Por um triz é um título mais que adequado. Poderia, para recorrer às minhas tentações com títulos, também receber o título No fio da navalha, que não seria impróprio, pois a sensação é também essa ao pensar no protagonista, que vive em perigo permanente, como acontece com quem combate ditaduras, com quem foge delas quando pode, com quem enfrenta exílios, com quem enfrenta torturas e prisões, com quem coloca a vida em jogo a todo instante, com quem se depara com golpes inesperados, como o do Chile.

O ritmo do texto é impressionante e a contribuição sobre o que significa a experiência da militância, das prisões, das dificuldades da clandestinidade, do exílio, dos muitos amores, das muitas frustrações, dos muitos rompimentos, de toda natureza, das mudanças contínuas, de toda natureza, a contribuição sobre tudo isso é impressionante. É provável que quem não tenha vivido tais experiências consiga apreender todo o significado delas. Mas, é claro, a leitura é mais intensa para quem viveu coisas tão semelhantes, como no meu caso.

Li como se tivesse vivido eu próprio aquelas experiências e em alguns casos, como se as vivesse novamente. O mérito é do autor, pela capacidade que tem de prender o leitor, escrevendo como um bom contador de histórias, aquele contador que sentado no fundo do quintal, à noite, com a fogueira acesa, se delicia deliciando os outros ao falar. No meu caso, acresça-se o fato de que temos histórias muito semelhantes. Por geração e geografia.

Nasci em 1946. Ricardo em 1948. Ele nasceu na cidade de São Paulo. Eu, em Jacareí, a menos de 100 quilômetros da capital. Nossa militância começa praticamente no mesmo período. E começa na capital paulista. E eu também queria fazer Ciências Sociais. Fizemos o mesmo curso para vestibular. Fiz uma seleção para estudantes pobres, tirei sexto lugar, e comecei a cursar. Tenho dúvida se foi no Equipe ou no do Grêmio da USP. Sei que era 1967 e que tive, como Ricardo, Pedro Ivo como professor – na verdade o historiador Joel Rufino dos Santos.

Como entrei para a AP no início de 1968, e não tinha prestado vestibular, me envolvi rapidamente com a luta revolucionária, fui destacado para continuar no movimento secundarista e não fui para a Universidade, coisa que só farei em 1976, depois de ter saído da cadeia. Ricardo enfrenta o vestibular em 1968, e passa a cursar Ciências Sociais na USP, e também ingressa na AP.

Ao ler o livro, me deparo com Adura, que foi o dirigente que me recrutou para a AP. Só agora, pelo livro de Ricardo, fui saber chamar-se José Antônio Adura de Miranda. Muita coisa em comum, como podem ver os leitores. E soube que Adura ainda se encontra no Canadá, para onde foi, creio no final de 1968 ou início de 1969, o que, para mim, à época, disposto à luta até as últimas conseqüências, foi uma decepção. Hoje compreendo perfeitamente.

O livro de Ricardo de Azevedo gira em torno dele, e isso não é pecado, é virtude. Não se dispôs a fazer um livro de história, mas com ela contribui, e bastante, ao se pôr no turbilhão dos acontecimentos como protagonista, que ri, chora, ama, muito, se apaixona, muito, se emociona, se enraivece – deixa transparecer o humano na história, sem medo de se revelar. Está longe de ser um trabalho que revele auto-enobrecimento ou autoglorificação. E não pretende ser uma autobiografia em sentido estrito. São confissões, revelações de um tempo em que era possível mergulhar em causas que envolviam toda a humanidade.

Consegue dizer que a opção revolucionária não é, no mais das vezes, intelectual, racional. Trata-se sempre de uma opção política, feita no calor dos acontecimentos, e dependente de circunstâncias pessoais muitas vezes insondáveis para cada um dos protagonistas, ao menos no momento em que a escolha é feita. Ele chega a valer-se de um dito antigo – “A Revolução é, sobretudo, um drama passional”. Um drama passional recortado sempre pelas singularidades pessoais.

O despertar político vem desde a adolescência e ganha contornos mais fortes em 1968, como para muitos, com a morte do secundarista Edson Luís de Lima Souto, em março, no Rio de Janeiro, quando explodem mobilizações pelo país inteiro, contra a ditadura. Nós antecipamos o maio francês. A partir daí, tudo se revoluciona. Ricardo vive a rua Maria Antônia, a greve de Osasco, experimenta a primeira e breve prisão, sente o impacto do AI-5, torna-se militante da organização revolucionária Ação Popular em 1969 e no mesmo ano, junho, é preso novamente.

E aí a barra foi bem mais pesada. Na solidão da prisão, em Cumbica, experimentou aquilo que chamávamos então de crise ideológica – imaginou abandonar a militância logo que saísse da cadeia. Quando, no entanto, foi transferido para o Presídio Tiradentes, tudo mudou. Ao lado de tantos companheiros, o ânimo voltou, e nunca mais pensou em abandonar a militância política. Sai da prisão em outubro de 1970 e retoma com vigor suas atividades como militante e dirigente da AP. Experimenta o drama da luta interna – havia uma corrente socialista, minoritária, liderada por Paulo Wright, e outra, que pretendia incorporar-se ao PC do B, liderada por Haroldo Lima, entre outros.

Reflete sobre a dureza da luta revolucionária, o impacto da repressão, as tantas prisões, o avanço da ditadura, e nota também que os informes sobre a AP não refletiam a realidade. A organização era muito menor do que se revelava. Percebe o triunfalismo das análises. O momento era de recuo, não de avanço das forças revolucionárias. E ele decide sair do País. Chega ao Chile no dia 6 de junho de 1972. E ali cruza com Tapia, nome de guerra de José Serra, ele mesmo, o ex-governador de São Paulo e então coordenador da Base Santiago da AP; com Betinho, o irmão do Henfil; com Maria José Jaime, dirigente da organização, entre tantos militantes históricos . Envolve-se no processo político chileno, em acelerado movimento de intensificação da luta de classes, luta que ganha contornos trágicos com o sangrento golpe de 11 de setembro de 1973.

Preso, passa pelo Estádio do Chile e pelo Estádio Nacional. Acaba liberado para voltar ao Brasil, onde sabia correr riscos e onde passa poucos dias. Segue para a Argentina em 23 de outubro de 1973. Em janeiro de 1974, depois de uma imersão na vida política argentina, voa para Paris. Estuda, milita, convive com vários companheiros do Brasil, como Marco Aurélio Garcia, Franklin Martins, Jean Marc, Daniel Aarão Reis Filho, Éder Sader. Uma esquerda bastante dividida, como ele ressalta.

Na Europa, vive um processo semelhante ao que vivi na prisão – o rompimento progressivo com a visão leninista, a aproximação com Gramsci, e suas noções de sociedade civil, hegemonia, guerra de posição, papel da cultura, papel da imprensa, tantos conceitos que permitiam uma visão mais clara sobre o processo revolucionário, particularmente a visão da revolução no Ocidente, pensada pelo comunista italiano, tão distante da idéia do assalto ao Palácio de Inverno.

Com as eleições de 1974 no Brasil, quando o MDB consolidou sua posição de agregador do descontentamento popular, vai amadurecendo a idéia de voltar. Mesmo clandestinamente. Sai no dia 6 de novembro de 1976, chega ao Rio de Janeiro no dia 19 do mesmo mês. Reencontra-se no dia seguinte com Dorival – Jair Ferreira de Sá –, principal dirigente de AP, que ele não via desde 1972, quando o encontrara no Chile. Surpreendeu-se não só com as análises políticas, mas com o fato de que Jair e Doralina, sua companheira e também dirigente da AP, faziam terapia, participando de um grupo de casais sob a direção do psicanalista Roberto Freire, que havia sido militante da AP. Terapia reicheana.

Mergulha com intensidade na organização ou reorganização da AP. Rapidamente é integrado à Direção Nacional e torna-se seu principal escriba, já que os demais dirigentes não gostavam de escrever. A lembrar que aqui boa parte de AP já havia se incorporado ao PC do B. Conta no livro um encontro que teve comigo em Salvador, tentando me levar de volta para a organização. Não levou.

Nos encontramos, lado a lado, no PT, desde 1997, quando ingressei no partido. Confessa que lá, no exílio, como cá, ao chegar, namorou muito. A aura de dirigente, no Brasil, ao chegar, ajudou muito. Ele, com 30, ainda clandestino. Elas, as novas militantes, com idade que variava entre 20 e 24. Muitas namoradas.

Ricardo debate-se com as posições esquerdistas que apareciam na AP, contrárias à Constituinte e à luta pelas liberdades democráticas. Sentiu o peso da luta interna, inclusive de Jair Ferreira de Sá, que acompanhava as posições mais esquerdistas então. Entre idas e vindas na luta interna, e ainda na Direção nacional, Ricardo sente que a AP está na reta final. O surgimento do PT decreta o fim. Pelo menos para Ricardo, que compreendeu que o PT era a saída para a luta revolucionária no Brasil. E aí, em sequência, muitos foram saindo. E findou-se a experiência revolucionária da AP, ali pelo início dos anos 80.

No processo de constituição do PT, Ricardo encontra-se com velhos conhecidos, entre os quais Jorge Baptista Filho, José Ibrahim, Éder Sader, Marco Aurélio Garcia, Manoel da Conceição, Alípio Freire. Com a chegada ao PT, o percurso de Lênin a Gramsci completou-se. Morriam as visões do assalto ao Palácio de Inverno. Desenvolviam-se as idéias de luta pela hegemonia, de luta cultural, de afirmação da sociedade civil, da guerra de trincheira, da valorização da democracia.

Como diz Ricardo, ao final do livro, nada como o movimento real para mudar as nossas concepções, para fazer a nossa cabeça. E nada como um livro como esse para mergulhar num passado tão recente, revisitar nossos sonhos de então, e alimentar os sonhos atuais, que continuam a enlaçar democracia e socialismo.

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Fonte: CartaCapital