Que tempos extraordinários estes que estamos vivendo. É como se as páginas da História de recusassem a escrever com a mesma tinta, com a mesma cor e, acima de tudo, com a mesma mão. Os sinais de caos e convulsões iminentes, tão vividamente acessíveis em imagens de telejornais e em vídeos na internet, podem agora ser discernidos, na medida em que, lastimavelmente, a ordem predominante demonstra ser defeituosa.

Os defeitos existentes na ordem prevalecente estão patentes na incapacidade manifestada pelos Estados soberanos, organizados nas Nações Unidas, em exorcizar o espectro da guerra, a ameaça – já presente – de um colapso da ordem econômica internacional, o alastramento da anarquia e do terrorismo, e o sofrimento intenso que estas e outras aflições estão causando a um número crescente de seres humanos.

O potentado norte-americano foi rebaixado em sua “capacidade de honrar compromissos financeiros”, de “ótimo” (AAA) desceu para “bom” (AA). E, em uma economia profundamente desorganizada, foi o sinal para que Bolsas de Valores de todo o mundo despencassem. A gravidade é de tal monta que a China emitiu notas veementes expressando grave preocupação com a capacidade de o governo dos Estados Unidos vir a honrar sua dívida com o gigante asiático.

As economias da Grécia, Portugal e agora, a da Espanha, encontram-se em petição de miséria: o Estado não consegue produzir riquezas para manter seu “padrão insustentável de consumo” e muito menos sua atividade econômica capaz de manter alguma forma de estabilidade nos índices de emprego de suas populações. Há poucos quilômetros do centro de Londres, nesta primeira semana de agosto de 2011, parte da população dos subúrbios promoveu incêndios e saques de lojas e residências, além da depredação de edifícios públicos. Exatamente aquela parte da população que não recebeu os benefícios do Welfare State, do Estado do Bem-estar Social e que engrossa as estatísticas, sempre alarmantes, de pobreza e miséria em meio à opulência e aos desperdício de uma minoria, que na Europa, acostumara-se a viver nababescamente, alimentando suas ilhas artificiais de consumo de bens supérfluos.

Bem, este panorama retrata apena breves vislumbres dos países desenvolvidos, aqueles que sempre estiveram na vanguarda do progresso econômico, científico e tecnológico. Aqueles que exportaram seus idiomas como quem exporta calçados e levaram seus padrões de consumo a limites insuportáveis não apenas para uma nação ou região, mas sim, para todo o planeta.

Nosso olhar que mira o chamado mundo de primeira classe com certo grau de perplexidade mira também a maioria da população mundial que desde que o mundo assim foi traçado nos mapas-múndi entravam na História apenas e unicamente pela porta dos fundos, pela entrada de serviço, contingentes populacionais com baixa escolaridade, alta mortalidade infantil, renda per capita subhumana e expectativa de vida inferior aos 35 anos de idade. É quando vemos parte considerável do Oriente Médio conflagrado: O longevo presidente egípcio Hosni Mubarak encontra-se preso em dependências hospitalares do Cairo. A Líbia vive já clima de guerra civil. E o Irã está com as barbas imersas em molho de urânio. Mas a escalada dos “ventos do desespero” parecem ainda longe de cessar.

A Arábia Saudita, o Bahrein e o Kuwait decidiram retirar os embaixadores de Damasco (Síria) e o Conselho de Cooperação do Golfo e a União Europeia preparam-se para tomar atitudes contra o regime. E, quem diria?, nota da diplomacia saudita afirmou que “é tempo de parar esta máquina de morte, porque é inaceitável o que se tem passado na Síria”. A verdade é que o mais recente massacre na Síria, resultou em mais de 140 pessoas mortas por tropas do ditador Bashar al-Assad. O número de mortos ultrapassam os 2.000.

É o mesmo olhar que podemos lançar sobre o continente mais espoliado, saqueado e injustiçado da história humana: a África. O Chifre da África está imerso em uma devastadora crise de fome que afeta mais de 11 milhões de pessoas em consequência das poucas chuvas e dos efeitos da mudança climática na região, o que no caso da Somália se vê agravado pelo conflito e a falta de um Governo efetivo no país. O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) enviou nesta segunda-feira (9/8/2011), pela primeira vez em cinco anos, um avião com ajuda humanitária a Mogadíscio, a capital da Somália, localidade declarada em emergência máxima no momento. Mas também no sul da Somália (onde a ONU declarou estado de crise de fome em duas regiões em 20 de julho), a situação é aterrorizadora, agravada principalmente porque a maior parte do sul da Somália está sob controle do grupo islâmico radical Al-Shabaab, vinculado à rede terrorista Al-Qaeda, e que combate o Governo Federal de Transição da Somália – apoiado pela comunidade internacional – para instaurar estado muçulmano na região. A maioria dos refugiados somalis que se deslocam até os acampamentos de Mogadíscio e do Quênia e Etiópia chegam até lá levados pela fome.

A imprensa nacional parece desnorteada. É que o Brasil passou tempo demais louvando o “way of life” norte-americano e desprezando, tanto quanto, possível um possível “jeito de ser brasileiro”. As conquistas e os indicadores econômicos norte-maericanos e europeus sempre receberam mais espaço nos telejornais e mais colunas de louvação explícita em nossa mídia imprensa. O contraste se dava sempre com o Brasil: dívida externa descontrolada, abismo muito dilatado entre poucos ricos e muitos miseráveis, dependência de petróleo, corrupção endêmica nas três esferas de governo. Mas os mesmos ventos do desespero desarrumaram a sala de visita do mundo e fizeram a proeza inimaginável: a cozinha veio para a sala e a sala, muito a contragosto, foi arrastada para o quintal da casa.

Em outras palavras, a situação se inverteu de um jeito que é como se a cabeça de redatores, editores, penas de aluguel de jornais e revistas e também apresentadores e comentaristas de telejornais e de emissoras de rádio simplesmente se recusassem a pensar. Tudo porque a opulência dos muito ricos não passava de frágil aparência de normalidade, a correção de suas finanças – sempre muito bem arrumadas e reputadas por agências de risco com a difusão de AAA a torto e a direito – não passava de fachada para esconder a penúria de seus números e a engenhosidade mal disfarçada de suas tenebrosas transações contábeis e financeiras.

O Brasil pagou sua crônica dívida externa com o Fundo Monetário Internacional e com outros organismos financeiros internacionais já há alguns anos e mantém reservas internacionais da ordem dos US$ 380 bilhões. Os Estados Unidos trava luta de foice no escuro para… elevar em mais 3,5 trilhões de dólares seu limite – já estratosférico – de endividamento externo.

A disparidade de renda no Brasil foi intensivamente alterada. Para melhor. Em 2010, cerca de 19 milhões de brasileiros ascenderam à classe C, que já é integrada por 52% da população brasileira. Ao todo, são 101 milhões de pessoas a ocupar a classe intermediária da sociedade de consumo. Nos últimos anos passamos a ser suficientes na produção de petróleo, mas, dirão os obtusos de sempre “não somos ainda na gasolina refinada”. O Brasil descobriu no mar o seu verdadeiro Eldorado, buscado com veneração pelos europeus em nossas selvas amazônicas em séculos passados. É a camada pré-sal, este gigantesco reservatório de petróleo e gás natural, localizado nas Bacias de Santos, Campos e Espírito Santo.

E a corrupção, tão apreciada por nossa imprensa, como quase um “símbolo-mor” da Pátria, como se apresenta se comparada com os eventos tempestuosos de 8 de setembro de 2009, iniciados com a quebra do Lehmann Brother. As fraudes no sistema financeiro estadunidense passaram a ser vistas pelo homem da rua. Seus balanços eram forjados. Apenas para ilustrar, é preciso destacar que o Lehamn afirmava no pedido de concordata que, no final de maio de 2009 tinha ativos de US$ 639 bilhões e dívidas de US$ 613 bilhões. Porém, a verdade era bem outra: o banco tinha um capital de apenas US$ 15 bilhões o que desnudou o elevadíssimo grau de alavancagem a que chegou. Há que se ter em mente que Bancos comerciais são obrigados a seguir uma regulamentação internacional na qual essa relação não pode superar 12 vezes o capital.

Fato é que no decorrer das semanas o “probleminha dos Lehmann Brrothers” mostrou ser apenas a ponta do terror econômico: O Federal Reserve Bank dos Estados Unidos injetou US$ 70 bilhões ás instituições financeiras; o Banco Central Europeu injetou US$ 99,4 bilhões em 16 de setembro, mais do que o dobro do dia 15 (US$ 42 bilhões); o BC japonês ofereceu US$ 24 bilhões – o da Austrália US$ 1,5 bilhão, o da Rússia um volume recorde de US$ 18 bilhões. Com a crise os bancos relutavam em emprestar entre si, obrigando às intervenções dos bancos centrais. É fato também que, no total, e em dois dias, foram injetados US$ 250 bilhões pelos Bancos Centrais nos mercados financeiros. E olha que não estou abarcando neste artigo os casos Fannie Mac, Freddi Mac e a a seguradora AIG – American International Group, a maior do mundo no segmento e com rombo inicial de US$ 50 bilhões. E isto porque faço vista grossa com a escabrosa corrupção protagonizada pelas meliantes Eron e World Com.

E, obviamente, tal façanha é noticiada em El Pais, na Economist, na Der Spiegel ou no Le Monde, mas dificilmente ocupará míseros trinta segundos nos telejornais da noite brasileira, e menos ainda, ocuparão notas de rodapé em revistas semanais como Veja e Época. Para a CBN, a chamada rádio que toca notícia, este assunto não será tocado nem nos noticiários e muito menos nos comentários de Merval Pereira, Lucia Hippolito ou de Miriam Leitão. O pensamento do mundo foi alterado e apenas os meios noticiosos não perceberam. Nem em sua profundidade nem em sua extensão.

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Washington Araújo é jornalista e escritor. Mestre em Comunicação pela UNB, tem livros sobre mídia, direitos humanos e ética publicados no Brasil, Argentina, Espanha, México. Tem o blog http://www.cidadaodomundo.org Email – [email protected]

Fonte: Carta Maior