Sobre os dois escrevi trabalhos publicados ainda enquanto estavam vivos nos quais procurei sintetizar a grande contribuição que cada um deles deu ao Brasil e ao pensamento econômico. Furtado teve
ampla experiência fora do país e ganhou projeção internacional, tornando-se parte do
pequeno grupo de extraordinários economistas que, entre os anos 40 e 50, fundaram a
teoria do desenvolvimento econômico. Rangel, embora também marginalizado pelo golpe
militar de 1964, permaneceu sempre no Brasil.

Como seu nome não ultrapassou as fronteiras nacionais, esse fato, em um país que vive siderado pelas idéias e pelas modas vindas do exterior, poderia levar Rangel ao esquecimento, mas isto não aconteceu.
Certamente porque seu pensamento é poderoso e instigante, Ignácio Rangel (1908- 1994) não é esquecido.Neste ano, onze anos depois de sua morte, ele recebeu uma bela homenagem, ao ter sua obra econômica editada em dois grandes volumes por César  Benjamin (Obras Reunidas, Contraponto, 2005). É uma edição primorosa, na qual
podemos rever todos os seus grandes livros, principalmente A Dualidade Básica da
Economia Brasileira (1957) e A Inflação Brasileira (1963). E podemos também ler o livro
inicial de Rangel, inédito, O Desenvolvimento Econômico do Brasil (1954), originalmente
escrito em espanhol para o curso de capacitação econômica da Cepal (Comissão
Econômica da América Latina das Nações Unidas).

Rangel, conjuntamente com Hélio Jaguaribe, Guerreiro Ramos, Cândido Mendes
de Almeida, Álvaro Vieira Pinto, Roland Corbisier e Nelson Werneck Sodré, fez parte do
grupo de intelectuais nacionalistas e desenvolvimentistas que, durante os anos 50, reunidos
91 em tornos do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), repensou radicalmente a
sociedade e a economia brasileira. Foram grandes intelectuais públicos que, antes da
fundação formal de seu instituto, publicaram, entre 1953 e 1955, os cinco números dos
Cadernos do Nosso Tempo, publicação que apresentava um quadro novo da história, da
estrutural social, e do desenvolvimento econômico e político do Brasil. Foi lendo essa
revista, em 1955, aos 20 anos, que decidi não mais ser juiz de direito mas ‘economista ou
sociólogo do desenvolvimento’.

Conheci Rangel em 1958, quando ele e todos os principais intelectuais públicos do
ISEB ofereceram um ciclo de conferências em São Paulo. Ele falava então do grande
desafio que representava, para o desenvolvimento, a questão da ‘dualidade básica da
economia brasileira’. Sua teoria não era uma mera transposição para o Brasil da teoria
dualista que economistas internacionais haviam desenvolvido um pouco antes como parte
da teoria mais geral da modernização. Seu modelo era histórico e complexo, mostrando
como toda a história do país fora caracterizada por dois pólos, um interno e outro externo,
que se sucediam e se alternavam no tempo. Através dele podíamos ver uma formação
social dinâmica, na qual as classes sociais e os setores da economia se expressavam.

Em 1963 Rangel lança seu livro inovador, A Inflação Brasileira. Naquelemomento eu estava inscrito no programa de doutoramento em economia da USP, tendocomo orientador Delfim Netto. No seminário de sextas-feiras à tarde, lemos e discutimos o livro. Naquele momento Delfim via com interesse as idéias de um economista que inovavanão apenas em relação à teoria monetarista e à teoria keynesiana da inflação mas tambémem relação à teoria estruturalista à qual, em princípio, se poderia supor que estaria ligado.

Em seu lugar, apresentava uma teoria na qual a inflação aparecia como um mecanismo de
defesa da economia quando esta se via ameaçada pela crise, ou, mais especificamente,
pela recessão e os recursos ociosos. A inflação não era, assim, nem conseqüência do
excesso de oferta de moeda, nem do excesso de demanda, nem dos pontos de
estrangulamento na oferta, mas da própria crise que leva as empresas, operando em
mercados imperfeitos, oligopolistas, a se defenderem praticando a inflação administrada.
Dessa análise Rangel derivava, inclusive, o que ficou chamado como a ‘curva de Rangel’,
na qual inflação e crescimento apresentavam, no médio prazo, não a relação direta
expressa na curva de Philips, mas uma relação inversa. Uma curva que antecipava a
estagflação dos anos 70, e que ele mesmo demonstrou empiricamente.

O golpe militar interrompeu sua vida pública que então era exercida de forma
profícua no BNDES onde desenvolveu um grande número de amigos e discípulos. Antes
92disso ele fora assessor econômico de Getúlio Vargas, em seu segundo governo,
trabalhando com seu querido amigo e chefe da assessoria econômica, Jesus Soares Pereira,
a quem o Brasil deve muitas das grandes realizações desse governo. De repente, se viu
afastado pela força de suas funções, e, em seguida, foi vítima de um enfarte. Por alguns
anos Rangel esteve ausente do debate público.

Em 1967, ao assumir o Ministério da Fazenda, Delfim Netto promoveu uma bem
sucedida política de expansão a partir do diagnóstico correto que a inflação que restava –
depois da estabilização bem sucedida a que fora a economia brasileira submetida – era
uma inflação de custos ou administrada. O milagre econômico de 1968-1973 começava
então. Não tive qualquer dúvida em reconhecer naquela política de Delfim as idéias de
Rangel, então no ostracismo.

Em 1972, em uma reunião da SBPC, onde um pequeno grupo de economistas,
entre os quais Antônio Barros de Castro e eu, discutíamos a economia brasileira,
reapareceu o velho Rangel. Notei que os novos economistas não lhe deram muita
importância, inclusive porque vinha com uma previsão surpreendente. Baseado teoria das
ondas longas de Kondratieff, ele nos disse que a economia mundial estava prestes a
mergulhar em uma grande crise. Em meio à grande prosperidade daqueles anos, ninguém
lhe prestou atenção. E no entanto, no ano seguinte, a primeira crise do petróleo levou ao
final dos 30 ‘anos dourados’ do desenvolvimento capitalista. As taxas de crescimento e de
lucro caíram verticalmente, e os Estados Unidos, que naquele período havia sido
relativamente generoso em relação aos países do terceiro mundo, deram uma grande
guinada em suas políticas, agora marcadas pelo neoliberalismo e o globalismo.

Foi realmente nos anos 70 que me tornei amigo de Rangel. Quando ia ao Rio deJaneiro, procurava-o, e tínhamos longas e estimulantes conversas. Em 1978, com sua
concordância, propus a meu amigo e editor, Caio Graco Prado, da Editora Brasiliense, que
publicasse uma nova edição de A Inflação Brasileira. Dessa forma queria fazer lembrar o
grande economista, que ainda não se recuperara de seu afastamento do BNDES e da vida
pública brasileira. A nova edição esgotou-se rapidamente, não apenas porque o livro
original que foi publicado sem alterações, era extraordinário, mas porque Rangel incluiu
nele um “Pósfacio” antológico. Nele, ao invés de voltar às suas idéias dos anos 60,
avançou, mostrando de forma pioneira que a economia brasileira estava caminhando na
direção de uma grande crise de financiamento, na medida que o Estado brasileiro estava
perdendo capacidade para realizar a tarefa fundamental que lhe coubera desde os tempos
de Vargas: financiar os investimentos – especialmente dos investimentos na infra-estrutura
93e nos serviços públicos. Estava ali a previsão da grande crise dos anos 80, e um esboço da
teoria da crise fiscal do Estado, que, durante os anos 80, eu procuraria desenvolver em
vários trabalhos. Estava ali também a proposta de como resolver a questão, através de um
novo tipo de financiamento, baseado na hipoteca das receitas dos serviços públicos.

Creio que republicação de seu livro e o sucesso que alcançou reanimaram o velho
Ignácio, que em 1980 publicou uma nova edição de um outro livro importante, Recursos
Ociosos e Política Econômica (1960-80). Nesse mesmo ano, eu e Yoshiaki Nakano
estávamos fundando a Revista de Economia Política, e fizemos-lhe nova homenagem: ele,
Caio Prado Jr. e Celso Furtado foram eleitos os três patronos da revista. Por outro lado, os
estudantes de economia começavam a se interessar por sua obra, que passava a ser objeto
de dissertações. Rangel, que nesse momento aproximava-se dos 70 anos, afinal alcançava
o reconhecimento. Volta a escrever artigos acadêmicos, entre os quais “A História da
Dualidade Brasileira” (1981) e “Recessão, Inflação e Dívida Externa” (1985) – ambos
publicados na revista de que era patrono. E volta também a escrever para os jornais,
principalmente para a Folha de S. Paulo.

Em 1993, quando sua saúde já está abalada, José Marcio Rego e eu publicamos na
Revista de Economia Política um grande ensaio fazendo a análise de sua obra, "Um
Mestre da Economia Brasileira: Ignácio Rangel". O amigo ficou feliz com o trabalho. Um
ano depois, aos 82 anos, o velho guerreiro, que na sua grande luta pelo Brasil tivera como
companheira constante sua amada Alliete, falece no Rio de Janeiro. Fora uma grande
jornada, desde o seu Maranhão, das lutas marxistas pela justiça, a mudança para o Rio de
Janeiro, a prisão, a transformação do advogado em economista, o trabalho no primeiro
governo Vargas, a participação no grupo do ISEB, o nacionalismo e odesenvolvimentismo, o curso na CEPAL ele já um homem maduro, o trabalho no segundogoverno Vargas, o BNDES, o ostracismo, e a volta por cima. Em 1998, ArmenMamigonian e José Marcio Rego organizam um livro, O Pensamento de Ignácio Rangel, eagora César Benjamim organiza suas Obras Reunidas. Rangel sabia que para compreendera economia brasileira não bastava aplicar modelos macroeconômicos estrangeiros. Sempreteve claro para si mesmo que era preciso pensar o sistema econômico brasileiro na suaprópria individualidade, no quadro de sua própria historia. A teoria econômica que faziaestava voltada para resolver os problemas do Brasil. Ainda que a realidade econômicaesteja sempre mudando, os brasileiros terão que voltar muitas vezes ao seu pensamentopara poderem pensar o Brasil.