Desta vez foi ao História que me acolhi, e aliás não por acaso: é que eu sabia que por aquela hora estaria a ser transmitido ali um documentário sobre D.Quixote, o fidalgo manchego de esplêndida loucura, e pensei que ele seria um bom antídoto para o enjoo que me tomara.

Aliás eu já vira em tempos o documentário e tinha dele uma vaga mas ainda excelente memória, o que era uma garantia. O que eu não recordava já era a presença de Saramago, convidado pela TV espanhola a comentar a figura criada por Cervantes, pelo que foi um prazer acrescido, ainda que tocado por alguma inevitável amargura, o reencontro com ele e com as suas palavras inteligentes e adequadas como sempre. Sublinhou Saramago, designadamente, que Cervantes não «mata» Quixote no final da novela, quem morre é um fidalgo empobrecido que regressou a sua casa depois de desistir de uma aventura alucinada e generosa.

E bem sabemos que de facto Quixote não apenas sobreviveu mas que continua vivo e, mais ainda, imaginável vencedor de muitos combates. Quem duvide disso queira comparar os tempos de Quixote/Cervantes com a actualidade, inventariar mesmo por alto os milhões de acorrentados que de então para cá se libertaram de grilhetas e os outros tantos servos que patrões brutais já não flagelam. É certo que essas vitórias não foram resultado das investidas de um cavaleiro solitário e um pouco ridículo, mas sim da luta dos próprios agrilhoados e servos, mas uma coisa está fora de dúvida: Quixote esteve com eles e terá gostado do resultado desses combates.

Mais e diferentes mundos

Estive, pois, cerca de uma hora com Quixote e alguns breves minutos com Saramago. No domingo. Mas, como é costume dizer-se em maré de pessimismos, o que é bom passa depressa e o que é mau não tarda a voltar. Assim, logo no dia seguinte, segunda-feira, a televisão encarregou-se de me lembrar que a fidalguia actual, que em nada se parece com o cavaleiro de La Mancha, faz planos a médio prazo para manter e reforçar um processo de recuperação financeira e económica que se caracteriza pela vampirização dos já pobres para que um limitado punhado de cavalheiros possa continuar a «criar riqueza», isto a coberto da já conhecida estória de encantar segundo a qual só se os ajudarmos a «criar riqueza» é que ela, a riqueza, pode ser distribuída.

E dizem-nos isto como se nós, os pagadores de crises, não soubéssemos que o momento da mítica distribuição nunca chega por mais florescentes que andem os negócios. Assim, na mesma segunda-feira, no decurso de uma operação de zapping com que procurava escapar ao pior, deparei com um jovem que não cuidei de identificar e que repetia, lá por palavras suas e embora sob fórmulas não evidentes, a estafada receita de cortar nos salários e nos apoios sociais, isto é, nas formas possíveis de uma ainda que avara «distribuição da riqueza». E acrescentava ele, para reforço da prescrição, que «todos os economistas o dizem». Aí, encalhei: «todos os economistas», quais? Talvez a maioria dos que o são por via das universidades portuguesas, pois há décadas que elas se constituíram em produtoras em série de técnicos formatados pelo neoliberalismo importado e aí estão eles, iguaizinhos entre si como soldadinhos de chumbo saídos da mesma caixa.

Mas também quanto às ciências económicas e políticas, pois sempre elas andam entrelaçadas entre sim, «há mais mundos», como diria o outro senhor. E são mundos habitados, ainda que praticamente interditos. Neles estão técnicos que sabem de soluções diferentes. E junto deles, quase apenas visível como uma silhueta, estará Quixote, o que libertou condenados e defendeu servos, para sempre sobrevivente à morte de um fidalgo que era o seu duplo mas estava longe de possuir o fogo interno da fome e sede de justiça.

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Fonte: jornal Avante!