Os economistas Márcio Nakane e Alexandre Andrade, em artigo publicado em 04/08, trouxeram à baila a importante e recorrente discussão acerca da influência do crédito direcionado, em geral, e do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), em particular, sobre a eficácia da política monetária. Segundo os autores, como as taxas de juros cobradas pelos empréstimos do BNDES não são formadas no mercado, mas por decisão de política econômica, quando o Comitê de Política Monetária (Copom) decide elevar a taxa Selic, ocorre “… o deslocamento das operações de crédito do segmento livre para as linhas do BNDES”.

A partir desse argumento, fundamentado em estudo sobre a demanda de crédito no Brasil, concluem que a recente expansão dos empréstimos do BNDES, motivada pela necessidade de combater os efeitos da crise internacional, reduz, em contrapartida, a eficácia da política monetária ao enfraquecer o canal do crédito. Por essa razão, o Banco Central (BC) se vê obrigado, neste momento, a afixar maiores aumentos na taxa Selic do que o necessário caso não houvesse o efeito substituição entre o crédito livre e o direcionado.

Essa é uma conclusão viesada, precisamente pela pressuposição de que há um efeito substituição relevante entre as linhas do BNDES e do segmento livre. Como se sabe, o BNDES atua primordialmente no financiamento de longo prazo. Não seria correto dizer, então, que o BNDES concorre com as linhas de crédito livres dos bancos comerciais privados, que as tem canalizado, historicamente, para as operações de curto prazo. É claro que se deve reconhecer que, durante o ano de 2009, como os bancos privados mostraram-se reticentes em realizar quaisquer operações de crédito, até mesmo as de curto prazo, coube ao setor público sustentar o volume total de crédito.

Por essa razão, o BNDES ampliou fortemente o financiamento ao investimento; e os demais bancos públicos aumentaram a escala de seus empréstimos para a habitação e agricultura, com créditos direcionados, e para as demais operações, com créditos livres. No entanto, o ponto é que, em regra, a fatia do crédito direcionado em geral, e do BNDES, em particular, não concorre com os segmentos de interesse do setor bancário privado na aplicação do crédito livre.

Essa configuração especial do sistema financeiro brasileiro, em que o crédito livre tem sido direcionado primordialmente para operações de curto e curtíssimo prazo, implica que o aumento da taxa Selic reflete-se, fundamentalmente, no custo do financiamento das operações de curto prazo. Já o custo do financiamento de operações de longo prazo, com crédito direcionado, pode ser mantido estável por decisão política. Essa distinção entre as funções econômicas do crédito direcionado e do crédito livre é crucial para interpretar os efeitos da atual política monetária e permite mesmo argumentar, como se faz em seguida, que a política de crédito direcionado vigente favorece a eficácia da política monetária.

No regime de metas de inflação, o BC emprega a fixação da taxa de juros básica, a Selic, para regular o compasso entre demanda e oferta agregada. Quando identifica pressões consistentes do lado da demanda, o BC aumenta a Selic. Espera, com isso, encarecer o custo do crédito, reduzindo o crescimento da demanda até adequá-lo ao crescimento da oferta. Quanto mais facilmente atinge esse objetivo, mais eficaz é a política adotada.

É claro que esse ajuste não é trivial, especialmente nos momentos de pouca clareza quanto ao futuro da economia, tal como o que vivemos hoje. Caso o aumento da Selic impactasse todas as operações de crédito, os investimentos poderiam ser mais duramente afetados do que as decisões de consumo e de produção. Isso porque a efetivação do investimento depende da conjugação das decisões dos banqueiros, de financiar a longo prazo, e dos empresários, de contrair dívida para investir e ampliar sua capacidade produtiva. Ambas as decisões, normalmente presididas pela incerteza, especialmente neste momento em que a economia mundial se mostra bastante combalida, poderiam ser duramente atingidas pela elevação da taxa Selic.

Assim sendo, não fosse a atual política de crédito direcionado, que mantém estáveis os custos do financiamento do investimento, o aumento da Selic prejudicaria desproporcionalmente a formação de capital. Isso precisamente no momento em que há uma unanimidade em torno do objetivo de ampliar a participação dos investimentos no PIB.

É claro que a demanda agregada poderia sofrer maior contração caso os investimentos também sofressem maior redução, mas o ritmo de crescimento da oferta seria duramente desacelerado bem como seria elevado o desemprego. A política de controle da inflação, dessa forma, comprometeria a recuperação da atividade econômica, condenando o crescimento da economia brasileira a um futuro decepcionante.

No entanto, ao fortalecer as instituições financeiras públicas e determinar a expansão do crédito direcionado com taxas estáveis, o governo preserva as condições de financiamento da agricultura, do saneamento, da construção habitacional e, mais especificamente, no caso do crédito do BNDES, do investimento em máquinas, equipamentos e instalações produtivas. Todos reconhecem que essa política foi fundamental para a rápida recuperação da economia brasileira diante da crise financeira internacional. Mas, além disso, deve-se sublinhar que a expansão do crédito direcionado contribui também para o ajustamento mais rápido e perene entre a demanda e a oferta agregadas ao tornar o custo financeiro do investimento mais independente da política monetária. O efeito do aumento da Selic, ao ser canalizado pelo crédito livre, pode ser empregado para ajustar os gastos em bens de consumo, cujos preços formam o IPCA, enquanto o crédito direcionado, ofertado em condições estáveis, contribui para a manutenção do nível dos investimentos. Dessa forma, a expansão do crédito direcionado, neste momento de incerteza, impulsiona a economia brasileira rumo ao crescimento acelerado e não inflacionário.

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Antonio José Alves Junior é professor do Departamento de Economia da UFRuralRJ e Chefe do Departamento de Relações com o Governo do BNDES

Fonte: jornal Valor Econômico