O economista Fernando Augusto Mansor, do Ipea, calculou a taxa de variação do PIB brasileiro dividido pela população (PIB per capita) nos últimos 60 anos, subdividindo o período por 14 mandatos presidenciais, acabados ou interrompidos, ditatoriais ou eleitos – de Getúlio Vargas?Café Filho a Lula I e II. Vista de longe, parece que a história econômica do país reprisa sequências de picos e vales de crescimento, variando não mais do que o maior ou menor intervalo de tempo entre uma escalada e uma queda. Uma rotina, quase. E nada melhor que uma rotina para sugerir aos candidatos a cientistas da economia a existência de uma “lei da natureza”. Daí a se imaginar que abundância e escassez caem do céu e que todas as abundâncias se parecem não toma além de dois passos.

Mais um passo e alcançamos a tese rústica de que o governo Lula representou um prolongamento de governos anteriores, no que estes apresentaram de positivo, acrescido de bonançosos ventos internacionais. Virtude e acaso encarnados em sujeitos distintos, operando em tempos sucessivos, a tese excitaria o falecido Maquiavel. Pace Niccolo, a história não é bem essa.

O crescimento de 4,9%, em média, dos prometidos 50 anos em 5 do Plano de Metas de Juscelino Kubitschek (1956-1960), único presidente progressista eleito a concluir mandato antes do golpe militar de 1964, e o melhor a partir de então entre os de inspiração liberal, em nada se parece aos 4,1% do Segundo Plano Nacional de Desenvolvimento, de Ernesto Geisel, cerca de 20 anos depois (1974-1978). Mais 30 anos passados, os modestos 3,5 de Lula II, em novo governo progressista legitimamente eleito, embora apontando ligeiro declive diante do pico JK, representaram a mais espetacular ruptura das últimas oito décadas da República. Mas a interpretação reduzida a números não ultrapassa o registro de que houve 0,8 ponto percentual de diferença entre o PIB per capita de JK e o de Geisel, e que o de Lula ficou atrás de ambos ( o modus faciendi democrático desaparece nos números). Em outras palavras, quem só vê porcentagens significantes não enxerga o conteúdo sendo significado, ignorando que, na economia, importante é o que está dentro dela, estúpido! – diriam os suecos.

Por exemplo: dentro da taxa média de crescimento do PIB per capita de Lula II faltam números satisfatórios de aeroportos, rodovias, ferrovias e portos, justamente o que existe em abundância embutido nas taxas dos anos JK. Os “50 anos” recuperados “em 5” de Juscelino chegaram por via aérea ou recebidos em terminais rodoviários construídos às dezenas, acompanhando o ritmo de conclusão das estradas interestaduais planejadas pelos técnicos do então BNDE. Nada a lembrar o irritante congestionamento atual de aeroportos e estradas, invadidos por passageiros de primeira ou segunda viagem e por motoristas calouros em fins de semana fora da cidade onde moram. Sem esquecer o crescente tempo de espera para desembarque das mercadorias importadas nos portos nacionais. Muitas das quais enviadas da China, com a qual – ninguém podia imaginar – praticamente não falávamos nos anos 50 do século XX. Enfim, os itens em atraso na composição do PIB de Lula I e II fizeram a glória do desfile do PIB estilo JK nos sorridentes anos dourados de meados do século passado. É bem verdade que nem todos sorriam, faltavam os dentes, mas isso fica para depois.

Segundo os conservadores, ou bem o Brasil crescia ou evitava a inflação. Escolha difícil, à falta de terceira opção, e JK, apoiado pelo País inteiro, escolheu crescer, enquanto outros, antes e depois dele, preferiram a estagnação. Perfilhou, inclusive, o desafio de transferir a capital da cidade do Rio de Janeiro para o Planalto Central. (Corre a lenda de que o escritor carioca, católico e engenheiro por formação Gustavo Corção – 1896-1978 -, autor do célebre romance Lições de Abismo, apostou contra a viabilidade civilizatória de Brasília, assegurando que ela não teria condições de se comunicar nem telefonicamente com o resto do Brasil. Perdeu a aposta, é claro, e provavelmente teria apostado também contra a invenção do celular, jamais imaginando que tal artefato, se existisse, viesse a estar ao alcance de mais da metade da população brasileira em 2010 – cerca de 100 milhões de assinantes – quatro vezes superior ao número de celulares em circulação em 2003. Esta referência parentética destinou-se a ilustrar, com um item que de conspícuo transformou-se em básico, a rápida evolução recente do consumo em todas as rubricas típicas, como fogão, geladeira, televisão etc., consignadas pelos balanços usuais.)

Pois a tese da improbabilidade de crescimento econômico sem inflação era outro dos dogmas do período JK, adotado por todos os governos posteriores, o mesmo que se brandia à véspera do primeiro mandato de Lula. A ver as experiências históricas.

As entranhas do PIB juscelinista deram ganho de causa aos conservadores. As taxas de crescimento anual da economia foram exuberantes: 1956 = 3,2; 1957 = 8,1; 1958 = 7,7; 1959 = 5,6; 1960 = 9,7. E não seria impróprio atribuir ao carry-over do período juscelinista parte da saborosa taxa de 10,3, em 1961, já no mandato de Jânio Quadros (Conjuntura Econômica, 1972, Separata: 25 anos de Economia Brasileira, Estatísticas Básicas – FGV). Em contraposição, o índice de preços saiu de um patamar de aumento já elevado de 12,4%, em 1955, avançando a 24,4%, em 1956, e terminando o ano de 1959 com 39,5%, recorde desde o restabelecimento da democracia em 1945. Como de costume, o decreto 39.604-A, de 14 de julho de 1956, concedeu adicional de salário somente aos trabalhadores da indústria. Mais usual ainda, não houve reajuste salarial em 1957 ou em 1958 (Ibre/FGV, Índice de Preços Selecionados – Variações Anuais, 1946/1980).

A decomposição pelo avesso compromete um pouco o brilho do desempenho agregado dos indicadores econômicos de JK. O oposto se dá com as taxas agregadas de aumento do PIB per capita de Lula I e II. Se mais modestas, elas revelam, contudo, a falsificação da tese hegemônica de que vigoroso crescimento econômico seria incompatível com taxas inflacionárias cadentes. Manutenção do poder de compra dos salários, então, segundo a ortodoxia republicana, nem pensar, sendo ademais delirante a hipótese de que, no Brasil, a economia suportaria aumentos reais na renda dos assalariados. Tentativas anteriores teriam conduzido o País ao limite da anarquia política e à desorganização das contas públicas (fortíssimos indícios, de acordo com as mesmas fontes midiáticas conservadoras e seus conselheiros, de planos sindicalistas revolucionários). Como se vê, não é tanto a história que se repete quanto à natureza e origem dos obstáculos que dificultam a sua progressão.

A avalanche de indicadores positivos durante o governo Lula soterrou o pessimismo. A retomada do crescimento econômico veio acompanhada de inflação cadente e sob controle, acrescida de inédito aumento na massa de rendimento do trabalho. Em particular, o salário mínimo real dos empregados formais aumentou em 54%, entre 2002 e 2010, estendendo-se o número de trabalhadores com carteira assinada a mais da metade da população economicamente ocupada (Dieese: Política de Valorização do Salário Mínimo, in: Nota Técnica n˚ 86, São Paulo, 2010). Foram mais 15 milhões de brasileiros a obter empregos com direitos trabalhistas reconhecidos (Caged, novembro 2010). Naturalmente, também cresceu o número de assistidos pelo sistema da Previdência Social. A curva do desemprego, outro fantasma da excessiva prudência conservadora, apresentou uma evolução favorável, com taxas cadentes desde 2005 até o recorde favorável de 2010, quando a taxa de desocupação foi reduzida a 5,9% da população economicamente ativa.

Vale registrar que o desmonte das hipóteses econômicas sombrias se processou com crescente e pacífica participação nos assuntos públicos por parte de todos que o desejaram. Não houve qualquer repressão oficial a movimentos populares, opiniões ou manifestações políticas. Nenhum grupo social popular ou conservador teve cerceados ou amputados direitos de expressão pública. Ao contrário, entre 2003 e 2009, foram promovidas 59 conferências nacionais sobre os mais variados temas, com o envolvimento de mais de 4 milhões de pessoas, ademais da criação ou reorganização de 18 conselhos para tratamento de problemas históricos da população (Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, Caderno Destaques, novembro/dezembro 2009, Brasília).

Ao contrário da anarquia prevista, a substituição de um sistema de valores e de práticas de perfil tradicionalmente elitista por uma orientação de governo comprometido com a promoção econômica, social e cultural da vasta maioria de trabalhadores brasileiros, em particular de suas camadas mais pobres, inaugurou um clima de temperatura política tolerante e cooperativa. São os extremos de dogmático espectro ideológico que, hoje, lastimam a redução na intensidade dos conflitos que, preveniam, seriam atiçados pelo governo Lula da Silva. O absoluto respeito por parte do Executivo às regras do jogo e às demais instituições do País – judiciárias, legislativas, estaduais – é um dos aspectos incluídos no reconhecimento que a população dispensou ao governo, em porcentagens acima até mesmo do apoio eleitoral que deu.

A comoção que acompanhou a transmissão da faixa presidencial à presidenta eleita, Dilma Rousseff, bem como a despedida do presidente Lula da Silva, testemunha a extensão de seu sucesso, excepcional contradita às suspeitas que cercaram sua posse em janeiro de 2003.

Crescer economicamente, administrando a inflação com racionalidade, promovendo a criação de empregos e a valorização real da renda dos trabalhadores não é equação a ser resolvida em demonstrações doutorandas, mas pelo compromisso axiomático do governo com a justiça social e com o progresso material e soberano do País.

Para ser desigual alguém precisa existir. Parece óbvio, mas, em 2006, de acordo com projeções do IBGE, 12,6% da população não existia oficialmente. Em 2002, teriam sido 20,9%. Em Rondônia, o número de nascidos e não registrados no primeiro ano de vida alcança 40%, recorde nacional, e, no Amapá, 33% (Secretaria de Comunicação Social, Caderno Destaques, nov/dez 2009). No total, são pessoas que não dispõem ou dispunham de documento comprobatório de existência, nascimento, nome ou residência. Consequentemente, desassistidas de qualquer tipo de política pública ou direito civil. Para a maioria da população, o acesso a registros tais como certidão de nascimento, carteira de identidade, CPF e carteira de trabalho aparece como fatos tão naturais quanto o nascer, crescer e trabalhar. Não obstante, foi necessário um governo popular se interessar por essa multidão oficialmente invisível e passar a despender recursos para trazê-la à luz do dia. Mutirões foram realizados e outros 1.225 previstos para 2010, particularmente na Amazônia Legal e no Nordeste, para execução do Programa de Ampliação do Acesso à Documentação Civil Básica. O alvo é o contingente de brasileiros construído de povos indígenas, quilombolas, ciganos, ribeirinhos, trabalhadores rurais, moradores de rua, catadores de recicláveis, crianças e idosos em abrigos, distribuídos em municípios de elevados índices de sub-registro.

É duvidoso que um item dessa natureza seja facilmente encontrável na decomposição de qualquer indicador agregado dos governos anteriores, próximos ou remotos. Mas eles fazem parte do povo de Lula, tanto quanto a vanguarda operária dos centros industriais das grandes cidades e a classe média recém-engordada por passageiros vindos das classes D e E.

Na vasta maioria dos casos, o acesso à documentação representa o ingresso em alguma ou várias formas reconhecidas de desigualdade. Nada mais fácil para um brasileiro do que se incorporar a um desequilíbrio social, de um lado ou de outro: gênero, cor, instrução, renda, idade, geografia de nascimento e até estética são portais escancarados à estratificação e discriminação. Entre outros, e crucial, é o portal da Justiça.

A Justiça é dispendiosa para todas as pessoas e para os pobres em particular, além de cara, amedronta mais do que apazigua. Ainda agora o IBGE publicou preciosa pesquisa sobre Características da Vitimização e do Acesso à Justiça no Brasil (IBGE, 2009), com números sobre violência contra pessoas e contra a propriedade, repetindo em certa medida investigação semelhante que realizara em 1988, há 22 anos, portanto. Entre as infaustas novidades encontram-se as que dizem respeito às vítimas preferenciais da violência por classe de renda e idade, por exemplo, e seus algozes. Com base em amostra nacional de 399.387 pessoas e 153.837 unidades domiciliares distribuídas por todas as unidades da Federação, os resultados revelam um quadro comparativo ainda desalentador. Mesmo em casa, não mais do que 78,6% das pessoas se sentem seguras, porcentagem que cai para alarmantes 52,8% da população quando estão na cidade, longe de casa e do bairro.

Há substancial variação regional nesses números, aparecendo a Região Norte como aquela em que a população se sente menos segura, seja em casa (71,6%), no bairro (59,8%) ou na cidade (48,2%). Segundo a pesquisa, os homens sentem-se mais seguros que as mulheres, sem diferença marcante entre brancos e pardos, nesse item sobre subjetividade, em qualquer dos locais investigados. Cerca de 8,7 milhões de pessoas, 5,4% da população residente de 10 anos de idade ou mais, foram vítimas de roubo e/ou furto no período de 27 de setembro de 2008 e 26 de setembro de 2009, com a maior incidência ocorrendo com pessoas de 16 a 34 anos de idade. A violência física caminha na direção inversa à da renda, com a maioria agredida situando-se na faixa de um quarto do salário mínimo. Os autores da violência física foram desconhecidos, em 39% dos casos, pessoas conhecidas em 36,2%, cônjuge ou ex-cônjuge, 12,2%, parentes em 8,1% das agressões e 4,1% de autoria de policiais ou seguranças privadas. Entre as mulheres, 25,9% delas foram agredidas por cônjuge ou ex-cônjuge. Sujeitas a várias discriminações, as mulheres e a população não branca atestam vários dos desequilíbrios sociais praticados pela sociedade, não obstante a legislação penal existente.

Entre 1988 e 2009, a violência contra a população branca foi reduzida de 64,6% para 52%, enquanto a população preta ou parda, vitimada, aumentou de 34,9% para 47,1%. O mesmo fenômeno se deu na comparação por gênero: a porcentagem de homens roubados ou furtados decresceu de 58,3% para 53,1%, enquanto a das mulheres aumentou de 41,7% para 46,9%. As porcentagens relativas à violência física seguem o mesmo padrão: enquanto a população branca, em particular a masculina, obteve acréscimos de segurança, nos últimos 20 anos, a probabilidade de sofrer agressões corporais aumentou para a população feminina, preta e parda.

Embutido nesses números está o testemunho da extensão em que níveis de pobreza, por certo, mas igualmente da aspereza da cultura cívica somam-se para fabricar uma sociedade ainda predatória e discriminatória. Sua superação exige largo intervalo de tempo.

Do outro lado da ponta da prevenção, que claudica, encontra-se a oferta de proteção jurídica. A nova Lei Orgânica da Defensoria Pública, de outubro de 2009, ampliou e tornou efetiva a possibilidade de que cidadãos sem capacidade financeira para a contratação de advogados obtenham condições de trazer pleitos junto aos tribunais. Entre 2003 e 2008, o número de defensores públicos passou de 3.250 para 4.525, e o número de atendimentos jurídicos de 4,5 milhões para 9,6 milhões, um acréscimo de 113% (Fonte: Ministério da Justiça).

O Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte, criado em 2003, embora não implantado ainda em todos os Estados, já atendeu 1.375 crianças e adolescentes e 2.255 familiares. Diante da incessante fábrica de desigualdades, discriminações e violência que é a sociedade brasileira, programas como o (PPCAAM), entre outros, e inovações institucionais como as Secretarias Especiais da Mulher e da Promoção da Igualdade Racial, que atuam, sobretudo na reparação de transgressões, não deixarão de apresentar resultados mais substantivos no longo prazo.

Se a violência estrutural é difusa e resistente, a redução das carências iminentes da população pobre – atendimento à saúde e educação – depende fortemente da disposição e ação governamentais. O número de Farmácias Populares ara atendimento ao povo de Lula cresceu 1.826%, entre 2004 e 2008, vendendo mensalmente medicamentos a preço de custo a 1 milhão de pessoas. Outro milhão de pessoas adquire medicamentos, por mês, com descontos de até 90%. O Programa Saúde da Família é conhecido, mas nem tanto o programa Brasil Sorridente, para o povo malcuidado, tópico embaraçoso para governos de elite. Em 2004, foram instalados 100 Centros de Especialidades Odontológicas, aumentados para 771, em 2009. Com 18.650 equipes, atenderam 87 milhões de brasileiros em 2009 (Ministério da Saúde, Boletim, novembro de 2009).

Programas para portadores de deficiência física, que alcançam 14% da população do País, incluíram a adequação de 10.489 escolas, entre 2007 e 2009, para atendimento especializado (Seesp/MEC). O ProUni, educacional, o Programa de Agricultura Familiar, produção de alimentos, e o Minha Casa, Minha Vida, habitacional, somam-se aos referidos para orquestrar o que constitui o compasso essencial do balanço de Lula. O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) tem papel destacado na composição do PIB dos últimos anos, com certeza, assim como as iniciativas nas áreas da grande agricultura e da exportação. A visibilidade do programa Bolsa Família e suas dezenas de milhões de famílias recuperadas à miséria a instala por gravidade no centro da atenção midiática.

Mas o pernóstico debate sobre atribuído assistencialismo do programa ofusca o princípio ordenador das prioridades do governo e o sentido histórico dos dois mandatos do presidente Lula da Silva. Crescimento econômico, inflação sobre controle, expansão do emprego e redução das desigualdades sociais são metas compatíveis, sim, entre si e com a democracia, desde que o governante adote políticas em harmonia com a agenda preferencial do povo – isto é, do povo de Lula.

O Longo Ciclo Vargas (de 1930 a 2014) Um estancieiro gaúcho; um operário pernambucano e uma militante política mineira

A Inglaterra inaugurou a modernidade liderando a primeira Revolução Industrial entre 1780 e 1820. Quarenta anos. Mas o pioneiro ciclo de modernização só se encerrou no início do século XX, com o amadurecimento de um sistema público de seguridade social e a universalização do direito de voto masculino e feminino em 1924. Nessa cronologia, o Brasil ainda teria um crédito de 20 ou 30 anos à disposição.

Os primeiros países modernos contaram com duas vantagens históricas. A primeira, conferida pela originalidade, foi a de estabelecer velocidade e conteúdo da própria “modernidade” sem competidor à frente. Qualquer avanço material, tecnológico, cultural, era, por definição, “progresso”. Aos emergentes, contudo, foi imposta a necessidade de descontar o atraso, além de crescer, visto que a tese da convergência civilizatória mundial se revelou ideológica. Em acréscimo, esta a segunda vantagem, os países modernos da primeira onda foram dispensados de sobrepujar a oposição interna de grupos que preferiam a estagnação ou a subordinação a estratégias de outras nações.

No Brasil, ademais dos percalços de governos conservadores, o caminho da modernização enfrentou interesses que, congregados, levaram um presidente legitimamente eleito ao suicídio, em 1954, tentaram impedir a posse de outro, em 1955, e interromperam, pela força das armas, o mandato de um terceiro em 1964.

O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi o primeiro efetivamente popular na história da República a terminar pacificamente não um, mas dois mandatos, eleger uma sucessora e transmitir o cargo. Retrospectivamente, registre-se que os dois principais momentos de avanço dos direitos da população pobre do País ocorreram sob regimes autoritários: a Consolidação das Leis do Trabalho, sob o Estado Novo de Getúlio Vargas (1937-1945), e a criação do Fundo de Amparo ao Trabalhador Rural, durante a ditadura militar do general Emílio Garrastazu Médici (1970-1974).

O governo Lula avançou na reformulação da estrutura econômica do País, na indústria, na agricultura e nos serviços, revelou inédita independência na administração dos constrangimentos de crises externas (2008-2009) e alterou a agenda de prioridades nacionais. O resgate de mais de 20 milhões de pobres e o anúncio do programa para a erradicação da miséria extrema, com o governo de Dilma Rousseff, além da desejável e indispensável capacidade de produção autônoma de conhecimento e tecnologia, indicam o término do ciclo de ajustamento do País à modernidade.

É bem possível que a travessia iniciada por um estancieiro gaúcho, que pouco se ausentava do palácio de governo instalado em uma cidade marítima do Sudeste, esteja sendo encerrada por um ex-metalúrgico paulista, migrante nordestino, associado a uma mulher, ex-presa política de origem mineira. Tão Brasil.

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Fonte: CartaCapital