Além da parceria na tentativa de negociar um acordo do Irã com o Ocidente, há muitas semelhanças entre os momentos históricos vividos pelo Brasil e pela Turquia. Com cerca de 40% da população e do PIB e 67% das exportações do Brasil (mas volume maior de importações) o país do primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan pesa menos na economia global, mas sua importância geopolítica é comparável, pois está numa das encruzilhadas estratégicas mais importantes do planeta e possui uma força militar considerável.
É o segundo país da Otan em contingente militar (depois dos EUA), tem a terceira maior força aérea (depois dos EUA e Reino Unido) e é uma potência nuclear informal, com 40 a 90 armas nucleares made in USA em seus arsenais, embora só possa usá-las de acordo com o comando da Otan (assim como a Alemanha, a Itália, a Holanda e a Bélgica).

Os dois países são comparáveis em termos de renda per capita e desenvolvimento humano. A Turquia está ligeiramente à frente no primeiro quesito e um pouco atrás no segundo, mas na mesma categoria. Ambos sofreram com décadas de alta inflação, controlada em 1995 no Brasil e em 2005 na Turquia (que converteu a antiga moeda à razão de 1 milhão para 1) e, por vezes, se alternaram no papel de paí-s com juros mais altos no mundo. Ambos também são exportadores de novelas de tevê – e as turcas, picantes pelos padrões da região, são tão populares em todos os países muçulmanos que as permitem quanto às brasileiras na América Latina.

Ao contrário do governo brasileiro, o turco tem um discurso religioso e conservador e é tido como de centro-direita, mas suas políticas social, econômica e externa não são tão diferentes quanto isso poderia fazer supor. O partido de Erdogan, Justiça e Desenvolvimento, é visto como o defensor dos interesses das maiorias contra a elite privilegiada. Seu viés conservador aparece mais na promoção do uso do véu e redução do número de mulheres em cargos executivos (de 15% para cerca de 11%), embora, por outro lado, 30 das 50 mulheres do Parlamento turco sejam de seu partido.

Ambos passam por trajetórias políticas comparáveis há mais de cem anos. Na Turquia, como no Brasil, militares positivistas derrubaram uma monarquia anacrônica, impuseram uma modernização laica e conservadora, arrogaram-se o papel de guardiões da República e desferiram golpes de Estado contra governos democraticamente eleitos.

Nos dois, a elite econômica concentrou uma parcela desproporcional da riqueza nacional – Istambul é a quarta cidade do mundo em número de bilionários, depois de Moscou, Nova York e Londres –, desprezou o Terceiro Mundo e sua-s próprias massas “atrasadas” e quis fazer-se europeia ou norte-americana. As duas elites fracassaram ao alinhar-se às potências ocidentais com a esperança de entrar em seus clubes fechados – o Brasil no Conselho de Segurança da ONU, a Turquia na União Europeia.
As elites, cá e lá, resistiram e conspiraram – no Brasil, com a agitação em torno do “mensalão”, na Turquia com uma tentativa de golpe logo após a posse de Erdogan, em 2003, e agitação militar ante a eleição presidencial de Abdullah Gul, do partido de Erdogan, em 2007 –, mas foram forçadas a se conformar com a eleição de “populistas” e ver esses conseguirem inéditos êxitos sociais, econômicos e diplomáticos. De 2003 a 2010, o PIB da Turquia cresceu com inflação controlada a uma média de 4,3%, ante 4% do Brasil. Este cresceu menos até 2006, mas reagiu bem melhor à crise mundial que a Turquia, muito dependente da Europa no comércio exterior.

Neste ano, a Turquia além de se projetar no cenário internacional tanto quanto o Brasil, quando Lula e Erdogan mediaram a tentativa de acordo com o Irã juntamente com os chanceleres Celso Amorim e Ahmet Davutoglu, tornou-se uma estrela regional ao defender a flotilha que tentou romper o bloqueio a Gaza, liderada por uma ONG islâmica turca que tem o apoio oficioso do governo e do partido de Erdogan.
Após a ação brutal e desastrada de Israel, Ancara acusou Tel-Aviv de pirataria, arrancou uma condenação formal da Otan e exigiu a libertação imediata e incondicional dos tripulantes e passageiros, que Israel queria submeter a julgamento. Benjamin Netanyahu, que não se dobrava ante Barack Obama e Hillary Clinton quanto a fazer concessões aos palestinos, cedeu e em seguida viu-se forçado a relaxar o bloqueio a Gaza, que dizia ser o elemento mais importante de sua política de segurança. Foi um recuo como não se via em Israel desde que os EUA forçaram sua retirada do Sinai em 1978.
Da noite para o dia, o gesto de Erdogan fez mais pela causa palestina do que anos de retórica do iraniano Mahmoud Ahmadinejad, para não falar da solidariedade vazia dos líderes árabes. Uma pesquisa, logo após o incidente, mostrou que 43% dos palestinos consideravam a Turquia como seu maior aliado, ante apenas 6% que indicaram o Irã.

Os povos do Oriente Médio que, por várias gerações, viram a Turquia com desconfiança, pela aliança com a Otan ou pela lembrança do domínio otomano, passaram a enxergá-la como porta-voz do mundo muçulmano. A Turquia busca uma política de “problemas zero” com os vizinhos – principalmente o Irã e a Rússia, que lhe fornecem, respectivamente, 30% e 60% de suas necessidades de petróleo – e sua aproximação com os governos da Síria e do Irã, que os EUA quiseram relegar ao “eixo do mal”, vem mudando a geopolítica da região.

Com exceção do Tadjiquistão (que fala uma língua aparentada ao farsi iraniano), as nações da Ásia Central – Azerbaijão, Turcomenistão, Cazaquistão, Quirguistão e Uzbequistão – falam línguas muito semelhantes ao turco e veem o país como modelo de nação que se modernizou sem abrir mão da identidade nacional e das raízes islâmicas. O crescimento da China e a recuperação da Rússia dissiparam os sonhos de hegemonia sobre a região que a Turquia alimentou após a queda da União Soviética, mas suas relações com esses países são boas e Ancara é a sua principal alternativa para reduzirem sua dependência dos dois gigantes e exportarem seu gás e petróleo ao Ocidente.

Ao mesmo tempo, a Turquia melhorou as relações com vizinhos europeus. A cúpula de 23 de junho, em Istambul, do Processo de Cooperação do Sudeste Europeu, que reúne a Turquia aos 12 países dos Bálcãs, apoiou oficialmente o governo de Ancara e condenou o ataque israelense à flotilha. A Sérvia esqueceu o rancor contra a antiga dominação otomana e pediu a mediação da Turquia em conflitos com as minorias muçulmanas do país.

O atual governo grego, em especial, tem procurado pôr um ponto-final em gerações de tensão com a Turquia, depois da amarga guerra pela independência contra os otomanos no século XIX, da derrota na guerra greco-turca de 1919-1922 (que causou a expulsão de 1,5 milhão de gregos da Ásia Menor) e da humilhação em Chipre, que, em 1974, fez cair a ditadura grega (que pretendia anexar a ilha, dividida a partir daí em duas repúblicas, uma das quais é um protetorado da Turquia). A necessidade tornou-se ainda mais premente com a crise financeira: a Grécia não tem mais como sustentar as Forças Armadas proporcionalmente mais caras da Europa contra a ameaça hipotética da Turquia, que é sua aliada na Otan. Suspendeu a compra de armas e quer negociar uma solução pacífica para a reunificação do Chipre, enquanto tenta atrair investimentos turcos para sua combalida economia.

A Turquia deixou de ser apenas uma periferia da Europa, ou uma cabeça de ponte para eventuais ações da Otan contra a Rússia ou o Oriente Médio, para ser uma liderança, se não o centro geopolítico de sua própria região. Mas seria simplista dizer que deixou de pretender ser a cauda da Europa para assumir o papel de cabeça do mundo muçulmano, ou do Oriente Médio.

O governo Erdogan elegeu-se prometendo pôr o país na União Europeia, que absorve 57% das exportações turcas e fornece 40% de suas importações. Por todos os critérios objetivos de estabilização da economia, gestão fiscal e reformas econômicas e políticas, fez mais para atender às exigências da organização que os governos seculares anteriores. Inclusive no que diz respeito aos direitos humanos: a ideologia islamista do partido de Erdogan mostrou-se mais compreensiva em relação à minoria curda que o nacionalismo extremado dos secularistas herdeiros da revolução de Kemal Atatürk.

Até os anos 1990, o governo turco negava a própria existência da língua curda, mas hoje há uma tevê e uma faculdade nessa língua. O governo tem aceitado o retorno de curdos que haviam se refugiado no norte do Iraque. Investimentos consideráveis têm sido feitos para promover o desenvolvimento da região curda, em busca de uma solução pacífica – por enquanto, frustrada pela intransigência dos separatistas curdos.

Apesar disso (e de a Turquia oferecer a possibilidade de reduzir a dependência europeia de gás russo intermediando exportações da Ásia Central e Oriente Médio), cresceu ainda mais a oposição à sua adesão, com Alemanha e França a insistir no caráter “cristão” da Europa. Por outro lado, o apoio popular turco à União Europeia caiu de 70%, em 2002, para 50% hoje. A crise europeia não eliminou, em princípio, o interesse de Erdogan, que continua a tentar mostrar-se otimista, mas tornou a aceitação na organização ainda menos provável. Desemprego em alta, exploração populista do ressentimento contra imigrantes e disputas entre os próprios europeus tornam ainda mais distante a possibilidade de um acordo para a integração de um grande sócio muçulmano, que implicaria a liberdade de seu povo migrar e trabalhar em países europeus.

A própria Europa, por seus preconceitos, e os EUA e Israel, por sua agressividade, vêm empurrando a Turquia para uma posição cada vez mais distante do Ocidente. O primeiro sinal da nova política, na primeira semana do governo Erdogan, foi o veto ao uso das bases e do e-spaço aéreo turco para a invasão estadunidense do Iraque, em 2003. Neoconservadores estrilaram, mas o novo governo recebeu total apoio dos militares e do povo e o próprio Bush júnior não ousou punir o país, dada sua importância estratégica.
Ainda em 2007, Israel via a Turquia como aliada e Shimon Peres foi o primeiro presidente israelense a falar no Parlamento turco. A virada deu-se com a retaliação desproporcional de Israel a Gaza em 2008. Isso ofendeu tanto a solidariedade religiosa dos turcos com os palestinos quanto a diplomacia turca, na época engajada em mediar um acordo entre Síria e Israel, a pedido de Tel-Aviv. No ano seguinte, com a eleição de um governo israelense ainda mais radical, as relações turco-israe-lenses esfriaram proporcionalmente.

O governo turco condenou repetidamente o terrorismo de Estado israelense, ajudou famílias palestinas com documen-tos otomanos provando sua posse da terra desde antes da chegada dos israelenses e não fez objeções a um seriado sobre Gaza que pintou os israelenses como vilões na tevê turca. O governo israelense não conteve o discurso agressivo de radicais como o chanceler Avigdor Lieberman, que rejeitou a mediação turca com a Síria e começou a congelar a venda de armas avançadas à Turquia. Em outubro de 2009, a Turquia suspendeu uma manobra militar conjunta da Otan com a aviação de Israel – e se essa ainda foi uma medida simbólica, que não suspendeu os acordos mais gerais e o comércio de armas entre os dois países, os acontecimentos deste ano precipitaram uma ruptura real.

Além de retirar seu embaixador de Tel-Aviv – e ameaçar não restaurar relações diplomáticas plenas se Israel não pedir desculpas formais e suspender o bloqueio a Gaza –, a Turquia congelou praticamente todos os acordos militares com Israel, exceto as vendas já fechadas. São 16 acordos no valor total de 56 bilhões de dólares, incluindo mísseis, tanques e aviões de combate.

Após o confronto com Israel, sionistas e republicanos carregaram contra Ancar-a. O Instituto Judeu para Assuntos de Segurança Nacional (Jinsa) cobrou a expulsão da Turquia da Otan: “Como membro, tem acesso à inteligência relacionada a terrorismo e ao Irã… Se a Turquia acha que seus melhores amigos são o Irã, o Hamas, a Síria e o Brasil (olhando para a Venezuela no futuro), a segurança dessa informação (e a tecnologia ocidental nas armas no arsenal turco) está em risco”. O Wall Street Journal, representante da oposição, tem atacado a Turquia sistematicamente, acusando seu governo de cumplicidade com extremistas. O conservador The Weekly Standard sugeriu um golpe militar na Turquia como “mal menor”.

Washington reagiu de maneira destemperada à mediação turco-brasileira que tentou evitar sanções ao Irã, mas foi mais cauteloso ante a crise turco-israelense, que ameaça pôr a perder sua estratégia global. Para a centro-direita liberal, a democrática e basicamente ocidentalizada Turquia, por insubmissa que seja, é um contrapeso importante ao Irã e às forças radicais no Oriente Médio – assim como o nacionalismo moderado do Brasil é visto por muitos como contrapeso à Venezuela e ao bolivarianismo.

Sabe que a oposição é uma aposta arriscada e um golpe de Estado poderia radicalizar a população em um sentido antiocidental. Talvez todo o mundo árabe, visto que Erdogan tornou-se o líder mais popular da região. No momento em que o peso relativo dos EUA e do Ocidente no mundo está encolhendo, seus governos se debatem com crises financeiras e a estratégia militar no Afeganistão e Iraque caminha para um completo fracasso, Washington não está em condições de correr mais esse risco.

Robert Gates, o secretário de Defesa dos EUA, preferiu culpar a União Europeia por recusar à Turquia a ligação orgânica com o Ocidente que ela deseja. O presidente da Comissão Europeia, José Manuel Barroso, respondeu responsabilizando a pressão de Bush júnior sobre o mundo muçulmano.

Mais lhes vale tentar reconquistar a Turquia com vantagens comerciais e políticas. O governo Erdogan não vai durar para sempre, mas a tendência natural do país, se não puder se integrar inteiramente ao Ocidente, é assumir um papel cada vez mais importante como potência emergente independente e mediadora entre o Ocidente e a Periferia, ao lado dos BRIC e do Irã.

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Fonte: revista CartaCapital