No gabinete, o filho Camilo (PSB) perde alguns minutos respondendo a e-mails pelo laptop pessoal. O computador do Palácio sumiu. “Será que a Polícia Federal confiscou a máquina na Operação Mãos Limpas?”, indaga, olhos fixos no pai. “A antiga equipe de governo pode ter levado, para não deixar vestígios”, responde o senador Capiberibe, agora dedicado à luta para preservar seu mandato, cassado pela Justiça.

Desde setembro, ao menos 40 suspeitos de integrar uma quadrilha que desviou centenas de milhões de reais dos cofres públicos foram presos. Entre eles, o governador interino Pedro Paulo Dias (PP), o ex-governador Waldez Góes (PDT), à época licenciado para disputar o Senado, e o presidente do Tribunal de Contas do Estado, Júlio Miranda. Também o prefeito de Macapá, Roberto Góes (PDT), que continuava preso na primeira semana de janeiro.

Pausa no trabalho, Camilo aproveita a visita para se aconselhar com a família. Além do senador Capiberibe, está presente a mãe Janete, deputada federal, sempre com o celular às mãos para resolver pendências de Brasília. O governador mostra uma câmera escondida que a polícia encontrou no seu gabinete e queixa-se dos constantes pedidos de empresários e conhecidos ávidos por cargos públicos. “Cuidado. Aqui poucos virão para te trazer uma sugestão, uma ideia para melhorar a gestão. Muitos querem tirar uma lasquinha”, orienta o pai.

Nas últimas eleições, a família Capiberibe, que passou os últimos oito anos à margem da política amapaense, teve êxito invejável nas urnas, graças inclusive ao fato de que alguns dos seus principais adversários políticos acabaram atrás das grades. De virada, Camilo venceu Lucas Barreto (PDT) com 53,77% dos votos válidos. Janete, por sua vez, elegeu-se como a deputada federal mais bem votada do estado pela terceira vez consecutiva. E João conquistou a segunda vaga para o Senado com 10 mil votos de vantagem sobre o terceiro colocado, Gilvam Borges (PMDB).

João e Janete não devem, porém, ser diplomados em fevereiro. Cassados por compra de votos nas eleições de 2002, tiveram a recente candidatura indeferida com base na Lei Ficha Limpa, que estabelece um prazo de inelegibilidade de oito anos aos políticos condenados em tribunais colegiados. Por uma diferença de três dias entre a data da eleição de 2002 (6 de outubro) e a do último pleito (3 de outubro), foram considerados inelegíveis pelo Tribunal Superior Eleitoral. O casal, que sempre negou as acusações, ainda tenta reverter a cassação no Supremo Tribunal Federal. Mas sabe que a tarefa é árdua. “Fomos vítimas de uma armação muito bem montada pelo Gilvam e por José Sarney, os reis do tapetão. Não vencem no voto, ganham no Judiciário”, acusa João, que perdeu cinco anos de mandato de senador em 2005 e, agora, pode perder mais oito.

Em 2005, o TSE cassou os mandatos de João e Janete com base no depoimento de duas eleitoras. Cada uma diz ter recebido 26 reais em troca do voto. À época, perto de 15 mil reais foram apreendidos com uma lista de eleitores que supostamente teriam vendido o voto aos dois políticos. A denúncia foi apresentada por Gilvam Borges, aliado de Sarney e principal expoente na política da família Pinheiro Borges, dona de uma rede de comunicação com quatro concessões de tevê e mais de uma dezena de rádios no Amapá. Também naquela época Gilvam ficou em terceiro lugar nas eleições e assumiu a vaga de Capiberibe no Senado após a condenação.

“Essa acusação é ridícula. O dinheiro encontrado pela polícia era para pagar o lanche dos fiscais do partido nas eleições”, defende-se Capiberibe. “As testemunhas do processo foram compradas. Um empregado de Gilvam admitiu ter intermediado a negociação.”

Trata-se do cinegrafista Roberval Araújo, ex-funcionário de uma das emissoras de tevê da família Borges, que afirmou ao Ministério Público ter intermediado a compra das testemunhas. “Elas moravam num bairro de palafitas em Macapá. O Gilvam comprou dois casebres e pedia para eu repassar a elas 2 mil reais de mesada. Só denunciei a armação porque ele também tinha me oferecido casa e carro, mas ficou na promessa.”

Gilvam nega as acusações do ex-funcionário, a quem chama de “bandido”. CartaCapital procurou o peemedebista para falar sobre o caso, mas os seus assessores disseram que ele estava viajando e incomunicável. No fim de novembro, ele já havia se defendido no plenário do Senado. Afirmara que o casal Capiberibe tenta desqualificar o recurso que resultou na sua cassação e teria oferecido 20 mil reais para as testemunhas mudarem a versão apresentada à Justiça. João Capiberibe, por sua vez, se diz vítima de outra armação. “Elas é que tentaram nos extorquir. Pediram dinheiro para dizer a verdade. Gravamos a conversa com elas e entregamos à Justiça.”

Coincidência ou não, em novembro passado, meses depois de Roberval ter feito a denúncia no MP, o cinegrafista foi esfaqueado durante um suposto assalto. “Pediram meu celular e eu reagi. Levei uma facada no peito e outra nas costas. Não posso acusar ninguém, mas duvido que fizeram isso só por um celular.” O agressor foi detido. A Polícia Civil esclareceu não ter aberto inquérito para investigar se o crime tinha motivação política.

Apesar do risco de perder mais um mandato, João Capiberibe exibe calma. “Se confirmarem a cassação, farei o que fiz nos últimos anos: continuarei militando. Talvez, se eu fosse profissional, teria desistido. Mas sou um militante, não defendo interesses particulares”, diz o senador, que informou ao TSE possuir 277 mil reais em bens adquiridos ao longo da vida.

A residência do casal Capiberibe fica na periferia de Macapá, onde a maior parte das ruas não tem asfaltamento, é espaçosa, mas sem luxo. O lugar preferido de João para conversas mais reservadas é um pequeno escritório no fundo do quintal, abarrotado de livros e documentos, inclusive balanços dos governos que chefiou. “Preciso organizar isso tudo, não consigo encontrar mais nada nessa bagunça”, admite. Entre seus bens, um sítio a menos de 15 minutos da sua residência. Basta atravessar um braço do Amazonas de barco para chegar à casa da floresta, dois andares rústicos de madeira nativa.

Na copa da casa, guarda as fotos que evocam quase dez anos de exílio, passados entre Bolívia, Chile, Canadá e Moçambique, quando perseguido pela ditadura. Há dois anos ele dedica algumas horas do dia para escrever um livro autobiográfico sobre esse período, incluindo a fuga romanesca da prisão em 1971: depois de evadir-se, navegou mais de 6 mil quilômetros pelos rios Amazonas e Madeira, levando a mulher e a filha de menos de 1 ano. Pretendia escrever uma versão romanceada na terceira pessoa. Acabou convencido pela escritora Ana Miranda, que leu os primeiros capítulos, a manter a narrativa em primeira pessoa. “Eu achava que, do meu jeito, poderia colocar mais o dedo na ferida.”

Filhos de comerciantes que se estabeleceram em Macapá, João e Janete se conheceram no colégio. Voltariam a se encontrar no movimento estudantil da capital paraense, quando ele cursava a faculdade de Economia. Pouco depois, aderiram à guerrilha da Ação Libertadora Nacional (ALN). “Nossa tarefa era arregimentar e conscientizar as populações camponesas para resistir à ditadura”, conta João, enquanto mexe no anel de coquinho que usa no lugar da aliança. “Esse é meu único acessório. Uma vez, ganhei dos índios um bracelete feito com dente de macaco. Parei de usar porque virou moda e os índios passaram a matar os bichos sem necessidade.”

Em 1970, o casal foi preso no interior do Pará. Grávida, Janete passou dois meses presa na enfermaria de um hospital da Aeronáutica. Só seria libertada uma semana antes de nascer Artionka, a primeira filha do casal. O nome de origem russa era mais uma provocação aos militares. “Tenho orgulho de saber que meu nome é mais um ato de rebeldia. Mas eles podiam ter encontrado um nome um pouquinho menos russo, né?”, comenta a hoje antropóloga de 39 anos, dedicada ao estudo dos índios da etnia palikur, no norte do Amapá. Curiosamente, é a única filha do casal Capiberibe que não seguiu carreira política. Luciana, irmã gêmea de Camilo, coordenou a comunicação de seis campanhas eleitorais.

João Capiberibe só viu Artionka tempos depois do nascimento. Preso por duas semanas, ficou incomunicável e em local desconhecido, submetido a longas sessões de tortura. Em seguida, permaneceu por 11 meses no presídio de São José, em Belém, onde tramou sua fuga. “Fiz greve de fome para forçar minha transferência para o hospital. Quando saí da minha cela, estava esquálido, amarelo.” Seu leito era vigiado por soldados. Para fugir, contou com a colaboração de Almir Gabriel, ex-governador do Pará, à época apenas um médico amigo. “A corrupção já funcionava muito bem naquela época e era o Almir quem arrumava licenças médicas para os soldados em troca de facilidades.” Relaxada a guarda, João saiu do hospital pela porta da frente. De barba feita, vestia um jaleco médico. Janete o esperava do lado de fora e o casal partiu para o porto da capital paraense, onde pegou um barco para Santarém.

“A todo momento entravam soldados na embarcação. Eu morria de medo. A minha filha tinha apenas 8 meses de vida. Espalharam cartazes para alertar que o Capi estava sendo procurado”, relembra Janete, com olhar perdido diante de uma reprodução da Folha do Norte de 1971, a estampar a foto do marido como um “perigoso subversivo” procurado pelos “federais” e responsável pela morte de “uma criança (menina) de 13 anos”. “Para não sermos pegos, passei água oxigenada no cabelo do Capi. Estávamos muito diferentes, parecíamos maltrapilhos. Ele vestia uma camisa de tecido vagabundo que retinha o suor do corpo. No fim do dia, meu Deus, como esse homem cheirava mal.”

De Santarém, seguiram de barco para Manaus e, na sequência, para Porto Velho. Mais um trecho navegando por igarapés e uma trilha na mata para chegar a Guajará-Mirim e atravessar a fronteira com a Bolívia. A passagem pela Bolívia ficou marcada pelo temor constante da deportação pela recém-instalada ditadura no país. Em uma universidade de Cochabamba, ficaram sob fogo cruzado entre os militares e os estudantes que resistiam ao golpe. Nova fuga e conseguem chegar ao Chile do socialista Salvador Allende.

Trabalharam em comunidades agrícolas, voltaram a estudar, viram os filhos gêmeos Camilo e Luciana nascerem em segurança em um hospital de Santiago. A paz, contudo, duraria pouco. Em 11 de setembro de 1973, foi a vez de o Chile ser vítima de um golpe militar. Articularam outra fuga, agora de avião, com um passaporte da Cruz Vermelha para entrar no Canadá. Pela primeira vez, em mais de dois anos de exílio, conseguiriam status de asilados políticos.

A passagem por Moçambique acabou sendo circunstancial. Formado em zootecnia no Canadá, João foi convidado a auxiliar comunidades agrícolas em Maputo. O casal viveu os últimos dois anos do exílio lá, onde tiveram o primeiro contato com Miguel Arraes, durante uma palestra. Por conta desse encontro o casal filiou-se ao PMDB na volta ao Brasil, graças à anistia de 1979.

Após perder uma eleição para deputado federal e mudar de partido, insatisfeito com o governo do presidente Sarney, Capiberibe vence as eleições de 1988 para a prefeitura de Macapá pelo PSB, enquanto Janete elege-se vereadora na capital. “A primeira coisa que fiz foi colocar um painel na porta da prefeitura discriminando todas as receitas e gastos. Ninguém fazia isso à época. As contas estatais eram uma caixa-preta.” Com isso, garante, foi capaz de coibir a corrupção. E, em 1995, quando iniciou seu primeiro mandato de governador, manteve a estratégia. Desta vez, recorrendo à divulgação pela internet.

A transparência das contas públicas passou a ser o mote das campanhas de Capiberibe. É de autoria dele o projeto de lei que obriga os estados a informar as receitas e gastos estatais na internet. “Ganhei muitos inimigos ao combater a corrupção. Mas, aos poucos, o povo percebeu a melhora e tudo ficou mais tranquilo.”

Tranquilo em termos. No Amapá, João Capiberibe tem fama de encrenqueiro. O próprio político não esconde o fato – na verdade, parece ser para ele motivo de orgulho – de colecionar mais de 300 processos na Justiça, boa parte deles por dano moral. O ex-governador entrou em rota de colisão com parlamentares e juízes, ao acusar vários deles. Um dos primeiros atos ao assumir o estado em 1995 foi vetar um aumento para o Legislativo e o Judiciá-rio, aprovado pelo governo anterior, mas não divulgado no Diário Oficial.

“Isso era uma estratégia do ex-governador Annibal Barcelos (PFL) para inviabilizar minha gestão”, afirma João. “De um ano para o outro, o orçamento do Tribunal de Contas aumentaria de 4,2 milhões de reais para 13,7 milhões de reais. O da Assembleia Legislativa passaria de 17,6 milhões para 26,5 milhões. Enquanto isso, a receita da Secretaria de Obras foi reduzida a um décimo.”

O desgaste com o Judiciário era tão grande que, mesmo em sentenças favoráveis, Capiberibe era citado como incômodo. Em 2003, por exemplo, o então presidente do TRE, Mário Gutiev, votou pela absolvição do casal no caso da compra de votos, e registrou que se sentia “muito à vontade” para inocentá-los, uma vez que integrava “o Tribunal de Justiça do Amapá, o órgão mais perseguido nos últimos quatro anos do governo Capiberibe”.

Próximo da fila para assumir a presidência do Tribunal de Justiça, em fevereiro, Gutiev brinca com as antigas rusgas. “Acho que os desembargadores não gostam muito do Capi, porque ele dá muito trabalho. Todo mês tem um processo dele para julgar, como réu ou autor da ação”, diz, em meio a risadas. “A verdade é que o Capi acusou muitos colegas sem apresentar provas. Mas eu nunca tive problemas com ele. E briga por orçamento sempre vai existir.”

A má relação com o Legislativo e o Judiciário deu força à oposição, que venceu as eleições de 2002 e 2006 no estado com a bandeira da “harmonia entre os poderes”. Após a Operação Mãos Limpas, o lema acabou virando chacota para o grupo de Capiberibe. “Harmonia eu só vi na roubalheira. Tem um monte de juiz e deputado citado no inquérito da PF”, cutuca João Capiberibe.

Um dos maiores desafios do novo governador Camilo é coibir o clientelismo, marca da política local. Num estado com mineração incipiente e pouquíssima produção agrícola, o que sustenta a economia são os repasses da União. Historicamente, mais de um terço do PIB provém dos salários pagos ao funcionalismo. Hoje estima-se que ao menos 46% da riqueza do Amapá depende diretamente do setor público. O orçamento anual do estado é de 2,7 bilhões de reais. Diante de uma população de 668,6 mil habitantes, segundo o Censo de 2010, o investimento estatal é superior a 4 mil reais para cada habitante anualmente.

Apesar da abundância de recursos públicos, o Amapá continua entre os seis estados com pior expectativa de vida no País e é o segundo com maior índice de analfabetismo. “A corrupção e a má gestão nos mantêm presos a esse quadro de miséria e indigência. Poderíamos explorar melhor o turismo, investir em modelos de exploração sustentável da floresta, mas as políticas iniciadas nessa direção não tiveram continuidade”, lamenta Capiberibe, ao navegar por um braço do Rio Amazonas e identificar um barco de turismo doado pelo governo à comunidade local, e hoje abandonado.

Com ou sem mandato, certo é que João Capiberibe terá grande influência no governo estadual. A palavra é do próprio Camilo, que aponta o pai como seu “conselheiro número 1”. “Já estou enfrentando problemas bem parecidos com os da gestão dele. Metade do orçamento deste ano está comprometida com dívidas.”

Diante da aflição do filho com as contas do estado, João tenta acalmá-lo. “Fique tranquilo. Se você der transparência às contas, o povo entenderá as dificuldades do governo.”

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Fonte: CartaCapital