A edição de Época (nº 680 – 28/05/2011) traz em sua capa um primor de mau gosto: a foto da presidenta Dilma Rousseff, usando seu costumeiro traje vermelho com bordas negras, pálida, olhos cerrados, e aquele sorriso de funda aquiescência tão comum em cadáveres femininos, nos faz pensar logo de imediato que a revista conseguiu um furo realmente inédito: a imagem da presidenta no fundo de uma urna funerária.

A palavra exclusivo se sobressai em letras amarelas sobre fundo vermelho, bem à altura do peito. As chamada contrasta pesadamente com a imagem: A saúde de Dilma. O subtítulo informa que “Época teve acesso a exames, listas de remédios, e relatos médicos”. E não deixa passar a mensagem de alarme: “Por que seu estado ainda exige atenção”.

Como a imagem não alcança as mãos resta saber se nos “testes de capa” não existiria também alguma em que suas mãos se enroscavam ternamente em um terço católico, destes em que as contas e o crucifixo são de madrepérola. Mórbida é a capa. Algum desavisado que não tivesse tempo de ler as chamadas sombrias poderia supor que a presidenta não mais se encontrava no mundo dos vivos e que o país deveria logo se preparar para a cerimônia do adeus, trazendo à memória a morte do presidente Tancredo Neves em 21 de abril de 1985 e a catarse que tomou conta do país e se prolongou até seu funeral, três dias depois, em São João Del-Rei. Caso o futuro sombrio evocado pela capa fosse uma realidade tangível, o Brasil que foi presidido em 1985, por José Sarney, um político peemedebista, em 2011 ocuparia a presidência da República outro peemedebista, Michel Temer.

A reportagem em si não sustenta a capa. Aqui temos um caso em que a capa flerta com o sensacionalismo barato: morte sempre vende bem. E se for morte ou alusão a morte de um presidente da República, aí é que vende mesmo. A reportagem embora registre afirmações de seus médicos dando conta que a presidenta “apresenta ótimo estado de saude”, sua linha argumentativa – se é que existe – termina sendo a criação de uma tela tecida com fios de má intenção e dentro de um clima francamente agourento aborda os problemas de saúde que ela já apresentou e os outros que para uma mulher da sua idade são absolutamente normais.
Tratar da saúde é obrigação elementar de qualquer pessoa. Simplesmente porque a vida é o bem supremo, o bem maior a ser protegido e não é à toa que o instinto de preservação nos acompanha desde o primeiro segundo de vida até nossa última respiração.

A tese defendida aponta para uma suposta gravidade de seus problemas de saúde, mas as informações apresentadas não a sustentam. A reportagem chega a listar os tais “28 remédios da presidenta”, começando com um prosaico “bicarbonato de sódio para combater aftas” até aqueles receitados amplamente para uso infantil, como o Atrovent e os muito comuns Novalgina e Fluimicil. Uma boa assessoria médica agregaria valor ao texto ao informar, por exemplo, que o hipotireoidismo é encontrada com elevada freqüência entre as mulheres de mais idade sendo comum que lhes sejam requisitados exames de TSH.

Da mesma forma não faltaria quem no meio médico se dispusesse a afirmar que o hormônio T4 – Synthroid, Puran, Levoid, Euthyrox etc. – tomado em jejum integra tratamento básico para a enfermidade e é utilizado em larga escala por mulheres em todo o planeta há décadas. Logo na abertura da reportagem o leitor atento depara com o espírito que a norteou ao citar que no domingo, 22 de maio, a presidenta viajou para Salvador para participar da cerimônia de beatificação de Irmã Dulce e, logo em seguida, agregou que este “foi seu primeiro compromisso público desde a pneumonia que a obrigou a cancelar viagens e a despachar durante três semanas do Palácio da Alvorada, sua residência oficial”.

A dramaticidade não tarda a se revelar: devido à chuva, a organização do evento “improvisou toldo que lembrava uma bolha de plástico” para acomodar Dilma, concluindo assim que “não era apenas uma deferência justificada pelo cargo que ela ocupa. Era um cuidado necessário para evitar uma recaída da inflamação pulmonar que, segundo palavras que ela mesma disse, de acordo com um interlocutor de confiança, teria sido “a pior de todas as doenças que já enfrentei”.

A expressão ‘bolha de plástico’ nos faz recordar o mal conhecido como Nemo ("Nuclear Factor Kappa B Essential Modular", em inglês). Esta doença impede o bom funcionamento dos glóbulos brancos e implica na necessidade de o paciente passar por um transplante de medula, permitindo assim que ele receba um novo sistema imunológico. De qualquer forma, os médicos afirmam que tal enfermidade atinge o sistema imunológico e leva o paciente a contrair uma forma incurável de tuberculose. Teria Época a intenção de transformar na terrível Nemo a inflamação pulmonar que acometeu a presidenta? Os autores não poderiam concluir apenas que aqui ou na Conchichina é comum fazer uso de toldo em cerimônia a céu aberto e em período chuvoso? Obviamente, não se esperava que o Governo da Bahia providenciasse um ambiente bastante refrigerado para abrigar a principal autoridade da República, ainda mais sabedores de sua recente recuperação de um quadro de pneumonia.

Para uma imprensa que vira e mexe se sente “vítima do sistema” e que está sempre a dois passos da supressão da liberdade de expressão no país, causa espécie ver o esforço de Época ao pedir – e conseguir – autorização da própria presidenta para que o Hospital Sírio-Libanês facultasse à revista Relatório médico acerca de sua saúde. O assunto é, além de muito sério, bem delicado, uma vez que segundo a Resolução nº 1.605/2000 do Conselho Federal de Medicina encontra-se estipulado em seu primeiro artigo que “o médico não pode, sem o consentimento do paciente, revelar o conteúdo do prontuário ou ficha médica.” Não por acaso que a abertura do relatório médico principia com a frase autoritativa: “Por solicitação da Exma. Presidenta da República, Sra Dilma Vana Rousseff, o Hospital Sírio-Libanês emite o presente relatório médico”. Mas, como diziam os antigos, só encontramos o que procuramos, chama atenção o fato de a matéria inteira não dar relevo nem qualquer outro destaque ao que realmente importa no citado documento médico oficial. É a parte que diz o seguinte: “Em 21 de maio de 2011 a Sra. Presidenta realizou tomografia de tórax de controle, mostrando resolução completa do quadro de pneumonia detectado no mês anterior. Do ponto de vista médico, neste momento a Sra. Presidenta apresenta ótimo estado de saúde.”

Não sei qual foi a reação da presidenta ao mirar a capa. Mas não preciso ser doutor em psicologia para perceber que é muito estranho se ver retratado na capa de uma revista com circulação nacional da maneira como está – a pessoa parece sem vida, a capa remete a morbidez cadavérica. E se a pessoa está doente, por mais rotineira ou comum que seja a enfermidade, a reação não deve ser nem um pouco alvissareira. Ninguém soltaria fogos de artifícios após passar alguns segundos tendo esta capa ao alcance dos olhos.

Não posso deixar de fazer ainda outra leitura da capa desta edição de Época. É que a vontade de boa parte da grande imprensa, ou como alguns preferem, da grande mídia, não é outro que o de sepultar Dilma Rousseff. E nos faz pensar em quão desumana pode ser uma reportagem. E nos faz refletir sobre essa linha tênue que separa uma imprensa ética, séria, responsável de uma imprensa não-ética, sensacionalista e dada a dar à mancha o tamanho de montanha.

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Washington Araújo é jornalista e escritor. Mestre em Comunicação pela UNB, tem livros sobre mídia, direitos humanos e ética publicados no Brasil, Argentina, Espanha, México. Tem o blog
http://www.cidadaodomundo.org Email – [email protected]

Fonte: Observatório da Imprensa