O banditismo de Wall Street é a causa próxima da Grande Recessão, não sua causa de fundo. Mesmo se a “Rua” for melhor controlada no futuro (e eu tenho lá minhas dúvidas de que isso ocorrerá), a razão estrutural da Grande Recessão é o que ainda assombra a América. Esta razão é explosão da desigualdade americana.

Considere-se o seguinte: em 1928 os 1% dos americanos mais ricos recebiam 23,9% do total da renda nacional. Depois disso, a partilha dos 1% mais ricos declinou fortemente. As reformas do New Deal, seguidas pela Segunda Guerra Mundial, o G.I.Bill e a Great Society expandiram o círculo da prosperidade. Em fins dos anos 1970 os 1% mais ricos representavam apenas 8 a 9% do total da renda anual da América. Mas depois disso a igualdade começou a aumentar de novo, e a renda reconcentrou-se acima.

Por volta de 2007 os 1% mais ricos estavam de volta aonde estiveram em 1928 – com 23,5% do total. As duas maiores quebras econômicas da América ocorreram nos anos imediatamente subsequentes a esses pontos máximos – em 1929 e em 2008. Não se trata de uma mera coincidência. Quando a maior parte dos ganhos do crescimento econômico ficam com uma pequena fatia de estadunidenses da elite, o resto não não tem o poder de compra para adquirir o que a economia é capaz de produzir. O salário médio dos EUA, ajustado à inflação, quase não mudou por décadas. Entre 2000 e 2007 ele na verdade despencou. Nessas circunstâncias, a única maneira da classe média manter seu poder de compra foi se endividando, como o fez com gosto. Enquanto os preços das moradias aumentaram, os americanos transformaram seus lares em caixas eletrônicos. Mas esse tipo de empréstimo tem limites. Quando a bolha da dívida finalmente explodiu, um vasto número de pessoas não pôde pagar suas contas, e os bancos não puderam receber.

A China, a Alemanha e o Japão certamente contribuíram para o problema, ao não conseguirem comprar de nós tanto como nós compramos deles. Mas acreditar que a nossa crise econômica contínua deriva principalmente de nossa balança comercial – compramos demais e poupamos pouco, enquanto eles fazem o oposto – é deixar de lado o maior desequilíbrio de todos. O problema não é que os americanos típicos tem gastado além dos seus ganhos. É que seus ganhos foram congelados junto ao que o crescimento da economia poderia e deveria poder fornecer-lhes.

Um segundo paralelo liga 1929 a 2008: quando os ganhos acumulam no andar de cima, as pessoas da elite investem sua riqueza em qualquer ativo que provavelmente atraia outros grandes investidores. Isso aumenta o preço de alguns ativos – commodities, ações, dot-coms ou investimentos imobiliários – que se tornam altamente inflados. Bolhas especulativas como essas explodem em seguida, deixando para trás montanhas de garantias sem quase valor algum.

A quebra de 2008 não se tornou uma Grande Depressão porque o governo aprendeu a importância de alimentar o mercado com dinheiro, resgatando assim temporarialmente alguns consumidores encalhados e a maioria dos grandes bancos. Mas o resgate financeiro não mudou a estrutura de fundo da economia. A média dos salários continua seu declínio e a elite continua a mexer na parte da riqueza do leão. É por isso que as classes médias ainda não têm o poder de compra necessário para levantar a economia, e porque a auto-proclamada recuperação será tão tépida – talvez levando até a uma segunda queda. Também é por isso que a América estará ainda mais vulnerável a bolhas especulativas e a explosões mais profundas nos próximos anos.

O problema estrutural começou nos fins dos anos 1970, quando houve uma onda de novas tecnologias (o transporte aéreo de cargas, os navios containeres e terminais, comunicações via satélite e, mais tarde, internet) que reduziram radicalmente os custos do trabalho no exterior. Outras novas tecnologias (automação, computadores e aplicativos de software ainda mais sofisticados) tiraram muitos outros empregos (Lembram dos caixas de banco? Dos operadores de telefones? Dos atendentes em postos de gasolina?). Nos idos dos anos 80 qualquer emprego que exigisse atividade repetitiva foi desaparecendo – indo para o exterior ou se tornando um software. Enquanto isso, ao passo que o pagamento da maioria dos trabalhadores achatava ou despencava, o pagamento dos socialmente bem conectados graduados em escolas de prestígio e programas MBAs – os assim chamados “talentos” que alcançaram o ápice do poder em suites executivas e em Wall Street – decolaram.

O que intriga é por que tão pouco foi feito para reverter essas forças. O governo poderia ter dado aos empregados mais poder de barganha para aumentarem seus salários, especialmente em idústrias protegidas da competição global e que requerem serviço pessoal: o grande comércio varejista, cadeias de restaurantes e hotéis, e assistência à criança e ao idoso, por exemplo. Redes de proteção social poderiam ter sido alargadas para compensar a ansiedade crescente frente à perda de empregos: seguro-desemprego cobrindo meio turno de trabalho, seguro salário frente à perda de poder aquisitivo, assistência na transição para novos empregos em novos lugares, seguro para comunidades que tenham perdido um grande empregador para que possam disputar novos empregadores. Com os ganhos do crescimento econômico a nação poderia ter oferecido assistência médica a todos, escolas melhores, educação fundamental e creche para as crianças, mais acessibilidade para as universidades públicas, mais transporte público de longo alcance. E se mais dinheiro fosse necessário, os impostos sobre os ricos poderiam ter aumentado.

Grandes e rendáveis companhias poderiam ter sido proibidas de demitir grandes números de trabalhadores de uma só vez, e poderiam ter de pagar indenização pela demissão – digamos, o equivalente a um ano de salário – para cada um que mandasse embora. As corporações cujas pesquisas fossem subsidiadas pelo contribuinte poderiam ter sido convocadas a criar novos empregos nos Estados Unidos. O salário mínimo poderia ter sido indexado à inflação. E os parceiros comerciais dos EUA poderiam ter sido estimulados a estabelecerem salários mínimos fixados à metade dos salários da classe média em seus países – assegurando assim que todos os cidadãos partilhassem os ganhos do comércio e que fosse criada uma classe média global que poderia comprar mais nossas exportações.

Mas começando no fim dos 70 e com um aumento fervoroso ao longo das décadas seguintes, o governo fez justamente o oposto. Desregulou e privatizou. Aumentou o custo público da educação superior e cortou o transporte público. Rasgou as redes de proteção social. Cortou pela metade o imposto de renda da elite, dos 70-90% que prevaleceram durante os anos 50 e 60 para 28-40%. Isso permitiu que muitos dos ricos do país tratassem sua renda como ganhos de capital sujeitos a não mais que 15% de taxação e escapassem também dos impostos sobre herança. Ao mesmo tempo, tanto a folha de pagamento como o estímulo ao consumo nos EUA sofreram um desfalque maior em função da diminuição da participação da classe média e dos pobres, do que dos bem remunerados.

As companhias foram autorizadas a cortar empregos e salários, aposentadorias e a transferir os riscos aos empregados (do ‘você pode contar com sua aposentadoria’, do “boa cobertura de saúde’ ao aumento dos seguros de vida e deduções de benefícios). Eles quebraram os sindicatos e ameaçaram os empregados que tentaram se organizar. As maiores companhias se tornaram globais com não mais lealdade ou conexão com os Estados Unidos do que um serviço de GPS. Washington desregulou Wall Street enquanto o protegeu de grandes perdas, tornando a finança – que até recentemente servia à indústria da América – no seu senhor, exigindo lucros de curto prazo em vez do crescimento de longo prazo e arrastando uma porção ainda maior dos lucros do país. E nada foi feito para impedir que os salários dos executivos disparassem para mais de 300 vezes do que o de um trabalhador médio (de trinta vezes durante a Grande Prosperidade dos anos 50 e 60), enquanto o pagamento de executivos do mercado financeiro e de negociantes subiram a níveis estratosféricos.

É fácil demais culpar Ronald Reagan e sua laia republicana. Os democratas têm sido quase tão relutantes em atacar a desigualdade ou mesmo em reconhecê-la como o problema econômico e social central de nossos tempos. (Como Secretário de Trabalho da gestão Bill Clinton eu poderia saber). A razão é simples. Enquanto o dinheiro está aumentando também o está o poder político. Os políticos são mais dependentes do que nunca do dinheiro grande de suas campanhas. Washington moderna está longe de se afastar da Era de Ouro quando, tem-se dito, os lacaios dos barões do roubo literalmente depositem sacos de dinheiro nas mesas de legisladores amigáveis. O dinheiro de hoje vem na forma ou mesmo no aumento de doações de campanha de executivos das corporações e de Wall Street, seus ainda maiores pelotões de lobistas e suas hordasa de relações públicas propagandistas.

A Grande Recessão poderia ter levado a uma outra era de reformas fundamentais, assim como após a Grande Depressão. Mas o resgate financeiro reduziu demandas imediatas para reformas mais amplas. Obama pode ainda ter conseguido traçar um quadro acuradamente. Ainda assim, ao assegurar às pessoas que a economia voltaria ao normal ele perdeu uma oportunidade chave de expor o flagelo do aumento da desigualdade e seus perigos. Conter a crise financeira imediata e então afirmar que a economia estava em recuperação deixa as pessoas com uma idéia difusa dos problemas econômicos que ficam parecendo não relacionados entre si e inexplicáveis, como se um incêndio na cidade fosse enfrentado principalmente com uma conflagração, ao se proteger os grandes edifícios de escritórios enquanto deixa o resto da cidade cozinhando em fogo brando: falências domésticas, perda de empregos, diminuição da renda, insegurança econômica, aumentando o pagamento em Wall Street e nas suítes executivas.

A legislação para melhorar o sistema da assistência em saúde dos EUA [Healthcare] ilustra o paradoxo. Inicialmente, a nação estava fortemente favorável. Mas o presidente e os líderes democratas fracassaram em relacionar a reforma na saúde a uma agenda maior de distribuição ampla da prosperidade. Dessa maneira, como o desempergo cresceu ao longo de 2009, a população compreensivelmente voltou sua atenção à perda de empregos e diminuição de salários, frente aos quais a assistência em saúde parecia um problema menor. Consequentemente, o país não se mobilizou ativamente por uma reforma como seria necessário para enfraquecer o poder das grandes empresas farmacêuticas e das seguradoras privadas de saúde, que exigiram que qualquer assim chamada reforma melhorasse os seus próprios ganhos. A legislação resultante é dispensável para a direita, porque não controlaria adequadamente os custos e demanda que os estadunidenses paguem mais pelo seguro-saúde do que o fariam se o projeto não tivesse sido aprovado. Basicamente a mesma coisa ocorreu com os esforços para reformar o sistema financeiro.

A Casa Branca e os líderes democratas poderiam ter descrito o maior objetivo como sendo a reconstrução das instituições econômicas que oferecem maior recompensa para relativamente poucos enquanto impõem custos e riscos extraordinários para todos os outros. Em vez disso, eles definiram o objetivo estreitamente: reduzir riscos para o sistema financeiro causados pelas práticas particulares de Wall Street. A solução então se estreitou num conjunto de consertos voltados a como a “Rua” deveria conduzir seus negócios.

Até o desastre no Golfo do México poderia ter sido apresentado num quadro mais amplo, de como corporações gigantes usam sua influência para capturar os reguladores e impôr os riscos e os custos à população, no exterior e a importância fundamental da saúde pública e da segurança ambiental para espalhar a prosperidade. Mas aqui de novo a administração e os líderes democratas fracassaram em conectar ambas as coisas. O desastre se tornou uma questão técnica a respeito de como interromper o vazamento de petróleo e uma discussão política de como regular a perfuração em águas profundas.

Se nada mais for feito, a guinada para a ampla desigualdade das últimas três décadas dos EUA é um convite aberto para um demagogo futuro que desconecte as questões, culpe os imigrantes, os pobres, o governo, as nações estrangeiras, os “socialistas” ou as “elites intelectuais” pelo crescimento das frustrações da classe média. O maior problema da hora do dia na política americana não estará mais entre democratas e republicanos, liberais ou conservadores. Estará entre ser do “establishment” e a população cada vez mais enlouquecida, determinada a “tomar a América de volta” deles. Quando eles entenderem onde isso leva, os interesses poderosos que até agora resistiram às reformas podem vir a perceber que a alternativa é muito pior.

Um pêndulo virtual sustenta a política econômica americana. Nós vamos de eras em que os benefícios do crescimento econômico eram concentrados em poucas mãos para um período em que os ganhos são distribuídos mais amplamente, e então voltamos ao estado inicial. Estamos nos aproximando do fim de um ciclo desses e do começo de um novo. A questão não é se o pêndulo vai voltar ao estado anterior, mas como ele vai se mover – se com reformas que aumentem o círculo de prosperidade ou se com a demagogia que faz a América dar as costas para o resto do mundo, encolhendo a economia e pondo os americanos uns contra os outros.

Nenhum de nós pode se desenvolver numa nação dividida entre um pequeno número de pessoas recebendo uma quantidade ainda maior da renda e da riqueza da nação, enquanto todo o resto recebe uma parte cada vez menor. A desigualdade não apenas diminui o crescimento econômico como também esgarça o tecido social de nossa sociedade. Os mais afortunados dentre nós, que alcançaram o auge do poder econômico e do sucesso dependem de uma economia e de um sistema político estáveis. Essa estabilidade repousa na confiança pública de que o sistema opera no interesse de todos nós. Qualquer perda dessa confiança ameaça o bem estar de todos. Escolheremos a reforma, eu acredito, porque somos uma nação com sensibilidade, e a reforma é a única opção sensível que temos.

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Ex-Secretário do Trabalho do governo Bill Clinton e Professor de Políticas Públicas na Universidade da Califórnia, Berkeley

Tradução: Katarina Peixoto

Fonte:  The Nation, na Carta Maior