A “Agenda de Desenvolvimento” foi adotada em 2007 pela Assembléia-Geral da OMPI, atendendo proposta apresentada três anos antes por Brasil e Argentina, com apoio dos países subdesenvolvidos e oposição liderada pelos Estados Unidos. Ela parte do pressuposto de que, apesar dos progressos científicos e tecnológicos do último século, há um crescente abismo entre os países ricos e os pobres nesses campos. Por isso, defende a alteração da atual política de proteção da propriedade intelectual, para que possibilite a transferência e a disseminação de tecnologias em favor dos últimos. São ao todo 45 recomendações sobre assistência técnica e capacitação, políticas públicas e domínio público, transferência de tecnologia, acesso ao conhecimento, questões institucionais e outras (1).

A proposta brasileiro-argentina favorece o acesso a novas tecnologias pelos países subdesenvolvidos, que tem sido cada vez mais dificultado pela ação dos cartéis e pela imposição de patentes por longo período de tempo. Denuncia as regras vigentes e seu impacto sobre os preços de bens essenciais como medicamentos, softwares educativos e livros. Trata ainda de bloquear a apropriação de conhecimento tradicional e de recursos genéticos por parte das potências. Por outro lado, um dos aspectos da proposta que suscita maior oposição dos países dominantes é a preservação do domínio público, fundamental como fonte de informação geradora de inovação e criatividade.

A arte estadunidense de impor seus interesses ao mundo

A reação a esse avanço das pretensões do terceiro mundo ganhou corpo nas reuniões sobre o Anti-Counterfeiting Trade Agreement (Acta), um acordo comercial antipirataria que está sendo negociado desde novembro de 2009 por Estados Unidos, União Europeia, Japão, Austrália, Canadá, Suíça, Coreia do Sul e México. Para evitar o surgimento de oposições, seus promotores aceleraram o cronograma, com o objetivo de assinar o acordo até o final deste ano. A iniciativa é tão acintosamente contrária à comunidade das nações, que até o Parlamento Europeu se manifestou, em março de 2010, contra o seu caráter sigiloso. Só então surgiram algumas informações extraoficiais sobre o andamento das discussões (2).

Além de sigilosas, as tratativas acontecem à revelia da OMC e da própria OMPI, órgãos que passaram a não interessar aos EUA e a seus aliados desde que os países subdesenvolvidos começaram a levantar a voz nesses fóruns para defender seus interesses (3). Os Estados Unidos, portanto, confirmam sua tradicional política imperialista de ignorar a opinião da maioria das nações, para impor seus interesses à força, se necessário.

Pelo esboço do acordo que veio a público, ele autoriza os países signatários a confiscar mercadorias em trânsito pelos seus territórios, inclusive medicamentos genéricos (que não podem ser confundidos com pirataria) ou qualquer outro produto. Nesse sentido, o Acta dará um verniz de legalidade internacional aos seguidos casos de apreensão, em portos europeus, de genéricos em trânsito da Índia para o Brasil e para outros destinos. Outra de suas cláusulas pretende responsabilizar provedores de internet pela vigilância e comunicação sobre os acessos à rede por parte de seus usuários, violando o direito à privacidade. O internauta “infrator” poderá ser até excluído da rede, assim como o provedor.

Os protestos contra esse arranjo não se fizeram esperar. Criadores, consumidores, provedores de internet e defensores de direitos digitais da Europa lançaram, em maio último, um manifesto protestando contra o tratamento que está sendo dado ao tema. Eles defendem uma política mais flexível, que estimule a criatividade, com a abertura de exceções ao copyright, para possibilitar reutilizações legítimas e inovações imaginadas a partir de criações existentes. Em 14 de junho, em Washington, mais de 90 especialistas dos quatro cantos do mundo também se reuniram para denunciar o Acta. Para eles, esse acordo inviabiliza as políticas de acesso a medicamentos e a bens culturais com fins educacionais, fundamentais para qualquer país em desenvolvimento, além de conter diversos outros aspectos contrários ao interesse público, como, por exemplo, os que dizem respeito aos direitos dos usuários e dos provedores de internet (4).

“Haverá muita pressão sobre Brasil e aliados”

Os EUA e seus aliados argumentam, por seu lado, que a OMC e a OMPI não têm sido capazes de controlar a produção e a distribuição de produtos falsificados, que estão em crescimento. Eles também acusam Brasil, Índia, Rússia e China de serem tolerantes com a pirataria. A repressão a esse fenômeno exigiria normas mais rigorosas, que incluam sanções civis e criminais contra os infratores (5). O Acta, na realidade, visa atingir diretamente os países citados, cujas ações contrariam cada vez mais os interesses das potências dominantes. Ele deverá ser usado para pressionar os países pobres a aderirem a seus termos, que serão um dos pilares dos famigerados acordos de livre comércio com os EUA. “Haverá muita pressão, especialmente sobre Brasil, Índia, China, Rússia e, em escala menor, África do Sul”, declarou à Folha de S. Paulo o coordenador do Programa de Justiça da Informação e Propriedade Intelectual da Escola de Direito de Washington, da American University, Sean Flynn. Por sua vez, o embaixador do Brasil na OMC, Roberto Azevedo, observa que a iniciativa passa por cima de acordos internacionais anteriores sobre propriedade intelectual, como o Trips, assinado em 1994 (6).

Os EUA, segundo o especialista em propriedade intelectual e professor da FGV-Rio, Pedro Paranaguá, tentam obter um acordo desse tipo desde 2004. Mesmo acreditando que dificilmente o governo brasileiro irá aderir a um tratado como esse, ele teme que o Acta possa, por pressão do lobby privado, influenciar negativamente a revisão da lei do direito autoral no Brasil, ora em discussão (7). Um dos objetivos do governo brasileiro é flexibilizar a atual legislação, para introduzir um equilíbrio maior entre a proteção do direito de autor e o interesse público de acesso à cultura, em sentido frontalmente oposto ao do pretendido pelo Acta. O Brasil, explica Paranaguá, está na contramão das potências dominantes também quanto ao seu projeto de lei que institui um marco civil para a internet no Brasil (a cargo do Ministério da Justiça). Ele observa que há outras iniciativas brasileiras extremamente positivas nessa área, como o programa de acesso universal a medicamentos para pacientes com HIV, tido como modelo no mundo (8).

Confiscos de mercadorias do terceiro mundo na Europa

O contencioso envolvendo as seguidas apreensões, em portos europeus, de medicamentos genéricos indianos (legais) destinados ao Brasil promete esquentar. Após o Itamaraty enviar, em março último, uma missão a Bruxelas para questionar as medidas de força, sem obter resultados, o país decidiu entrar, em conjunto com a Índia, com consulta no Mecanismo de Solução de Controvérsias, da Organização Mundial do Comércio (OMC), denunciando o comportamento da União Europeia no caso. Em dezembro de 2009, um carregamento de 500 quilos do genérico Losartan foi retido em Roterdã, na Holanda. A carga havia saído da Índia, onde foi fabricada, e se direcionava ao Brasil. A Merck Sharp & Dohme tem a patente do produto na Holanda, mas não no Brasil, nem na Índia. Mesmo assim, foi confiscada com base no Regulamento 1.383/2003 da UE, que estipula uma regra contrária à dos acordos internacionais sobre o tema (9). Segundo o Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (Rebrip), entre 2008 e 2009, pelo menos 15 carregamentos de medicamentos genéricos destinados a países da América Latina tiveram o mesmo destino. A contenda acontece em um momento em que diversos remédios produzidos por grandes laboratórios, que representam vendas anuais de US$ 30 bilhões, estão prestes a perder suas patentes e passarão a ser substituídos por genéricos (10).

O Brasil, com o respaldo de países subdesenvolvidos e de organizações humanitárias como a Oxfam e os Médicos Sem Fronteira, irá questionar o comportamento da União Europeia também na Organização Mundial da Saúde. Neste âmbito, procurará diferenciar os conceitos de mercadoria contrafeita (isto é, que violam direitos de marca) dos produtos genéricos, que não infringem nenhuma lei. Os europeus aproveitam a confusão entre os termos para confiscar medicamentos como o Losartan. “Grandes empresas farmacêuticas atuam em várias frentes para tentar barrar o trânsito e o acesso a genéricos. O assunto está presente na OMC, na OMS e em acordos bilaterais”, afirma Gabriela Chaves, da ONG Médicos Sem Fronteiras (11). A já citada Rebrip acionou o Tribunal Permanente dos Povos (TPP), composto por juristas de diferentes países, denunciando os confiscos encorajados pela EU como violação de direitos à saúde e à vida das populações de países atingidos.

Nos Estados Unidos há outro ativo lobby contra a atuação do Brasil na área da propriedade intelectual. Fortes grupos econômicos estadunidenses, sobretudo do setor farmacêutico, pressionam o governo dos EUA a rebaixar a classificação brasileira na lista de violadores de patentes. Trata-se de uma contraofensiva à intenção de Brasília de quebrar patentes como retaliação na questão dos subsídios ao algodão, que Washington não quer abandonar, apesar da condenação da OMC (12). A lista de classificação não tem qualquer reconhecimento internacional, mas serve como mais um instrumento de pressão dos EUA para submeter os países pobres. Ela relaciona os países segundo sua atitude em relação à propriedade intelectual, como patentes, direitos de autor e outros. O Brasil é visado também porque editou uma Medida Provisória que prevê a suspensão desses direitos sempre que julgado necessário a seus interesses.

Processo de usurpação do direito público em favor dos cartéis

A luta em torno da propriedade intelectual, como esclarece o jornalista Aldo Pereira, reúne criadores, empresas (gravadoras, editoras, programadoras) e a sociedade, que é titular do direito ao conhecimento e à arte. Uma vez que, segundo ele, não há criação absolutamente original, mas apenas novas obras da tradição cultural em que o autor se forma, o respectivo direito deveria se caracterizar apenas como licença de usufruto econômico exclusivo durante certo período. Se seu titular for pessoa física, a licença poderia vigorar durante seu tempo de vida, mas sem ser hereditária (13). Pereira considera que há, ao contrário, um processo de usurpação do direito público em favor de interesses corporativos. “Isto é, acumulação de privilégios desfrutados por cartéis e outros grupos que em geral os têm obtido pelo suborno sistemático de legisladores e burocratas”, nas suas palavras.

Para comprovar isso, o jornalista mostra que, no período imperial, a obra literária caía em domínio público dez anos após sua publicação; na República, o privilégio foi dilatado para até 50 anos após a morte do autor, prazo que já chegou a 70 anos. Em síntese, há progressiva ampliação do direito privado e corporativo de exploração econômica dessas obras, em detrimento do domínio público. “O abuso é mais nítido na exploração autoral póstuma. Em 1998, o Congresso dos EUA estendeu a proteção póstuma a 95 anos para as criações de Walt Disney: no caso de Mickey, até 2061”.

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(*) Jornalista

NOTAS

(1) Fleur Claessens. A Agenda de Desenvolvimento da OMPI avança. Puentes entre el Comercio y el Desarrollo Sostenible, v.VIII, n. 1, Marzo. 2007, p.13; Joana Varon. Conquistas da 5ª Reunião do Comitê sobre Desenvolvimento e Propriedade Intelectual da OMPI, 07/05/2010. http://a2kbrasil.org.br/Conquistas-da-5-Reuniao-do-Comite.

(2) Pedro Paranaguá. O que tem o ACTA a ver com a internet? E com o Brasil? A Rede, 16/11/2009. http://www.arede.inf.br/inclusao/component/content/article/106-acontece/2415-o-que-tem-o-acta-a-ver-com-a-internet-e-com-o-brasil.

(3) Outros órgãos das Nações Unidas igualmente interessadas na questão são a Comissão de Direitos Humanos e a Organização Mundial da Saúde (OMS), para acesso a medicamentos, e a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad). Luciana Coelho e Andrea Murta. Brasil é alvo de ricos em pacto antipirataria. Folha de S. Paulo, 06/05/2010.

(4) O documento pode ser lido em http://www.wcl.american.edu/pijip/go/acta-communique.

(5) Ronaldo Lemos e Pedro Mizukami. Tratado quer tirar poder das Nações Unidas. Folha de S. Paulo, 06/05/2010.

(6) Luciana Coelho e Andrea Murta. Brasil é alvo de ricos em pacto antipirataria. Folha de S. Paulo, 06/05/2010.

(7) Desde meados de junho último, o Ministério da Cultura abriu, para consulta pública, o texto básico do novo projeto de lei sobre direitos autorais.

(8) Pedro Paranaguá. O que tem o ACTA a ver com a internet? E com o Brasil? A Rede, 16/11/2009. http://www.arede.inf.br/inclusao/component/content/article/106-acontece/2415-o-que-tem-o-acta-a-ver-com-a-internet-e-com-o-brasil.

(9) Jamil Chade e Lígia Formenti. País abre disputa com UE por genérico. O Estado de S. Paulo, 13/05/2010.

(10) Brasil e Índia preparam denúncia contra UE por genéricos confiscados. Valor Econômico, 07/04/2010.

(11) Jamil Chade e Lígia Formenti. País abre disputa com UE por genérico. O Estado de S. Paulo, 13/05/2010.

(12) Raquel Landim e Patrícia Campos Mello. Lobbies tentam rebaixar Brasil em lista de propriedade intelectual. O Estado de S. Paulo, 20/02/2010.

(13) Aldo Pereira. Piratas e conquistadores. Folha de S. Paulo, 22/04/2010.