Segundo contam os estudiosos da história geológica de nosso planeta, há algo entre 200 e 500 milhões de anos o mundo era um só. Esse “mundo só” chamava-se pangeia, palavra originada da conjugação dos termos gregos pan (inteiro) e geia (ou Gaia, a deusa grega que personificava a terra). Naquele momento, aquilo a que hoje chamamos de “continentes” integrava-se em uma única porção terrestre, toda ela rodeada por um gigantesco oceano denominado Pantalassa.

Com o passar dos milênios, lentos movimentos tectônicos acarretaram a fragmentação dessa grande e única placa continental. Pangeia dividiu-se, dando origem, inicialmente, a dois grandes continentes: ao norte surgiu a Laurásia, composta por aquilo que hoje são a América do Norte, a Europa e o maior pedaço da Ásia; ao sul formou-se Gondwana, a reunião das atualmente chamadas América do Sul, África, Austrália e Índia. Os milênios novamente se passaram e, de forma igualmente lenta, também Laurásia e Gondwana se subdividiram.

Alfred Wegener, em sua obra The origin of continents and oceans (1915), foi o primeiro a sustentar com rigor científico a existência de pangeia. Para tanto, reuniu suficientes evidências fósseis e climatológicas para explicar algo que já havia sido observado, antes, pelo pensador britânico Francis Bacon: as bordas dos continentes africano e sul-americano apresentavam surpreendente complementaridade, um encaixe quase perfeito. Brasileiro e contemporâneo fosse, talvez tivesse Bacon trazido à mente uma velha canção de Roberto Carlos – “O côncavo e o convexo” – cuja letra sugere: “Nossas curvas se acham / Nossas formas se encaixam / Na medida perfeita / Cada parte de nós / Tem a forma ideal / Quando juntas estão / Coincidência total”.

Milhões de anos após a repartição de Gondwana, América do Sul e África – mesmo separadas por esse longo braço de Pantalassa que veio a se chamar Atlântico – voltariam a se encontrar muitas vezes ao longo da história. Não mais do ponto de vista físico-geológico, mas no plano simbólico e sociológico, no plano figurativo dos significados subjacentes à cotidianidade. Os dois continentes, que já tiveram por ponte os navios negreiros, têm hoje na bola o símbolo da unidade de seus povos.

Sim, porque na Copa da África – como têm unanimemente destacado órgãos de imprensa em todo o mundo – quem tem reinado é a América do Sul. Pela primeira vez na história dos mundiais de futebol – este equivalente moderno das corridas helênicas de biga – assistimos a quatro sul-americanos entre os oito melhores times do planeta. Esse fato, como não podia deixar de ser, vem sendo apoiado e saudado com simpatia pelo povo irmão africano.

Antes deste Mundial, o melhor resultado das seleções sul-americanas havia sido alcançado nas Copas de 1970 (no México) e de 1978 (na Argentina). Nessas ocasiões, três dos oito finalistas faziam parte do hemisfério sul do continente. A situação atual chega a entusiasmar a ponto de o zagueiro uruguaio Lugano declarar: “O futebol sul-americano é o mais forte do mundo e está mostrando isso nesta copa”.

Ufanismos à parte, não há como desconhecer que a América do Sul vem jogando em terras africanas como se estivesse em casa. Tão em casa quanto a seleção de Gana, também classificada entre os oito finalistas da competição. Somada às quatro seleções sul-americanas, Gana confirma o predomínio, nesta Copa do Mundo, de Gondwana – o equivalente mesozoico daquilo a que alguns preferem denominar hoje bloco (ou aliança) “sul-sul”.

O resultado alcançado pelas seleções sul-americanas contrasta com a decepção protagonizada no Mundial pelas seleções europeias, presentes às quartas-de-final com apenas três países, o menor número de representantes de toda a sua história futebolística. Alemanha, Holanda e Espanha são, sem sombra de dúvida, boas seleções – que avançaram, diga-se, jogando um autêntico futebol à sul-americana (aquele mesmo que os africanos adoram e praticam, embora ainda com ingênua imaturidade) –, mas isso nem de longe consegue elidir o relativo fracasso europeu em campos sul-africanos.

O contraste entre europeus e sul-americanos ocorre, curiosamente, no momento mesmo em que a América do Sul se une e avança, projetando-se – Brasil à frente – como novo polo de poder global. Situação que contrasta com a do Velho Continente, afundado em uma crise que parece não ter fim e bem poderia ser qualificada como uma das piores de sua longeva história.

Ora, perguntaria o leitor, é de fato possível tal associação? Não seria demais identificar o micromundo do futebol com o megamundo da vida das nações? Sim, mas apenas se reduzirmos as múltiplas determinações do jogo ao que acontece dentro das quatro linhas. Não parece, porém, ser isso o que se dá. Como afirma o cronista Luiz Zanini em insight raramente encontrável na crônica esportiva, “a história das copas caminha paralela a outras histórias, a dos povos, a da economia e a do próprio futebol”. E, completaríamos, todas elas se enovelam entre si.

Na verdade, em boa parte das vezes os ditos “fatores extracampo” influenciam mais o resultado de uma partida do que aquilo que ocorre estritamente dentro das quatro linhas. Fatores como tradição, confiança (excesso ou falta dela) e autoimagem – além de outros que compõem aquilo que os cronistas costumam chamar de “camisa” – funcionam como correias de transmissão invisíveis, que conectam o intracampo ao extracampo, os times às torcidas, as seleções à vida nacional. São, portanto, múltiplos – e por vezes insólitos – os caminhos que unem a cultura esportiva à totalidade da vida social.

Como afirma Vítor Marinho em seu O esporte pode tudo (Cortez, 2010, p. 23), “a prática esportiva é muito mais que simples deslocamentos pelo espaço, saltando, nadando e batendo recordes. É produção de cultura em seu sentido mais amplo”. O esporte, portanto, longe de ser fenômeno neutro, de dimensão puramente física e fisiológica, é resultado de relações sociais determinadas. E, como tal, um potente terreno de disputa simbólica, capaz de mobilizar chefes de Estado e nações inteiras, como acontece agora na Copa do Mundo.

Essa disputa simbólica revela, por vezes, facetas nitidamente políticas. Como constatamos nas declarações do ministro de Relações Exteriores do Irã, Manouchehr Mottaki, destacando o (triste) destino que tiveram, na Copa, as seleções dos principais países defensores das sanções da ONU contra o Irã. Para Mottaki, “o que testemunhamos na arena política internacional se manifestou igualmente na Copa do Mundo. Esses países (EUA, Inglaterra e França), que tiveram papel-chave na imposição de novas sanções contra o Irã, foram todos eliminados nas fases preliminares”, comemorou.

As fortes declarações de Mottaki estão aí para nos lembrar de que, apesar de sua aura de universalidade, o esporte não existe a par do Homem. A linguagem esportiva é apropriada no dia a dia por atores sociais os mais diversos, ganhando colorações específicas, apresentando-se como complexo de sentidos e manifestações particulares que contrastam com a pretensa universalidade de sua linguagem.

Ora, é no fundo isso o que está a nos dizer o jornal francês Le Monde quando, em editorial publicado logo após a eliminação dos bleus, sentencia: “Como não ver nesta equipe um espelho da sociedade francesa?” Quem completa a constatação dos editorialistas do Le Monde é Gilles Lapouge, colunista do mesmo jornal, que vê a França vitimada pela própria “soberba”. “Quando chegasse o dia, (os franceses) esmagariam, pulverizariam os pobres mexicanos, os lamentáveis uruguaios, os tristes sul-africanos. E ganhariam a Copa, como já fizeram por distração, em 1998, na época de Zidane. (…) A vaidade é o pecado mortal da França”.

Autoconfiança é, de fato, uma coisa séria. Aleija se abunda, mata se falta. Senão vejamos o caso do México, um país em busca de afirmação no cenário mundial. Em sua peregrinação rumo ao respeito e ao reconhecimento, esse país talvez deva, antes de tudo, superar o maior dos obstáculos em seu caminho: o complexo nelsonrodrigueano de vira-lata. Que o diga o bom zagueiro Rafa Marques, que antes do jogo com a Argentina declarou: “Esse (pessimismo) é no futebol e em outros campos. Precisamos mudar no México. Isso não leva a lugar nenhum”. O apelo de Marques não parece ter dado certo. Ainda no primeiro tempo do jogo com a Argentina, após o primeiro gol marcado pelos portenhos em situação de claro impedimento, a sensação de que nada daria certo tomou conta dos mexicanos de vez: o time se descontrolou, Osório errou e entregou a bola de bandeja nos pés do argentino Higuaín, que marcou belo gol. Um gol de quem não parecia sofrer com dilemas de autoconfiança.

Assim é o esporte. Com seu quê de universalidade, embala sonhos de fraternidade, de união dos povos em uma única comunidade humana – tão íntegra quanto um dia o foi pangeia. Porém, apesar de seu brilho transcendente – e da fetichização daí decorrente – ele não é fruto da ação dos deuses. Nem mesmo daqueles que habitam o Monte cujo nome deu origem ao maior evento esportivo do planeta – os Jogos Olímpicos. A menos que sejamos capazes de conceber os “deuses” mais ou menos como o faziam os antigos gregos – isto é, como personificações das mais nobres potencialidades coletivas do ser humano. Mas, pensando bem, mesmo essa não seria, no fundo, mais que uma forma sublimada de entender o esporte como atividade “humana, demasiado humana”.

Fábio Palácio é jornalista, doutorando em Comunicação pela ECA/USP e diretor de Publicações da Fundação Maurício Grabois.