O contágio para o núcleo da eurozona era inevitável devido a um ingrediente potencialmente tóxico profundamente embutido no interior da base de financiamento da EFSF; não devido à sua dimensão (reconhecidamente pequena). Se bem que tudo isto tenha sido dito antes (ver aqui e aqui ), as autoridades superiores não ouviram, a crise intensificou-se como era previsível e chegou o momento de dizer outra vez as mesmas coisas, talvez com um pouco mais de análise extra. [Os leitores com aversão à álgebra e à geometria são aconselhados a dar uma olhadela ao diagrama da teia de aranha e saltar para a conclusão].

O rácio tóxico dentro dos fundamentos do EFSF

O rácio dívida-PIB dos estados-membros da eurozona é o precursor de maus ventos. Especialmente durante uma crise de dívida, todos os olhos estão voltados para a dimensão daquele rácio e para a taxa de crescimento do país. Se a taxa de crescimento de estados-membros com um alto rácio dívida-PIB cai abaixo de um certo nível, os spreads aumentam e uma corrida aos títulos do país é apenas uma questão de tempo. Uma vez principiada a corrida, a reacção automática de introduzir medidas de austeridade comprime outra vez o crescimento do PIB o que piora o problema e torna mais feroz a corrida aos títulos do estado-membro. A partir desse momento, das duas uma: ou o país entra em incumprimento ou é salvo pelo resto da eurozona.

Foi isto que aconteceu, por muito diferentes razões, a todos os estados-membros da eurozona até agora "caídos" (Grécia, Irlanda e Portugal) e é a situação aflitiva actualmente sentida em Roma e Madrid (com a Bélgica e a França não muito atrás).

A criação do EFSF foi imposta à Europa pela irrupção da Crise. Uma vez que a Alemanha aceitou que a queda da periferia assinalaria o fim da eurozona, procurou-se um organismo financeiro que concedesse empréstimos aos "fracassados" mas sem por em perigo o princípio das dívidas perfeitamente separáveis (perfectly separable debts, PSDs). PSD significa uma coisa: Cada euro de dívida pública da eurozona, incluindo aquela que se incorreu para salvar o "caído", deve ser assinalado a um e apenas um estado-membro. Na prática, isto significa que, para permanecer fiel ao princípio PSD, cada título emitido de EFSF incluiu partes ou fatias de dívida e cada uma delas era o passivo de um único estado-membro "doador" da eurozona.

Um subproduto desta estrutura tóxica foi que um novo rácio dívida-PIB, particularmente estranho, entrou discretamente nas nossas vidas. Deixe-me explicar. Suponha que dos N estados-membros, F (3 por exemplo, como é o caso no momento em que escrevo) "caíram" fora dos mercados monetários e no seio do EFSF. O EFSF deve então financiar totalmente as suas dívidas até que a Crise termine. Para assim fazer ele deve procurar garantias de empréstimo junto aos N-F estados-membros ainda solventes. É extremamente fácil mostrar que a contribuição (como parte do seu PIB) dos N-F estados-membros solventes para com os estados-membros "caídos", vamos chamá-los áF (onde o subscrito indica o número de estados "caídos" que devem ser suportados), igualiza alguns novos rácios dívida-PIB. O numerador é a dívida total dos "caídos" e o denominador é o PIB total dos estados-membros ainda solventes. ( Ver aqui uma prova sumária ). A razão porque optei por chamar áF a um rácio tóxico é que, a cada estado-membro que "fracassa", este rácio aumenta mesmo se o PIB e as dívidas permanecerem os mesmos. Além disso, toda nova baixa promove o rácio tóxico áF e garante que ainda outro estado-membro juntar-se-á à fileira dos "caídos". E como se isto não fosse bastante, nada pode parar este processo enquanto tudo o mais permanecer o mesmo. Incluindo a dimensão potencial do EFSF. A próxima sessão explica plenamente esta dinâmica.

O explosivo EFSF e a sua teia venenosa

Esta secção deve ser lida em conjunto com o diagrama em cruz acima. O objectivo de qualquer diagrama em cruz é combinar quatro diagramas em um de uma maneira a tornar mais fácil ver as interconexões entre as suas partes. Para ler este diagrama em cruz particular, é favor notar que todos os eixos são positivos. Por exemplo: na parte direita em baixo do diagrama, um movimento de descida significa um aumento do α(F). Analogamente, na parte superior esquerda, um movimento para a esquerda significa um aumento em s, os spreads médios da eurozona. Tendo estabelecido estas convenções simples, é tempo de definir nossos quatro eixos.

Topo direito do diagrama: O eixo horizontal conta o número de estados-membro solventes. No princípio, isto é, pouco antes de a Crise começar, todos os N estados-membro caem naquela categoria. Após a "queda" do primeiro estado-membro (isto é, a Grécia), o número de estados-membros solventes diminui para N-1 (ver o eixo horizontal) uma vez que o número de estados "fracassados" F (ver o eixo vertical) subiu para um. A cada estado-membro que "fracassa" subimos uma marca na linha reta.

Base direita do diagrama: Aqui encontramos o relacionamento entre o rácio tóxico α(F) do EFSF e o número F de estados-membro "caídos". A cada novo estado-membro que "cai", movemo-nos para a esquerda do eixo horizontal e α(F) sobe juntamente com a curva vermelha grossa. Isto significa simplesmente que quanto mais países caírem presa da Crise, e exigirem salvamentos oficiais dos restantes, os países solventes remanescentes enfrentam uma ascensão do α(F). Dito de forma diferente, o rácio das dívidas que o solvente agora deve garantir sobre o seu PIB agregado aumenta mesmo se a dívida agregada e o PIB agregado da eurozona permanecem os mesmos (na verdade, mesmo se o rácio dívida-PIB agregado da eurozona for constante ou estiver em queda!).

Base esquerda do diagrama: O novo eixo acrescentado aqui (que corre do centro do diagrama cruzado para a esquerda) é a média dos spreads da taxas de juro (isto é, a diferença média das taxas de juro do estado-membro em relação à mais baixa taxa de juro na eurozona, isto é, a da Alemanha) dos estados ainda solventes da eurozona. O que acontece quando α(F) aumenta em resposta à "queda" de um estado-membro que recentemente fez a transição penosa de ser um doador do EFSF para passar a recipiente do EFSF? A resposta simples é: Os spreads da taxa de juro aumentam por toda a eurozona. Esta simples verdade é capturada aqui por uma curva azul sα. Exemplo: Quando a Irlanda "caiu", α subiu e os mercados ficaram mais nervosos acerca da capacidade de Portugal, o novo estado-membro marginal, para arcar não só com a sua própria dívida como também com o fardo acrescentado da sua contribuição para o salvamento irlandês. Mercados, nestas circunstâncias, reagem (naturalmente) empurrando para cima os spreads de países ainda solventes com um alto rácio dívida-PIB e um crescimento relativamente moroso. Portanto, relacionamento positivo entre α(F) e s nesta parte do nosso diagrama em cruz.

Topo esquerdo do diagrama: Cada estado-membro tem um limite para além do qual não pode refinanciar sua dívida existente quando as taxas de juro que precisa pagar alcançam um certo patamar. Foi o que aconteceu à Grécia em Maio de 2010, à Irlanda uns poucos meses mais tarde, a Portugal na Primavera de 2011 e, em breve, acontecerá à Espanha e Itália (os quais ficarão sem dinheiro em Setembro de 2011 e Fevereiro de 2012, respectivamente). Nesta parte final do diagrama, a suposição é que os spreads médios anteriores à crise equivalham a s 0 . Os outros valores de s, s i , representam o nível de spreads médio do estado-membro ainda solvente i acima do qual ele também "cai" e junta-se à lista EFSF de estados recipientes.

Vamos agora utilizar este diagrama para responder às questões originais: Por que a Itália e a Espanha? E por que a dimensão real do EFSF é irrelevante? Vamos começar nossa explicação nos dois pontos que o diagrama marca como pontos de partida: No topo direito do diagrama ele aponta N no eixo horizontal (correspondente à condição inicial quando nenhum estado-membro havia ainda "caído") enquanto no topo esquerdo do diagrama está o spread nível s 0 da taxa de juro média da eurozona (no eixo horizontal). Por razões que não discutirei aqui, em algum ponto os spreads médios começaram a subir perto do fim de 2009. Quando atingiram o nível s 1 , isto disparou a crise grega e, após muitas experiências e atribulações, o salvamento grego de Maio de 2010. Uma vez caída a Grécia, a contribuição média de cada um dos estados-membros remanescentes, a qual até então equivalia a zero, subiu para o nível α1. O resultado foi um novo aumento nos spreads médios até que s atingiu s 2 , provocando então a "queda" da Irlanda. O leitor pode traçar a seta contínua que começa em s 0 (ver topo esquerdo do diagrama), virar à esquerda para s 1 , saltar então até que F ascenda de 1 para 2 (isto é, a Irlanda juntar-se à Grécia – ver topo direito do diagrama), então progredir para a base direita do diagrama empurrando α para α2 antes de migrar outra vez para a base direita do diagrama onde empurra os spreads médios para s 3 , um nível que lança Portugal no abismo, etc, etc.

Há dois pontos a notar aqui, antes de irmos às minhas observações conclusivas:

Primeiro, o melhor que podemos dizer acerca dos nossos líderes europeus é que talvez eles tenham esperado que o gradiente da curva s(α) demonstrar-se-ia menos íngreme e, portanto, podia ter impedido a ocorrência da explosão da teia de aranha. Se assim for, eles deviam ter tido melhor conhecimento. Pois a inclinação desta curva não está gravada em pedra mas é baseada na psicologia dos mercados. Em vista da incerteza bruta a nível global, embutir um rácio tóxico, como α(F), nos fundamentos do seu aparelho anti-Crise (o EFSF) é procurar perturbações.

Segundo, a Alemanha e o resto dos países excedentários esperavam que as garantias de empréstimos oferecidas ao EFSF nunca precisassem transformar-se em transacções reais de cash. Isto, na verdade, assim seria se o EFSF tivesse uma estrutura coerente: se a sua própria instituição houvesse impedido jogos especulativos dos traders do mercado, os contribuintes alemães nunca teriam tido de pagar os euros associados às garantias de empréstimos ao EFSF. Mas, com o tóxico α(F) embutido dentro dos fundamentos do EFSF, os mercados reconhecem a forma do diagrama em cruz acima. E nada os agrada mais do que uma oportunidade para apostar contra uma incrível ameaça, promessa ou previsão oficial. Ainda que só por esta razão, era a insânia personificada imaginar que a curva α(F) pudesse inclinar-se ainda que ligeiramente para ajudar a conter o contágio. Em suma, nossos líderes deviam ter feito melhor.

Conclusão

Na sua tentativa de preservar o princípio PSD (a ideia de que todas as dívidas da eurozona devem ser separáveis e atribuíveis a um único estado-membro) a Europa recorreu a um monstro tóxico para resolver uma Crise existencial. O monstro naturalmente não é outro senão o EFSF e a Crise é a dinâmica negativa que ameaça convincentemente desconstruir a eurozona. Por que o EFSF é um monstro que é mais provável que destrua do que salve a eurozona? Porque é uma instituição que, nomeadamente, procura, em meio a uma crise de dívida, promover o rácio das dívidas que os estados-membro solventes devem garantir sobre os seus PIB agregados mesmo se a dívida agregada e o PIB agregado da eurozona permanecerem os mesmos (na verdade, se o rácio agregado dívida-PIB da eurozona for constante ou estiver em queda!).

A esta luz, a única surpresa de que a Itália e a Espanha agora se encontrem a centímetros de um programa EFSF é que muitos estejam… surpreendidos por este rumo dos acontecimentos. A primeira razão porque a sua surpresa é inapropriada é que a estrutura tóxica em teia de aranha da EFSF, a qual é a causa raiz do contágio inexorável, permaneceu intacta. A segunda razão é que o mais recente salvamento da grego (ver aqui minha avaliação anterior) coloca o EFSF existente sob uma tensão ainda maior e portanto aumenta sua toxicidade (aumentando mais uma vez o gradiente da curva á(F) no diagrama em cruz anterior). Com efeito, a uma frágil e combativa estrutura foi assinalada uma carga ainda mais pesada. Será de admirar que a teia venenosa da Crise esteja a propagar seu alcance como num leilão para apanhar primeiro a Espanha e a seguir a Itália?

A maior parte dos comentadores sobre o segundo salvamento grego consideraram positivamente os termos mais fáceis concedidos ao primeiro e o mais desastroso dos "caídos". Eles também fizeram resmungos polidos acerca da extensão da cedência do EFSF em incluir uma linha de crédito flexível como a do FMI para estados-membros ainda não oficialmente "caídos". "Se apenas", acrescentam eles com tristeza, "o EFSF fosse estendido dos actuais €440 mil milhões para mais perto dos €2 milhões de milhões (trillion), a crise terminaria". Caramba, como estão iludidos! O que eles não conseguem apreender é que, no caso do EFSF, toda nova tarefa acelera o processo de descarrilamento da eurozona descrito no diagrama anterior. Os especuladores não serão afectados por um EFSF bem financiado na medida em que a explosiva estrutura em teia de aranha do diagrama em cruz for preservada. Enquanto ela permanecer ali, mais fundos para o EFSF é como mais corda para o enforcado. A Itália e a Espanha, seguida em breve pela Bélgica, estarão a rodopiar ao vento por mais bem provido que os nossos líderes decretem que o EFSF deveria estar.

O que poderia desfazer a toxicidade do EFSF e furar um buraco na sua dinâmica em teia de aranha? A resposta é: a remoção do rácio tóxico embutido no seu interior. Remova aquilo e tudo caminhará com facilidade. Mas para removê-lo, a Alemanha e o resto dos países excedentários devem abandonar o princípio PSD (o ditado de "dívidas perfeitamente separáveis) e adoptar um genuíno eurotítulo apoiado não por garantias dos estados-membros. Como se vê, estas garantias são aquilo que cria o formato em teia de aranha da actual dinâmica do EFSF. O facto de que o mais forte promete salvar o segundo mais forte o qual, por sua vez, promete salvar o terceiro mais forte, e assim por diante, cria o efeito dominó (ou, para ser mais preciso, de escalada de montanha).

Para travar o andamento desta dinâmica negativa a Europa precisa um eurotítulo comum o qual represente dívida extraída em nome da eurozona como um todo sem marcações separadas de partes desta dívida (com taxas de juro diferenciais e em face de diferentes probabilidades de incumprimento) para diferentes estados-membro. "Mas então quem garantirá estes eurotítulos?", ouço os vigilantes dos títulos perguntarem seriamente. Nossa sugestão, na Modest Proposal , é simples: Se o BCE emite estes eurotítulos a fim de financiar o serviço de fatias de títulos existentes de estados-membros e, ao mesmo tempo, abre contas a débito para estados-membros onde estes últimos farão seus reembolsos a longo prazo para o BCE (a taxas de juro que reflectem os eurotítulos emitidos pelo BCE), então a elevada reputação do BCE nos mercados globais de dinheiro (ajudado pelo conhecimento corrente de que, em última análise, o BCE tem a capacidade para monetizar dívidas) assegurará que nenhumas novas garantias virão a ser necessárias. Os investidores acorrerão a comprar eurotítulos do BCE e financiar o alívio da dívida da Europa e a sua recuperação (especialmente sob a Política 3 da Modesta proposta ).

A questão a seguir que, habitualmente, vem à mente do leitor é: Se o que está a dizer é certo, por que estão os líderes da Europa tão comprometidos com a estrutura actual do EFSF? Você pode, caro leitor, logicamente concluir que uma das duas explicações possíveis: Ou a minha argumentação é falsa ou os nossos líderes são irracionais. Mas a verdade é um pouco mais complicada do que isso e, portanto, uma terceira explicação pode ser melhor: Minha argumentação está certa e nossos líderes são racionais, embora num sentido estreito da palavra. Dito de forma diferente, seu compromisso com o abominável EFSF reflecte uma forma peculiar de idiotice racional. Meu post seguinte mostrará o que isto quer dizer e como é possível que a idiotice seja reforçada, a um nível pan-europeu, por esta forma de racionalidade estreita.

04/Agosto/2011

NR: resistir.info não precisa concordar com tudo quando publica um artigo. A publicação deste deve-se ao facto de o autor mostrar, e bem, o risco sistémico incorporado no próprio mecanismo de salvamento dos países aflitos da UE. No entanto, deve ser discutida a sua tese de que a emissão de um título único da dívida pública europeia (ao invés de títulos de dívida de cada um dos Estados membros da UE) conduziria ao salvamento do euro e sanaria o capitalismo europeu. Diga-se de passagem que uma medida dessa natureza seria um passo gigantesco no caminho para o federalismo da UE.

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O original encontra-se em yanisvaroufakis.eu//… . Tradução de JF.

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