Ia de avião, com a finada Vasp. Paulo Barbosa, que traba-lhava no setor de vendas, era estudante na época e tinha uma motoca—por isso, era muitas vezes quem levava a pilha de folhas datilografadas à máquina.

“Sempre tinha umas matérias de última hora. Isso aconteceu muito. Você tinha uma matéria ou duas, o resto já tinha despachado. Aí eu ia correndo pro aeroporto, e ficava vendo quais voos que iam pra Brasília, qual era o primeiro que ia sair… Então eu ia lá na companhia e via quem tava fazendo o check-in, aí eu conversava com ele:

—Olha isso aqui é um material de imprensa, o senhor leva pra Brasília? Um rapaz retira com o senhor no aeroporto…

A grande maioria aceitava. Aí eu ligava pra sucursal de Brasília e falava: ‘ah, é um homem tal, barbudo, tá com um terno’, dava um nome, olha, tá no voo da Vasp número tal’… Aí ficava no desembarque de passageiros pra identificar o cara lá e pegava o envelope.”

Depois que a PF, em Brasília, dava o sofrido OK, os repórteres da sucursal passavam para a redação de São Paulo em longos e tediosos telefonemas (interurbanos, os olhos da cara): “Artigo de Chico Pinto, vetado; matéria sobre os trabalhadores na cana em Pernambuco, cortada da linha dez da primeira lauda até o fim do segundo parágrafo…”

“Chegava a momentos ali que a gente tinha vontade de chorar. Frequentemente censuravam todas as opções de capa. Numa época, passaram a proibir capa preta, uma série de proibições para não passar a mensagem para o leitor da censura. Então, o leitor, quando recebia o jornal, não tinha a menor ideia de quanto jornal tinha sido censurado”, diz Teodomiro Braga, que era chefe da redação de Brasília.

A sucursal do DF, aliás, uma das cinco que o jornal conseguiu montar, em salas às vezes alugadas pelos próprios correspondentes, às vezes com a linha telefônica cortada e sempre a perigo de fechar, era como as outras: apesar de tudo isso, fervilhava. Em todo Brasil as salinhas do Movimento se tornaram ponto de encontro de políticos, intelectuais, estudantes; promoviam debates, dicussões e leituras nas noites, e mutirões de venda nos fins de semana. Ali, na capital, tinha um peso mais institucional: funcionava como base para os políticos do MDB, o partido de oposição “consentida”. Em especial o grupo dos “autênticos”: aqueles que não se vendiam nem se rendiam ao regime. O líder era o baiano Chico Pinto, chefe da sucursal, cassado por Geisel porque criticou o ditador chileno Pinochet quando ele visitou o Brasil em 1974. Ficou um ano preso. Depois foi pro Movimento.

Os colegas emedebistas o visitavam na redação, trocavam ideia e viravam fonte do jornal, o que rendia um sólido respaldo político. “A sucursal era tão interessante, porque era frequentada pela intelectualidade. Um negócio extremamente pujante, às vezes era difícil trabalhar de tanta gente que ficava ali”, conta o repórter Antônio Carlos Queiroz. Muitos dos que trabalharam pelo fim da ditadura passaram por lá—incluindo, pasme, alguns militares progressistas.

Como o Movimento atraía essa gente toda? Simples: ele falava o que os outros não ousavam falar, mesmo quando livres da tesoura da censura. E foi se tornando receptáculo de ajudas inesperadas, como de jornalistões da grande imprensa que passavam matérias que ninguém mais ia dar, ou até gente do governo, insatisfeitos. No Rio, o correspondente Marcos Gomes viveu um desses episódios:

“Fiz uma matéria sobre a Light que havia sido oferecida a todos os jornais. Ninguém aceitou fazer. O presidente da Eletrobrás era o Antônio Carlos Magalhães. Foi o Mario Kertész, chefe de gabinete dele, que me passou:

—Essa matéria aqui é que o pessoal do Rio, esse bando de advogados administrativos de grandes multinacionais, quer pegar o dinheiro do governo para comprar a Light. Nós temos aqui o documento inteirinho. Vocês publicam?

—Publicamos, desde que você me dê o documento com as assinaturas.

—Nós já demos para o Jornal do Brasil, para o Globo… (não quiseram publicar).

—O Movimento publica, está sob censura. Mas essa matéria tem chance de ser publicada. Você me dá essa última página com todas as assinaturas.

Aí eles foram para outra sala, ficaram em confabulação e decidiram me dar. A matéria saiu, a Gazeta Mercantil repercutiu, houve um alarde. Então, quer dizer, estávamos ali fazendo o nosso trabalho”.

Com o tempo, a ousadia só fez aumentar. Em agosto de 1978 caiu a censura nos últimos três jornais (o Movimento entre eles, claro). O tabloide foi ficando mais e mais petulante. Criou uma sessão só de charges, chamada “Corta Essa!”, com pérolas da tiração de sarro da fanfarra nacional. Como essa aí: (Ed. 236, charge do Maluf nas Arábias).

Aliás, o jovem Maluf, governador de São Paulo escolhido em 1978 sem concorrência, virou presença constante nas capas mais escrachadas. A de 30 de junho de 1980 estampava: “Maluf, quem diria, pensa que é Hitler”, ao lado de uma ilustração do próprio vestido com a suástica desfilando em carro aberto. A reportagem, aliás, uma boa lembrança pra quem era criança naquele tempo, mas conviveu com o velho Maluf por eleições e eleições sem fim, conta como o jovem Maluf pagava grupos paramilitares para perseguir e espancar os defensores da democracia.

Outra capa memorável foi quando a censura liberou o nu frontal pela primeira vez, no começo de 1980. O jornal celebrou com uma peladona na capa e uma matéria, “A censura posta a nu”. A história: “Uma batalha que se travou milímetro a milímetro, polegada a polegada, dos sombreados mais obscuros aos claros mais brilhantes. Nas últimas semanas, intensificou-se a ponto de chegar àquilo que poderia parecer o clímax da escalada: o chamado nu frontal feminino, sem retoques nem sombras”. Na página seguinte, um compilado de bundas com carimbos do censor e uma legenda, que explicava: “Antes da liberação, não estava proibido apenas o nu frontal: nádegas sem ne- nhum disfarce na capa não podia. Em alguns casos, havia certas “normas”, que permitiam salvar o pudor em algumas fotos. As carimbadas explicavam em cada caso o que seria preciso fazer: ‘clarear’, ‘diluir’, ‘tornar mais difusa’ etc. Agora, até mesmo essa ‘censura de compromisso’ acabou”. O artigo de Flávio Dieguez contava que revistas de sacanagem estavam vendendo como água. Com a estampa “sem censura” na capa, a Ele & Ela tinha esgotado em dois dias. Citando o editor de uma delas, a reportagem sugeria, bem no estilo do Movimento: “O nu frontal faz sucesso. E depois? Uma sugestão é reduzir o preço da alimentação!”.

Agora, um resultado tantas vezes bacana, mesmo sem o peso da censura, era difícil de alcançar. Na época, era no perrengue mesmo. Gravador era coisa rara. Dar um Google, nem pensar: o pessoal tinha mesmo que ir a uma biblioteca olhar os velhos almanaques e enciclopédias. As colaborações de fora de São Paulo tinham que ser mandadas de avião, pelo menos dois dias antes do fechamento. Além dos problemas normais de uma redação sem dinheiro, sem carro, com poucas linhas telefônicas, que pagava mal e vivia da boa vontade dos colaboradores. O editor-chefe Raimundo Pereira chegou a compilar as piores desculpas de correspondentes pra não entregar matérias. A vencedora: o correspondente disse que estava chovendo e descolou a sola do seu sapato; por isso, não pôde fazer a matéria.

Por sua vez, o colaborador de Campinas Álvaro Caropreso descobriu rápido as virtudes e a economia do telex pra mandar seu recado: “Era todo dia. Acho que fui o cara que mais usei telex. Quando saía alguma coisa no jornal que eu gostava muito ou não gostava, ia na agência do Correio e mandava um telex”. Álvaro foi um dos mais aguerridos vendedores do Movimento, e olha que era um time bem esforçado.

O setor de vendas, comandado por um conhecido comunista e ex- preso político, o Barbosinha, funcionava na base da militância de gente anônima e nem tão anônima, espalhada por todo o país. Políticos, estudantes, professores, padres, intelectuais, operários, líderes comunitários todo sábado de manhã estavam ali, firmes, esperando chegar o pacotinho de jornais para ser distribuído. Oficialmente, através da distribuidora da Abril, o jornal chegava a um punhado de capitais. Por fora, pela mão dos vendedores-militantes, chegava aos mais insuspeitos cantos do Brasil—de Campina Grande da Paraíba a Xapuri do Acre.

“A gente esperava em pleno fervor cívico-revolucionário, e se encantava com a capa, os desenhos do Elifas Andreato, do Grilo… Era o momento de ver o que tinha saído do nosso material, o que não tinha. E a gente discutia, ficava puto, ‘mas tinha que ter saído a conjuntura!’, ‘como a gente vai se articular agora…?’”, lembra o Crisóstomo de Souza, chefe da sucursal de Salvador. “Era a nossa celebração, nossa eucaristia”. Sábado de manhã, mal ele chegava do aeroporto, a sala já estava apinhada de jovens (“nossa mão de obra barata e abundante”, brinca) pra enrolar cada exemplar, apertar com elástico e enviar por Correio para os assinantes. Depois, saíam pra vender em bares e festinhas na cidade. No domingo acontecia um mutirão pelas praias soteropolitanas. Canto a canto, gritando a manchete da semana.

Ao mesmo tempo, no Sul, em Curitiba mais precisamente, a jornalista Fátima Murad, que era sozinha, aos 22 anos, toda a equipe da sucursal, penava. “Eu pegava um ônibus até São José dos Pinhais, na Grande Curitiba, pegava aqueles pacotes no aeroporto e sempre alguém na rua se compadecia, me ajudava a entrar no ônibus de volta—eu não tinha dinheiro para táxi, essas coisas. Chegava na cidade, pegava outro ônibus para casa…”. O mutirão para colocar os exemplares em envelopes que depois iriam para o Correio era formado por amigos dela e do marido, que a esperavam em casa.

Em Campinas, o Álvaro era um desses estudantes que mais frequentavam o diretório acadêmico que iam pra aula. Na época estudava Física na Unicamp. “mas já tinha meio que desistido”. Quando soube que presisavam de vendedor para o Movimento, ficou animadíssmo. “Falei, pô, tô nessa. Tô precisando de um trabalho! ‘Ah, mas é um salário mínimo só…’ Mas pra quem não ganhava nada e comia só uma vez por dia no bandejão da faculdade pra economizar…”

Em cinco anos, Álvaro foi um dos principais vendedores do jornal, organizando uma equipe em Campinas e rodando pra cima e pra baixo com seu carrão. “Rodei uns 30 mil quilômetros naquele fusquinha verde-abacate.” Vendendo assinaturas, vendendo jornal. Uma vez, o fusquinha parou. Era noite, e ele voltava de um dos seus circuitos à caça de assinantes. Outro carro bateu e ele capotou. Álvaro foi ajudado por um senhor que morava perto, e pediu para levar até a sua casa o carregamento de exemplares, talões de assinatura, faixas e cartazes do Movimento.

“Ficamos lá esperando chegar o fusquinha da rádio patrulha pra fazer a ocorrência. Estávamos nesse papo quando dali a pouco chegou a polícia. Um caminhão da tropa de choque. Desceu a tropa de choque imediatamente, um caminhão inteiro, perguntando:

—Quem é o cara?

O sujeito da casa:

—É ele.

Fui algemado e levado até o delegado de plantão, colocaram aquele monte de papel, jornal, em cima da mesa e ficaram ali com uma cara até de orgulhosos. O delegado pegou uma edição do jornal e começou a folhear com atenção. Folheou, folheou, depois pegou outro, folheou, folheou… até que ele virou e falou:

—Vocês apreenderam isso aqui porque vocês acham que isso é subversivo? Subversivo é o preço do feijão!.

O governo militar usava e abusava dos meios que tinha pra jogar seu xadrez, fazer os jornalistas do Movimento recuar. A ficha de Raimundo Pereira no DOPS é de abismar: páginas e páginas descrevendo encontros, eventos, palestras em que o editor era seguido pelos arapongas, com detalhes sobre o que ele falou, com quem estava, a que horas. A repressão não dava sossego.

Em 17 de abril de 1978, a sucursal do Rio foi invadida, os arquivos revirados e um recadinho deixado na parede: “tem que fechar”. Pouco mais de um mês antes, em Curitiba, a colaboradora Juracilda Veiga, de 21 anos, foi sequestrada na rua, saindo de uma escola onde dava aula. Ficou 24 horas nas mãos dos policiais. Encapuzada. Foi interrogada, ameaçada e torturada com choques elétricos. Queriam levá-la pra São Paulo para “bater um papinho com o delegado Fleury”; desistiram pela pressão da Igreja, dos estudantes e professores, que pararam Curitiba. A menina foi solta no meio da estrada, no estado de São Paulo, entre a capital e a cidade de Registro. Viva por sorte.

Em Campina Grande, onde nem sucursal direito tinha, só um grupo de universitários tentando organizar o Movimento estudantil, a PF foi atrás de uma edição apreendida que acabou chegando ao DCE da Universidade Federal da Paraíba. Antônio Felinto Neto era o vendedor na cidade:

“Eu tinha jornais ali comigo, a polícia chegou à paisana:

—Bora, entra.

Tinha uma menina que trabalhava com a gente secretariando. Aí ela disse:

—Ah, não, eu vou junto.

Quando a gente vai descendo, o Carlos Alberto, que era o presidente do diretório acadêmico, vem vindo.

—Estamos sendo presos e eu disse que a gente só tinha 30 jornais.

Ele veio junto para o fusca da polícia. Quando a gente chegou na delegacia, que ficava no térreo da Câmara de Vereadores, o cara já chegou assim:

—Trouxe todo mundo. E o outro, com uma cara de ‘quem mandou?’

Por volta das seis da tarde, a gente já estava sendo interrogado: botava um pra uma sala, outro pra outra… Aí chega o diretor da faculdade, Sebastião Guimarães Vieira. Cara corajosíssimo.

Já chegou perguntando:

—Fizeram alguma coisa de mau pra vocês?

Só saiu de lá com os três”.

A notícia repercutiu. No dia seguinte, uma assembleia chamada pelos estudantes publicou uma carta de repúdio, que foi lida na Assembleia Legislativa local e na capital. Até o arcebispo José Maria Pires, o “Dom Pelé”, deu ordem de ler a carta em todas as missas. A imprensa local deu, a regional também deu. “Saiu até na rádio central de Moscou”, diverte-se Antônio.

Mesmo sob a fuça da repressão, os grupos de apoio que o jornal tinha em dezenas de cidades contaram com gente muito boa e contribuíram pra a formação de uma geração de políticos.

Gente muito boa, como o seringueiro e ativista Chico Mendes, vendeu o jornal Movimento. Chico buscava exemplares cada vez que ia a Rio Branco, para redistribuir em Xapuri. Quando ele mesmo não ía, um pequeno pacote, com 20 a 30 jornais, era enviado de ônibus para a sede do Sindicato dos Trabalhadores Rurais da cidade. Júlio Nicácio Lima, assessor do Chico (que na época era vereador pelo MDB), diz que os dois saím em Xapuri pra vender de mão em mão. “A gente vendia em Xapuri para as pessoas que eram mais ligadas à gente, pessoal da Igreja, professores. Tinha uns comerciantes também, normalmente os pequenos comerciantes eram seringueiros que tinham vindo do seringal e montado um pequeno comércio na cidade.” Ali, na época, só tinha jornal de direita. “Estavam lá pra defender o interesse dos patrões, dos latifundiários, e não divulgavam nada dos conflitos agrários. E o Movimento, que divulgava conflitos existentes, dava visibilidade ao nosso Movimento. O problema era o mesmo que em outros lugares: a gente brigava pela reabertura democrática, contra os militares, então o posicionamento era o mesmo. Era só em outro lugar, mas semelhante.”

Outro que batalhou pra vender o Movimento, mas na periferia de São Paulo, foi o operário Santo Dias, também um mártir da briga pelos direitos dos mais pobres. Chico Mendes foi assassinado em 1988, Santo foi nove anos antes. Hoje em dia, poucos conhecem o nome desse metalúrgico que ajudou num dos maiores Movimentos populares da década de 70, o Movimento do Custo de Vida, liderado por donas-de-casa da periferia que conseguiram provar com pesquisas feitas de casa em casa que o governo militar não só mentia, como sacaneava o povo: em 73, registrou que a alta nos preços tinha sido de 13,7%, quando na verdade foi de 26,68%. Como a conta era usada como base para os aumentos anuais de salários, o engodo comeu boa parte do dinheiro da população. “Os preços subiram pelo elevador, enquanto o salário pela escada”, explicou o jornal Movimento.

Santo Dias participou também da reorganização dos sindicatos, quando os diretores eram escolhidos pelos militares, os famosos “pelegos”. Em novembro de 1979 foi assassinado durante uma greve, na frente de uma fábrica, pelas costas, pela polícia.

Luciana Dias, filha do Santo, contou que o Movimento foi uma coisa muito presente na sua infância. “Eu lia à noite, que o meu pai pedia para ler alguns textos em casa para saber como estava a leitura. Ele fazia acompanhamentos esporádicos porque participava de muita reunião, articulação, então às vezes chegava à noite e dizia, ‘lê o boletim do sindicato, lê esse artigo do Movimento, e vamos ver o que você entendeu’. E eu lia. E choraaaava…”.

O jornal incentivou muitas outras figuras, estudantes que depois virariam políticos cachorro grande. Sérgio Motta, ministro da Comunicação no governo FHC, ajudava a administrar o jornal; Tarso Genro, ministro da Justiça de Lula, apoiava quando era estudante em Santa Maria (RS), Aldo Rebelo, ex-presidente da Câmara dos Deputados, foi correspondente e vendedor em Alagoas; outro vendedor, e dos bons, foi Nilmário Miranda, ex-secretário nacional dos Direitos Humanos; e também Dante de Oliveira, pai da emenda das Diretas Já. O próprio Lula chegou a ser do Conselho Editorial.

Mas a delícia mesmo de fazer esse livro tem sido conhecer os outros, aqueles que nunca saíram na tevê, cujos nomes não estão em nenhum memorial e cuja vida, dedicada a uma causa (quase) impossível, foi tocada pelo jornal, mudada por causa do jornal, e virou histórica mesmo sem História ser.

Hoje eles estão aí, sentados em um restaurante, sem emprego possível, morando em alguma casinha no interior de São Paulo e ouvindo ainda a rádio Xinhua, que mantém um programa em português para defender ardorosamente o comunismo chinês, limpando o pó dos arquivos amarelados que guardam como lembrança. Um deles, metódico, fez um gráfico da sua vida, comparando altos e baixos: o melhor ano foi 1978, ano em que casou, nasceu o primeiro filho—e acabou a censura no Movimento.

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Saiba mais sobre o livro “Jornal Movimento- Uma Reportagem” em

http://jornalMovimento.wordpress.com/

Fonte: www.viceland.com.br

http://www.viceland.com/br/v2n4/htdocs/o-movimento-domovimento-397.php?page=1