Eis o argumento: no nível básico de ensino, aos pobres, por seu reduzido poder econômico, resta a rede pública, com precária infraestrutura e docentes desmotivados por baixos salários.

Ao contrário, as camadas médias e altas da sociedade, por capacidade financeira própria, financiam a educação de seus jovens em escolas privadas, com melhores condições de vencer o filtro competitivo do vestibular.

Nas universidades públicas, recebem gratuitamente educação superior de qualidade, enquanto os pobres são obrigados a pagar caro em instituições privadas. Essa análise oculta dois equívocos e uma falácia.

O primeiro equívoco refere-se ao conceito de gratuidade, como se pudesse existir alguma atividade, realizada com eficiência, sem custos estruturais e operacionais.

A universidade pública, dada sua missão social de excelência acadêmica, é cara e longe está de ser gratuita. É, de fato, pré-paga pelo orçamento público, constituído por impostos, taxas e também por contribuições sociais.

O segundo equívoco é achar que, "por capacidade financeira própria", as classes abonadas preparam seus jovens para ter acesso à universidade pública.

Isso não é verdade. No Brasil, importante parcela das despesas educacionais retorna às famílias com maior nível de renda sob a forma de descontos e restituição de impostos; dessa forma, enorme (mas oculta) renúncia fiscal subsidia a educação privada de seus filhos, o que lhes facilita predominar na educação superior pública.

A falácia encontra-se na premissa de que o Estado é sustentado por toda a sociedade, igualmente.
A estrutura tributária brasileira é, em si, importante fator de desigualdade social. Proporcionalmente à renda, os pobres contribuem para custear a máquina estatal, em todos os níveis e setores de governo, mais do que contribuintes de melhor situação econômica.

Dados do Ipea revelam que os mais pobres pagam 49 % de sua renda em impostos, enquanto os mais ricos contribuem com apenas 26 % da sua receita.

Ciclo vicioso, tripla perversão social. A maioria pobre não só financia a educação superior mas também subsidia a educação básica privada da minoria social privilegiada, que, não fossem as ações afirmativas, ocuparia a maior parte das vagas públicas.

Do ponto de vista da reprodução social, a formação daqueles oriundos da classe social detentora de poder político e econômico se dá, nas universidades públicas, em carreiras de maior retorno financeiro e prestígio social.

Por analogia ao conceito de mais-valia, a ideia de mais-perversão pode ser útil para entender e ajudar a superar a iniquidade social que tanto nos envergonha.

O estancamento da renúncia fiscal de despesas escolares contribuirá para resgatar a dívida social da educação, entrave ao desenvolvimento econômico e humano de nosso país.

Naomar de Almeida Filho, doutor em epidemiologia, pesquisador 1-A do CNPq, é reitor da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e membro do Observatório da Equidade do CDES (Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social).


Fonte: Folha de S.Paulo