Os EUA foram credores do mundo até 1986-1987, quando se tornaram novamente, nação devedora. Nas duas décadas seguintes a dívida americana ficou em US$ 3 trilhões

Italianos e outros europeus têm graves problemas para normalizar suas dívidas nacionais, públicas e privadas, de modo que pode parecer atrevimento um europeu debater o crescente e grave problema da dívida dos EUA. Mas a realidade fiscal nos dois lados do Atlântico é, hoje, muito semelhante, e somente a persistência da confiança na promessa dos EUA mantém viva a esperança, entre alguns europeus, de que algum grande golpe teatral americano resolverá a sombria situação da dívida do país.

Naturalmente, muitos americanos reconhecem a escala da carga da dívida do país. O almirante Mike Mullen, chefe de Estado Maior e, portanto, maior posto militar nos EUA, disse recentemente que o “maior perigo para a segurança americana vem da dívida nacional”. Quatro em cada dez americanos concordam com ele, ao passo que menos de três em dez consideram mais perigoso o terrorismo ou o Irã.

O status de grande potência dos EUA sempre foi vinculado a seu nível de endividamento. Na verdade, foi a ausência de endividamento que marcou a ascensão dos Estados Unidos à condição de potência mundial entre 1914 e 1917. Os EUA deviam US$ 3 bilhões (principalmente à Grã-Bretanha) e passaram a credores líquidos de um montante aproximadamente igual, graças a US$ 6 bilhões em créditos de guerra concedidos aos aliados ocidentais. Outros US$ 3 bilhões em créditos para a reconstrução no pós-guerra europeu cimentaram o status americano de maior nação credora do mundo, com um superávit equivalente a cerca de 8% do PIB, à época.

Essa mudança mostrou que os EUA tinham essencialmente substituído o Reino Unido como coração do sistema financeiro e monetário mundial. Antes, graças ao padrão-ouro e à estabilidade política britânica, a City londrina tinha sido fonte essencial de capital e de garantias financeiras no mundo por mais de um século.

A nova era começou subitamente em janeiro de 1915, quando, após alguns meses de profunda incerteza, ouro começou a ser enviado a Nova York, em quantidades crescentes. Poucos meses antes, Henry Lee Higginson, veterano financista de Boston tinha esboçado, numa carta ao presidente Woodrow Wilson, qual deveria ser a nova estratégia dos EUA. “Essa é nossa chance de assumir o primeiro lugar”, escreveu ele. A casa financeira americana tinha de ser posta em ordem, todas as dívidas tinham de ser pagas e, como Londres havia feito durante muito tempo, a confiança tinha de ser mantida, o que significava garantir a conversibilidade do dólar em ouro.

Sozinho, entre as grandes nações do mundo, os EUA conseguiram garantir a conversibilidade do dólar durante toda a Grande Guerra. Com a paz, o dólar e Wall Street tornaram-se a força dominante no cenário financeiro mundial. As regras do mercado financeiro estabelecidas após 1933 pelo New Deal do presidente Franklin Roosevelt permitiram ao dólar substituir a libra esterlina no centro do sistema internacional.

O papel dos EUA como banqueiro do mundo permaneceu inconteste nos 40 anos seguintes, até Richard Nixon desacoplar o dólar do ouro. No entanto, mesmo sem o padrão-ouro, o poderio econômico dos EUA, juntamente com a reciclagem dos petrodólares, manteve o dólar por cima.

Os EUA continuaram sendo uma nação credora do mundo até 1986-1987, quando tornaram-se, novamente, nação devedora. Nas duas décadas seguintes a dívida americana ficou em US$ 3 trilhões, aumentando ou diminuindo com a taxa de câmbio do dólar.

A partir de 1990, os EUA começaram a importar cada vez mais capital, particularmente da Ásia. Na década de 2000, a China se tornou a principal fonte de financiamento de dívida, e os americanos estavam felizes, pois isso permitiu que o Federal Reserve (Fed banco central dos EUA) mantivesse as taxas de juro baixas.

Houve alguns que anteviram o perigo. O economista sueco Axel Leijonhufvud anteviu uma inflação nos preços dos ativos – das casas, em particular – e uma piora da qualidade do crédito. Inovações financeiras logo fizeram essa previsão tornar-se realidade. Basta lembrar que em 2008 havia apenas 12 empresas públicas em todo o mundo com pontuação de crédito “AS” porém mais de 60 mil produtos financeiros estruturados – em sua maioria americanos – eram consideradas “triplo-A”. Os EUA, banqueiros do mundo, tinham se transformado no fundo de hedge do mundo.

Com essa mudança, o imperativo tradicional dos banqueiros – manter fidelidade e confiança – para “manter a fé”, como disse Higginson – foi esquecido. E é na dívida pública dos EUA que se acumulam os destroços de promessas descumpridas por seu sistema financeiro, assim como a enorme dívida pública italiana reflete o esbanjamento nacional passado.

Os números, para os EUA, são estarrecedores. A dívida pública inclui não apenas os US$ 13,2 trilhões devidos pelo governo federal, como outros US$ 3 trilhões devidos pelos Estados, condados e cidades americanas. Além disso, há os US$ 3,9 trilhões em dívidas de agências de financiamento habitacional bancadas pelo governo americano (Fannie Mae, Freddie Mac e outras), que atualmente garantem mais de 90% de todas as hipotecas habitacionais nos EUA. Como resultado, a dívida pública dos EUA chegou a aproximadamente 140% do PIB.

O Congresso americano tem clara consciência do que prenunciam esses números, mas seus membros preferem não encará-los de frente. Com efeito, o presidente não é mais obrigado a apresentar a previsão usual de cinco anos para a posição fiscal do país. A perspectiva de um ano é agora considerada suficiente.

Então, onde é que isso deixa a economia mundial? Não há nenhuma grande potência emergente capaz de assumir a responsabilidade de financiar o mundo, como houve em 1914. Naquela época, Wall Street estava pronta para assumir o encargo. Algum dia, Xangai e Hong Kong poderão estar prontas, mas essa possibilidade é de pouca ajuda agora.

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Mario Margiocco é autor de “Il disastro americano. Riuscirà Obama uma cambiare Wall Street e Washington?” (O desastre americano: conseguirá Obama mudar Wall Street e Washington?) Copyright: Project Syndicate, 2010.

Font^: jornal Valor Econômico