A cobrança, noticiada pela Agência Central Coreana de Notícias em Piongueangue, tem seu tanto de impacto retórico, equivalente à ameaça periódica que os do norte fazem, de converter Seul em “mar de chamas”, mas mostra eloquentemente a impossibilidade de reconciliação formal na Península Coreana em qualquer futuro previsível.

Em cronograma perfeito, o Norte informou também que mantém detido, mais ou menos como refém, um norte-americano de nome Aijalon Gomes, cristão dedicado que ensinava inglês na Coreia do Sul, antes de entrar na Coreia do Norte vindo da China, em janeiro.

A ameaça, pelo Norte, de aplicar “leis de guerra” contra Gomes é elemento de barganha num cenário que muito provavelmente terminará na libertação de Gomes, com certeza de modo que sirva a algum objetivo de propaganda. Seja como for, as apostas subiram, depois que Gomes foi condenado, em abril, a oito anos de trabalhos forçados por entrada ilegal no país. Agora, está sendo convertido, de criminoso comum, em criminoso de guerra, segundo a Agência Central Coreana de Notícias em Piongueangue, ao mesmo tempo em que prossegue a discussão sobre “como aumentar sua pena”.

A Agência Central Coreana de Notícias em Piongueangue não deixa dúvidas sobre os motivos de tudo isso: resposta ao apoio que os EUA dão ao pedido da Coreia do Sul, apresentado ao Conselho de Segurança da ONU, de que condene o Norte como culpado pelo afundamento da corveta do Sul, Cheonan, em março, que causou a morte de 46 marinheiros.

Deve-se prever que Gomes acabará libertado para voltar para casa, mas não como resposta a pedido dos EUA, por motivos “humanitários”. Esse tipo de pedido não amaciará os estrategistas norte-coreanos, que já decidiram “castigar” o sul por terem levado o caso Cheonan à ONU.

O preço da liberdade de Gomes terá de ser diferente de outros, em situação lamentavelmente igual. A confrontação agravou-se depois que duas jornalistas da Internet TV de San Francisco, EUA – Euna Lee e Laura Ling – passaram 140 dias na Coreia do Norte, ano passado, depois de presas pelos guardas na fronteira com a China, junto ao rio Tumen.

Os EUA ainda acalentavam esperanças de melhorarem suas relações com o Norte, conseguindo, talvez, que o Norte voltasse às conversações sobre suas armas nucleares, quando o ex-presidente Bill Clinton dos EUA alugou um jato que o levou até a mesa de almoço do Amado Líder Kim Jong-il, almoçaram e, na volta, Clinton trouxe, no mesmo jato alugado, as duas jornalistas.

O caso de Gomes parece mais parecido ao de Robert Park, missionário norte-americano que entrou no Norte no Natal passado, levando uma carta a ser entregue ao Amado Líder , na qual pedia que se arrependesse dos pecados e libertasse os prisioneiros políticos.

Park foi libertado depois de 43 dias, dizendo que havia sido enganado por “falsa propaganda” e agradecendo a hospedagem e os bons tratos que recebeu dos anfitriões. Não se sabe o que os norte-coreanos fizeram a Park, para obter conversão tão radical, mas o caso de Gomes não será tão absolutamente simples, dado que apareceu imediatamente depois do incidente com a corveta Cheonan.

A Coreia do Norte exige muito mais, pelos sofrimentos da Guerra da Coreia. A cobrança de 65 trilhões de dólares pode ser apenas retórica, mas nada houve de retórica no banho de sangue da qual essa cobrança emerge hoje, quando morreram 4 milhões, mais da metade dos quais, norte-coreanos. Como disse a Agência Central Coreana de Notícias em Piongueangue, “Nosso povo tem pleno direito de exigir e receber compensação pelo sangue derramado.”

A nota traz valores itemizados: $26,1 trilhões, por “atrocidades cometidas pelos EUA”; $13,7 trilhões, por danos causados pelas sanções impostas pelos EUA; e $16,7 trilhões por danos a imóveis e perdas patrimoniais; várias outras entradas menores dão conta do total agora cobrado.

Quem imaginaria, quando os soldados norte-coreanos atravessaram o paralelo 38 que separa o norte e o sul, dia 25/5/1950, que 60 anos depois ainda estaríamos ouvindo falar de uma “segunda Guerra da Coreia”! Por inacreditável que seja, as diferenças entre Coreia do Norte e Coreia do Sul são hoje tão amargamente claras e pronunciadas quanto há tantos anos.

O perigo é hoje, ao mesmo tempo, muito pior e muito menor. É pior, no sentido de que a Coreia do Norte tem armas atômicas, já realizou dois testes nucleares subterrâneos e trocou know-how nuclear e peças com clientes no Oriente Médio, sobretudo com Irã e Síria.

A Coreia do Norte também tem mísseis, inclusive um modelo de longo alcance capaz de levar uma ogiva atômica até o Havaí, ao Alasca e, mesmo, até a costa ocidental dos EUA. E tem exportado mísseis de curto e longo alcance para clientes no Oriente Médio, dentre outros. Guerra nuclear no nordeste da Ásia é questão só teórica, e a maioria dos sul-coreanos fazem ar de absoluta indiferença quando perguntados sobre o tema. É ideia e certeza absolutamente generalizadas que “jamais acontecerá por aqui.”

Por isso, em termos de senso comum, uma segunda Guerra da Coreia, sob a forma de invasão do sul pelo norte, parece possibilidade extremamente remota. O holocausto que devastou a Península Coreana por mais de três anos parece ser, de fato, a “guerra esquecida”. Foi interlúdio sangrento que colheu o mundo de surpresa, ao eclodir, quase cinco anos depois do final da II Guerra Mundial, terminada em 1953 num armistício duvidoso que, de certo modo, perdura até hoje.

Diz-se que a Guerra da Coreia terminou em empate, sem lado vencedor, quando os tiros pararam exatamente onde haviam começado, na linha traçada à distância por norte-americanos e soviéticos, à altura do paralelo 38 antes da rendição dos japoneses em agosto de 1945.

Essa avaliação não é absolutamente precisa. Com o correr dos anos, o sul foi aos poucos emergindo como vencedor e por larga diferença. Depois de anos de dificuldades, o sul converteu-se em grande potência econômica mundial, com capacidades sofisticadas e impressionantes oportunidades educacionais, mercados florescentes e renda média cerca de 20 vezes mais alta que a dos norte-coreanos.

Ao tempo em que a Coreia do Sul passou pela transição política, de ditadura a Estado democrático, a elite reinante na Coreia do Norte permaneceu firmemente entrincheirada no poder, pelo menos para efeitos públicos. Kim Jong-il, cujo pai Kim Il-sung ascendeu ao poder no início da guerra e lá permaneceu até morrer em 1994, por mais que esteja envelhecendo ainda é suficientemente poderoso para impedir que cresça a onda de ambição de seus generais também envelhecidos, tanto quanto para impedir que engordem os protestos da população esfaimada. Seu sonho é preparar a ascensão ao poder de seu filho mais jovem, Kim Jong-un, que se aproxima dos 30 anos.

Se a Coreia do Norte é ainda fraca demais para tentar invadir o sul, mesmo assim ainda pode criar incidentes que mostram o quão frágil é a paz naquela Região. Depois do afundamento da corveta Cheonan, persiste o medo de mais batalhas nas disputadas águas no oeste do Mar Amarelo, cena de sangrentos tiroteios entre navios do Norte e do Sul em junho de 1999 e, outra vez, em junho de 2002. Também por isso, deve-se sempre temer novos tiroteios ao longo da zona desmilitarizada que divide a Península desde julho de 1953.

Embora muito se ouça dizer que a guerra parou onde começara, a Coreia do Norte conservou sob seu poder a cidade de Kaesong, que, antes da guerra, pertencia ao sul; e o sul manteve territórios acima do paralelo 38 no centro e leste do país. Kaesong é importante, porque lá existe um complexo econômico no qual operam 120 pequenas indústrias onde trabalham 44 mil norte-coreanos. O norte ainda lucra com o trabalho de Kaesong, apesar de o presidente Lee Myung-bak da Coreia do Sul ter cortado todos os contatos comerciais entre sul e norte, do qual o norte ganhava cerca de $200 milhões anuais, em retaliação pelo afundamento alegado da corveta Cheonan.

Há apenas 28.500 soldados norte-americanos na Coreia, mas navios dos EUA estarão reunidos à Marinha da Coreia do Sul, em julho próximo, em exercícios que serão show de força no Mar Amarelo. E o 7º Grupamento Aéreo dos EUA, estacionado em Osan, ao sul de Seul, é força considerável de contenção. A China, cujos “voluntários” salvaram o norte de serem completamente tomados por EUA e Coreia do Sul em 1950 e 1951, é hoje parceiro comercial vitalmente importante, tanto para os EUA quanto para a Coreia do Sul. O sul, apoiado pelos EUA prospera, num muito peculiar equilíbrio, no qual só um fato é perfeitamente claro para todos: ninguém deseja uma segunda Guerra da Coreia.

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Fonte: Asia Times Online

http://www.atimes.com/atimes/Korea/LF26Dg01.html

Tradução: Caia Fittipaldi