Um panorama de sua vida animada está em Nássara Passado a Limpo (José Olympio, 252 págs., R$ 35), de Carlos Didier, bió-grafo de grandes amigos do personagem em questão, Noel Rosa e Orestes Barbosa.

O livro, composto de 65 crônicas ilustradas pelas caricaturas de Nássara, oferece um retrato pessoal do artista. O título é do próprio Nássara, que revelou, em depoimento ao Museu da Imagem e do Som (MIS), o sonho de reunir em um volume algumas de suas histórias e caricaturas.

O autor Didier, amigo de Nássara desde o tempo em que pesquisava as vidas de Noel Rosa e Orestes Barbosa, abraçou o projeto. Reuniu depoimentos do cartunista ao ilustrador Cássio Loredano e à historiadora Izabel Lustosa, ao MIS e ao Jornal do Brasil. Recolheu entrevistas que ele próprio, Didier, fizera ao procurar entender Noel. E o livro já saiu com uma informação surpreendente. Ao contrário do que se pensava, Nássara, filho de libaneses, nasceu em 1909, não em 11 de novembro de 1910. Provavelmente, uma irmã do caricaturista, na hora do registro em cartório, cometeu o erro. A informação foi revelada a Didier em 1996, ano da morte de Nássara, por sua mulher, Iracema.

O livro prossegue com passagens inusitadas sobre o artista. Antes de tudo, ele desenhava. A verve do poeta e do compositor apareceu aos poucos, motivada pelo convívio com cantores, compositores, poetas e boêmios do Rio no princípio do século 20. Com o tira-linhas em punho, Nássara era imbatível. “Suas caricaturas de traços precisos revelavam o que havia abaixo da superfície do lago”, define Didier. Empregado em revistas e jornais como diagramador de páginas, o artista garantia um salário fixo. Trabalhou no Diário Carioca, em A Crítica e no Globo para poder se dedicar aos amigos, à boemia e à conversa.

A carreira musical firmou-se quando ele emplacou um sucesso como compositor, Formosa, samba em parceria com Jota Ruy. Luiz Barbosa foi o primeiro a gravar a canção, transformada em marcha por Francisco Alves e Mário Reis na gravação para a Odeon, de 1932. Como a cidade cantava a música sem parar, Francisco Alves, àquela altura o Rei da Voz, começou a provocar o amigo. Perguntava se ele não faria mais nenhum samba. Seria Nássara um compositor de verdade?

Concentrado em achar um novo sucesso para o carnaval de 1934, o artista não tirava da cabeça uma canção. Era Rose Marie, de Friml e Stothart. Nássara usava esse antigo tema de opereta para paquerar uma moça. Cantarolava Rose Marie, I love you, enquanto ela passava pela rua. Decidiu-se, então, usar a mesma melodia na frase Cadê Maria Rosa…, e depois completou: Cadê Maria Rosa?/ Tipo acabado de mulher fatal/ Que tem como sinal uma cicatriz/ Dois olhos muito grandes, uma boca e um nariz. O novo sucesso estava criado.

A carreira prosseguiu sempre em parceria com os principais compositores da época. Nássara fazia as segundas partes dos sambas, corrigindo rimas de pé-quebrado e falhas no português. Fez músicas com os grandes nomes da música popular brasileira, entre eles Orestes Barbosa, Wilson Batista, Haroldo Lobo, Mário Lago, Ary Barroso e o próprio Noel Rosa.

No Café Ponto Chic de Vila Isabel, em certa ocasião de 1934, Noel lhe pediu que terminasse um samba, Retiro da Saudade. Nássara o finalizou enquanto caminhava pelas ruas Silva Pinto e Visconde de Abaeté. Entregou o trabalho ao compositor, mas Noel esqueceu de acrescentar as estrofes do amigo quando a música foi apresentada no rádio. Nássara cobrou-lhe o esquecimento, sem maiores preocupações, mas Noel ficou mortificado. Um dia, pediu a Nássara que fosse com ele até a gravadora Victor assinar uns papéis. Ao chegar ali, viu que Noel tinha unido pela primeira vez em disco Francisco Alves e Carmen Miranda, os maiores intérpretes do País, para gravar o samba, agora com seus versos.

Nássara passou à história de inúmeras maneiras. Tornou-se, por exemplo, o primeiro compositor no Brasil a realizar um jingle para um programa de rádio. Era então redator do Programa Casé, pioneiro ao veicular anúncios comerciais. Naquele 1932, se Casé não conseguisse mais patrocinadores, o programa terminaria. Pois foi quando Nássara compôs Padaria Bragança, um fado, interpretado ao vivo por Luiz Barbosa. A letra dizia: Ó padeiro desta rua / Tenha sempre na lembrança / Não me traga outro pão /Que não seja o pão Bragança.

A gravação ficou tão boa que os donos da padaria fecharam contrato de um ano com Casé. Em outra prova de humor, Nássara foi convocado para redigir o comercial de um purgante. E saiu-se bem: Minha noiva estava de péssimo humor / Dei-lhe um automóvel Cadillac: não fez efeito… / Dei-lhe um dos maiores apartamentos do Rio: também não fez efeito…/ No entanto, dei-lhe duas pílulas do purgativo Manon e… fez efeito!

O livro de Didier expõe a criação de clássicos do carnaval como Alá-lá-ô, Meu Consolo É Você, Mundo de Zinco, Periquitinho Verde. Esta homenagem se soma à exposição, em cartaz até fevereiro no Centro Cultural Justiça Federal, no Rio, contendo caricaturas raras e originais do artista. A iniciativa da mostra foi do produtor cultural Jorge de Salles, que em 1996 recebeu de Nássara uma centena de suas caricaturas e um bilhete: “Estou te mandando antigos originais. Espero que algum abnegado desenhista (principiante e teu auxiliar) faça uma recolagem dando uma melhor apresentação gráfica em alguns aproveitáveis. Faça o que quiser com eles. Pode jogar fora tudo o que considerar imprestável”.

Dois meses depois, Nássara morreu. Desde então Jorge Salles vinha preparando esta exposição. Mas morreu ele próprio há três meses, e a finalização do trabalho ficou a cargo do desenhista José Roberto “Graúna” Lopes. Entre as obras expostas, há desenhos publicados nos anos 40 até caricaturas dos anos 80. As charges retratam Getúlio Vargas, Jango, Juscelino, Figueiredo, Lula (o metalúrgico), Collor, Tancredo, Chico Anysio, Guerra-Peixe, Orestes Barbosa, Noel Rosa, Manuel Bandeira.

Além de artista de muitas faces, como retrata o livro de Didier, Nássara era um homem bom e simples, chegado à conversa de rua. O escritor Millôr Fernandes disse uma vez que, “de certa maneira, o Rio é uma invenção de Nássara, Orestes e Noel. Inventores também do papo furado, foram se distraindo e a cidade cresceu em volta deles”. Sobre a modéstia do amigo, Millôr criou uma frase: “Nássara sabe que a glória não passa, no fundo, de um outeiro”.

Sua humildade aparece na primeira crônica do livro de Didier, que relata a homenagem feita a ele pela Funarte em janeiro de 1985. Naquele ano, haveria show, exposição e livro para enaltecer o artista. Na plateia da Sala Funarte, quatro gerações de admiradores aguardavam suas palavras. O artista subiu ao palco elegante, de terno cinza e um guarda-chuva na mão, e começou a contar uma história.

– Em certa ocasião, um chinês foi homenageado. – começou ele, a plateia atenta.

– Em agradecimento, curvou-se para a direita – e Nássara repetia o gesto do chinês, à maneira oriental, unindo as mãos.

– Depois – prosseguiu – curvou-se para a esquerda.

Nássara refez o movimento, meticulosamente representado. A plateia, silenciosa.

– Ao final – contou Nássara – o chinês indagou à esposa: “Como me saí?” E ela respondeu: “Curvou-se demais para o lado esquerdo”.

Sem mais nada a dizer, Nássara desceu do palco.

________

Fonte: CartaCapital