O processo de globalização trouxe novidades importantes quanto a esses aspectos e suas relações. Assim, a dinâmica econômico-tecnológica, desdobrando-se no plano transnacional, enfraqueceu os estados como agentes autônomos de política econômica e social, apesar das revisões impostas por crises cada vez maiores. E, precedidos pela crise fiscal do Estado dos anos 1970, tanto o neoliberalismo globalizante quanto as crises econômicas recentes resultaram em desemprego e dificuldades para o “welfare state” e os mecanismos social-democráticos de igualdade e inclusão social, não obstante o continuado apoio popular a esses mecanismos e o fato de vermos agora o empenho de expandi-los até nos Estados Unidos.

O problema da identidade, contudo, segue colocando-se nos mesmos termos. Não há substituto, no novo mundo globalizado, para o papel cumprido por fatores culturais e psicossociológicos normalmente associados à nacionalidade na definição da própria identidade pessoal dos indivíduos, com seus efeitos no estabelecimento de laços comunitários e os desdobramentos em termos de sentimentos de solidariedade e antagonismo. Sem dúvida, há aspectos da cena mundial da atualidade que permitem relativizar essa observação de maneiras diferentes: de um lado, a experiência da União Europeia e seu notável êxito na superação de velhas hostilidades ligadas a identidades nacionais em confronto e repetidamente afirmadas em guerras calamitosas; de outro, o “choque das civilizações” de que falou Samuel Huntington, em que, particularmente no que diz respeito ao Islã, fatores de natureza religiosa tendem a prevalecer sobre fronteiras convencionalmente nacionais como referência básica das identidades e das disposições relacionadas. Seja como for, não parece haver por que pretender que o processo de globalização econômica e o aumento das comunicações mundiais produzam ou intensifiquem, por si mesmos, o sentimento de comunidade no nível do planeta como tal.

A Copa do Mundo, que agora se repete na África do Sul, enquadra num espaço esportivo as emoções da identidade nacional, mas as mobiliza com intensidade peculiar: não se veem multidões a chorar por causa de resultados nos jogos olímpicos, por exemplo (é certo, a Olimpíada agora incluem também o futebol, mas ele não chega aí a ser o foco real das atenções). Obviamente, é decisivo o fato de o futebol ter se tornado o esporte popular por excelência em escala mundial. E as emoções que suscita resultam talvez da problemática coordenação exigida de um grupo relativamente numeroso de jogadores, que se torna especialmente incerta e imprevisível – e dramática – em boa medida pelo fato simples de que, afinal, o jogo é jogado com os pés. Às vezes, como diz o poema de João Cabral de Melo Neto, os pés adquirem “astúcias de mãos”. Mas estamos longe da contabilidade com frequência enfadonha que as destrezas manuais trazem a outros jogos.

Há algo mais, porém, nessa Copa num país da África, que articula de modo simpático questões de identidade e igualdade. O jogo é em si igualitário, dispensando equipamentos custosos e mesmo maior estatura ou força física. Mas o continente em que a Copa acontece agora introduz a questão da igualdade de maneira sociológica e econômicamente relevante em plano mundial. Não só o continente tem estado secularmente à margem das conquistas do desenvolvimento material e intelectual, tornando significativo o fato de um país africano organizar e levar a bom termo um evento dessa complexidade – sem falar do simbolismo de tratar-se de um país em que o domínio dos herdeiros brancos da aventura colonial europeia assumiu feições singularmente brutais por tanto tempo. Além disso, apesar de o torneio terminar sem a presença de uma seleção africana (as regras deveriam impedir o claro benefício ao infrator contido na necessidade de cobrar pênalti em seguida ao gol certo que a mão de Suárez evitou na partida entre Gana e Uruguai), ocorre que a Copa na África do Sul coroa, por assim dizer, o claro talento dos africanos e seus descendentes para o jogo – e a presença crescente deles nas equipes vencedoras, mesmo as europeias. E é bom sinal que até a Alemanha, com mudanças legais recentes, tenha agora não só um Özil de origem turca, mas também um negro Cacau brasileiro.

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Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da UFMG

Fonte: jornal Valor Econômico