Os jornais do Rio Grande do Sul do dia 25 de agosto de 1961 publicavam na capa a vinda do presidente da República, Jânio Quadros, informando que ele permaneceria em solo gaúcho por cinco dias e despacharia do quartel do III Exército, em Porto Alegre. Mas o que não se sabia é que as manchetes ficariam velhas ainda pela manhã.

Foi neste mesmo dia 25, uma sexta-feira, depois de participar das comemorações do Dia do Soldado, em Brasília, que o então presidente surpreendeu os brasileiros ao anunciar a sua renúncia. A notícia trouxe repercussão imediata e colocou dúvida sobre os rumos do País.

A carta de renúncia era pouco esclarecedora e deixou ainda mais margem à especulação sobre os reais motivos da decisão de Jânio:

“Fui vencido pela reação e assim deixo o governo. Nestes sete meses cumpri o meu dever. Tenho-o cumprido dia e noite, trabalhando infatigavelmente, sem prevenções, nem rancores. Mas baldaram-se os meus esforços para conduzir esta nação, que pelo caminho de sua verdadeira libertação política e econômica, a única que possibilitaria o progresso efetivo e a justiça social, a que tem direito o seu generoso povo. Desejei um Brasil para os brasileiros, afrontando, nesse sonho, a corrupção, a mentira e a covardia que subordinam os interesses gerais aos apetites e às ambições de grupos ou indivíduos, inclusive, do exterior. Forças terríveis levantam-se contra mim, e me intrigam ou infamam, até com a desculpa da colaboração”, escreveu Jânio no primeiro trecho da carta.

Por coincidência ou não, a renúncia ocorreu enquanto o vice-presidente João Goulart estava em missão oficial na China, situação que serviu de pretexto para obstaculizar a sua posse na presidência da República, levando o País à instabilidade democrática, sob ameaça de um golpe militar.

O presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzili, assumiu a presidência da República. Jânio permaneceu isolado na base aérea de Cumbica (SP), enquanto aguardava embarque de navio para Europa.

No Rio de Janeiro, o marechal Henrique Teixeira Lott lançou um manifesto pela Legalidade, censurado no País, mas divulgado no Rio Grande do Sul. Os militares, liderados pelo ministro da Guerra, Odylio Denys, se mobilizaram para evitar a posse de Jango.

Leonel Brizola foi o primeiro governador a levantar a bandeira da legalidade pela posse do vice-presidente. No mesmo dia, discursou de uma janela do Palácio Piratini e afirmou que a carta-testamento de Getúlio Vargas – do dia 24 de agosto de 1954 – “nunca como agora adquire tanta atualidade”.

A referência é por conta de, na carta renúncia, Jânio mencionar as ambições do exterior. Getúlio, na carta-testamento divulgada sete anos antes, havia escrito que lutou “contra a espoliação do Brasil”.

Brizola sustentou sua fala ao público na Praça da Matriz defendendo a soberania nacional: “O soldado brasilerio não aceita a condição humilhante de ser feitor de um país estrangeiro”.

A Folha da Tarde lançou edição extra de 64.500 exemplares abordando a renúncia de Jânio. Trabalhadores e estudantes se mobilizam. No dia 26, sábado, começou a funcionar o Comitê Popular Pró-Legalidade, instalado no prédio público Mata-Borrão, na esquina da avenida Borges de Medeiros com a rua Andrade Neves.

Comunicação foi decisiva na resistência

No dia 27 de agosto de 1961, um domingo, Brizola fez seu primeiro manifesto pela resistência transmitido pelo rádio.

“O governo do Estado do Rio Grande do Sul cumpre o dever de assumir o papel que lhe cabe nesta hora grave da vida do País. Cumpre-nos reafirmar nossa inalterável posição ao lado da legalidade constitucional. Não pactuaremos com golpes ou violências contra a ordem constitucional e contra as liberdades públicas. Se o atual regime não satisfaz, em muitos de seus aspectos, desejamos é o seu aprimoramento e não sua supressão, o que representaria uma regressão e o obscurantismo.”

No decorrer do domingo, o governador requisitou os transmissores da rádio Guaíba e liderou, a partir do Palácio Piratini, a Rede da Legalidade, repreduzindo seus discursos dos porões da sede do governo, onde funcionava o setor de imprensa, para uma cadeia de mais de 200 emissoras, inclusive fora do Rio Grande do Sul.

A mobilização pela Rede da Legalidade tomou grandes proporções e conquistou o apoio da população, que foi às ruas disposta a pegar em armas.

Na segunda-feira, dia 28, ainda vigorava no País o feriado bancário determinado pelo Ministério da Fazenda para deter a grande corrida aos guichês e a queda no volume de depósitos bancários, como contam os jornais da época. Na Capital, o dia amanheceu com a Praça da Matriz, em frente ao Palácio Piratini, tomada de pessoas que queriam resistir junto com o governador. A mutidão se multiplicou após o discurso inflamado de Leonel Brizola na Rádio Guaíba às 11h da manhã. Ao final da fala, que durou pouco menos de uma hora, milhares haviam se dirigido à frente do Palácio Piratini.

Havia ordens da cúpula das Forças Armadas para bombardear a sede do governo, o QG do líder da Campanha da Legalidade. Brizola se valeu dos microfones da rádio para falar à população, num discurso emocionado e inflamado, como ilustra esse trecho:

“O Palácio Piratini, meus patrícios, está aqui transformado em uma cidadela, que há de ser heroica, uma cidadela da liberdade, dos direitos humanos, uma cidadela da civilização, da ordem jurídica, uma cidadela contra a violência, contra o absolutismo, contra os atos dos senhores, dos prepotentes. (…) Aqui se encontram os contingentes que julgamos necessários. Da gloriosa Brigada Militar – o Regimento Bento Gonçalves e outras forças. Reunimos aqui o armamento de que dispúnhamos. Não é muito, mas também não é pouco para aqui ficarmos preocupados frente aos acontecimentos. Queria que os meus patrícios do Rio Grande e toda população de Porto Alegre, todos os meus conterrâneos do Brasil, todos os soldados da minha terra querida pudessem ver com seus olhos o espetáculo que se oferece”.

O Exército estava de prontidão, a Praça da Matriz ocupada pela população e o Palácio Piratini defendido por trincheiras armadas pela Brigada Militar. O comandante do III Exército, general Machado Lopes, chegou à sede do governo e, ao contrário do que se poderia esperar, não se subordinou às ordens dos ministros militares, aderindo à Campanha da Legalidade.

Assim, como nunca se soube as reais intenções da renúncia de Jânio, sempre pairou dúvida sobre o que teria motivado a decisão de Machado Lopes de evitar o ataque do Exército, se por convicção legalista ou se pela percepção de que haveria um derramamento de sangue popular com repercussão negativa para as Forças Armadas.

Emenda parlamentarista teve aprovação em 2 de setembro

Na terça-feira, 29 de agosto de 1961, os ministros militares insistem em não admitir a hipótese de posse de Jango, que ainda está em processo de retorno da China ao Brasil. Em Paris, o vice-presidente admite a possibilidade de uma saída parlamentarista para a crise. Em meio à ameaça de bombardeamento do avião de Jango, ele evita o espaço aéreo brasileiro e chega a Porto Alegre por Montevidéu, na noite do dia 1 de setembro. Uma multidão o recepciona no Palácio Piratini. No Congresso Nacional, avança a proposta de parlamentarismo. O deputado federal Tancredo Neves, que em Montevidéu havia se reunido com Jango, é o articulador da emenda que abre caminho para a posse, mas também traz restrições de poder ao presidente. Aprovada em 2 de setembro, a proposta precisa ser submetida a plebiscito para entrar em vigor. Com a solução já à vista, Brizola anuncia o fim das transmissões da Rede da Legalidade, no dia 4 de setembro. No dia seguinte, Jango parte de Porto Alegre em direção à capital federal e toma posse no dia 7 de setembro.

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Fonte: Jornal do Comércio